segunda-feira, 1 de abril de 2024


Caso Marielle destampou o buraco da corrupção policial, diz autor de 'Milicianos'

Na página 42 do livro-reportagem "Milicianos", que tem no ex-policial Ronnie Lessa um de seus protagonistas, o jornalista Rafael Soares tangencia o assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes com a seguinte nota: "Até o fechamento deste livro, o mandante não havia sido identificado".

É compreensível, afinal, a obra foi publicada em outubro do ano passado --as mortes ocorreram em março de 2018. O curioso é reparar que, menos de 30 páginas depois, Soares volta ao caso com uma menção ao ex-deputado estadual Domingos Brazão.

O contexto é um suposto "depoimento-bomba" oferecido um mês depois da morte de Marielle à polícia, que implicava como mandantes o ex-policial Orlando Curicica e o vereador Marcello Siciliano. Ficou comprovado que o depoimento era uma farsa, nas palavras do jornalista, arquitetada por Brazão, que era conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro.

Segundo o autor, o político "tinha dois objetivos ao criar a versão fajuta": prejudicar Siciliano, seu desafeto, e "evitar que a investigação do assassinato de Marielle respingasse nele próprio".

Não é exatamente clarividência. Fica patente que a prisão de Brazão pela Polícia Federal no último domingo (24), suspeito de ter planejado o crime ao lado de seu irmão, o deputado federal Chiquinho Brazão, e do delegado Rivaldo Barbosa, não foi surpresa para o autor do livro. As defesas dos três detidos negam os envolvimentos de seus clientes no crime.

Mas o episódio serve para demonstrar o rigor jornalístico que permeia "Milicianos", uma obra que toma o cuidado de se fundamentar no relato mais objetivo e criterioso possível, sem avançar sinais nem fazer inferências indevidas.

"O livro não tem nenhum off", afirma o jornalista, hoje repórter especial do jornal O Globo, em referência a informações passadas por fontes que não querem se identificar. "Eu percebi que conseguia montar todo o quebra-cabeças só com peças documentais. Queria um livro-reportagem que expusesse todas as fontes, que não parecesse que estou tentando convencer ninguém, mas sim mostrando como é."

O panorama que "Milicianos" traça é o do crescimento da milícia no Rio de Janeiro, com gancho em alguns de seus principais personagens --nomes como Marcos Falcon e Adriano da Nóbrega, por exemplo-- e grupos organizados como o Escritório do Crime e a Liga da Justiça.

Tudo isso a partir, sobretudo, de processos judiciais e documentação da polícia e do Ministério Público, angariados em cerca de 12 anos de acervo reunido pelo autor ao longo de suas apurações.

Observador privilegiado, Soares enxerga o caso Marielle como um divisor de águas, já que finalmente "obrigou o Estado a investigar esses caras". Isso porque quando o perfil de Lessa veio à tona, após sua prisão, o ex-policial já era tratado como lenda no submundo do crime, sem nunca ter sido alvo de processos formais por homicídio --nas palavras de Soares, era um "pistoleiro ficha limpa".

Foi esse o gatilho inicial de "Milicianos". As ocorrências na ficha policial de Lessa provinham, na verdade, de sua época como agente da própria Força na virada do milênio --repleta de bonificações e promoções, numa "carreira astronômica" que, segundo Soares, se baseava em "indícios claros de violações de direitos humanos".

É uma situação parecida com a de Adriano da Nóbrega. "Eu brinco que o capitão Adriano só não era conhecido na zona sul do Rio. Ele impactava a vida de milhões de pessoas na cidade", afirma o repórter. "Eu ouvi o nome do Adriano nas minhas apurações desde 2016, mas só consegui escrever o nome dele no jornal pela primeira vez em 2019."

Isso porque não havia como corroborar as acusações contra ele com declarações sólidas, naquele ambiente de intimidação, ou documentos oficiais, já que nenhuma investigação ia para a frente, sempre com um forte cheiro de sabotagem interna.

E é aqui que o jornalista aponta um dos principais legados do terremoto midiático provocado pelas mortes de Marielle e Anderson. "A operação contra o Ronnie Lessa permitiu jogar luz sobre esse buraco do Rio de Janeiro que estava fechado."

Após ser preso sob suspeição de ter participado da morte de Marielle, Lessa decidiu fazer uma delação. Em depoimento, confessou ter executado o crime e apontou os irmãos Brazão como mandantes, além de ter indicado a participação do delegado Rivaldo.

Outro potencial legado do caso, segundo Soares, pode ser o desmantelamento do esquema de corrupção policial no Rio. "Ficou claro que Lessa não apertou esse gatilho sozinho. Ao longo dos dez anos anteriores, a Delegacia de Homicídios [que foi chefiada por Rivaldo] tornou possível que matadores de aluguel cometessem crimes bárbaros sem ser incomodados."

"Hoje conseguimos dizer, com base na apuração da Polícia Federal, que a impunidade e a corrupção policial levaram ao caso Marielle. Pelo menos isso está comprovado".

O que não quer dizer que os próximos avanços serão simples. Uma frase que Soares reforça diversas vezes ao longo do livro é que os milicianos foram treinados pelo Estado para ser bons criminosos --se aproveitando tanto do acesso a informações privilegiadas como de métodos para despistar investigações.

Isso ficou claro no caso Marielle, no qual os suspeitos tomaram precauções bem calculadas para evitar o rastreamento do carro, da arma e dos celulares usados no crime.

"Já faz muitos anos, desde a década de 1960, que a classe policial circula nas organizações criminosas que exploram o território do Rio de Janeiro", diz Soares, citando o modelo geográfico "muito bem estruturado" pelos patrões do jogo do bicho, uma narrativa familiar a quem tenha assistido à série "Vale o Escrito", do Globoplay. "Esse modelo só foi se aprimorando."

A narrativa que coloca policiais como "a solução" para combater "os malvados" é "uma simplificação do cenário que não ajuda". O assassinato da vereadora é um exemplo didático dessa complexidade.

"A realidade é que a polícia também é um problema, faz parte da equação", afirma Soares. "O caso Marielle pode marcar um ponto de mudança no debate público, se nos dermos conta de que foram policiais que a mataram, com munição paga pelo Estado."

MILICIANOS - COMO AGENTES FORMADOS PARA COMBATER O CRIME PASSARAM A MATAR A SERVIÇO DELE

Preço: R$ 79,90 (320 págs.); R$ 39,90 (ebook)

Autoria: Rafael Soares

Editora: Objetiva

 

Ø  Chiquinho Brazão perdeu votos em reduto eleitoral antes do crime

 

Apontado pela Polícia Federal (PF) como um dos mandantes do assassinato de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, o deputado federal Chiquinho Brazão (sem partido) viu seu capital político diminuir na eleição anterior ao crime contra a candidata do Psol.

Até mesmo dentro de seu "curral eleitoral", na Zona Oeste do Rio, território de grande influência da família Brazão, segundo a Polícia Federal, o político observou a queda de eleitores em todas as zonas eleitorais da região, na comparação entre os pleitos de 2012 e 2016.

Sexto vereador mais votado em 2012, com mais de 35 mil votos, Chiquinho terminou as eleições de 2016 com 23.923 votos no total. Nesse pleito, Marielle terminou como a 5ª vereadora mais votada do Rio, com 46.502 votos.

Dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mostram que na Zona Eleitoral 9, que pega a região das Vargens, por exemplo, Chiquinho Brazão passou de 1.796 votos, em 2012, para 977 votos na eleição seguinte.

Nas urnas que atendem os moradores da Freguesia (Zona Eleitoral 13), a queda foi de quase metade dos votos, saindo de 2.627 para 1.351 eleitores.

A maior queda no número absoluto de eleitores de Chiquinho Brazão aconteceu na Zona Eleitoral 180, que atende os moradores da Taquara e do Tanque, por exemplo. Na região, Brazão saiu de 8.188 votos para 4.696.

Nos sub-bairros Vila Valqueire e Praça Seca, onde os moradores votam na Zona Eleitoral 185, a queda também assustou o político. Chiquinho saiu de 2.168 eleitores para 863.

·        Vitória no "território inimigo"

Ao todo, o levantamento feito pelo g1 contabilizou os votos de Marielle e Chiquinho Brazão nas zonas eleitorais 9; 13; 119; 179; 180; 182; 185; e 210, que atendem os moradores dos bairros:

  • Vargem Grande;
  • Vargem Pequena;
  • Barra da Tijuca;
  • Recreio dos Bandeirantes;
  • Itanhangá;
  • Curicica;
  • Freguesia;
  • Anil;
  • Cidade de Deus;
  • Gardênia Azul;
  • Pechincha;
  • Rio das Pedras;
  • Taquara;
  • Tanque;
  • Vila Valqueire;
  • e Praça Seca.

Na eleição de 2016, quando os dois disputaram o cargo de vereador, Marielle venceu Chiquinho em parte de seu reduto eleitoral, quando teve maior votação nos bairros Vargem Grande, Vargem Pequena, Curicica, Freguesia e Vila Valqueire.

Na Zona Eleitoral 9, que pega a região das Vargens, por exemplo, Marielle teve 1.333 votos, contra 977 de Brazão. A vitória da candidata na Zona Eleitoral 119, que abrange os bairros Curicica e Freguesia, também chamou atenção. No local, Marielle somou 949 votos, 501 votos a mais que o adversário.

·        Reduto do Clã Brazão

Até 2021, grande parte dessa região analisada era dominada por grupos de milicianos e, segundo a PF, a área é reduto político da família Brazão.

"A interação da família Brazão com grupos paramilitares é intensa e se destaca na Zona Oeste do Rio de Janeiro, notadamente nos bairros de Jacarepaguá, Tanque, Gardênia Azul, Rio das Pedras, Osvaldo Cruz e arredores", dizia um trecho do relatório final da PF sobre a morte de Marielle Franco.

"As interações da família Brazão com tais grupos ressaem na comunidade de Rio das Pedras, berço da milícia no Rio de Janeiro, e se alastram para outras localidades situadas na região de Jacarepaguá, Zona Oeste (...)", dizia outro trecho do documento.

Ainda de acordo com o relatório, apenas os políticos autorizados pelos milicianos podem fazer campanha nas comunidades dominadas.

"A entrada de políticos em localidades comandadas pelos grupos paramilitares é controlada pelos seus líderes, uma vez que somente aqueles que promovem uma interação espúria com os milicianos podem auferir os louros eleitorais advindos daquele local", avaliou a PF.

·        Motivação do crime

Os investigadores acreditam que a morte de Mareille seja uma resposta a sua atuação contra a grilagem de terras e a expansão imobiliária nas áreas de milícia, principalmente na Zona Oeste.

A suspeita da PF é que Marielle tenha atrapalhado um projeto de Lei na Câmara Municipal para agilizar os loteamentos de terra em áreas de milícia, particularmente nas regiões das Vargens (Grande e Pequena) e Itanhangá.

O autor do projeto de lei foi justamente Chiquinho Brazão, então vereador em 2018, pouco antes do assassinato da vereadora.

O relatório da PF afirma que o ex-policial militar Ronnie Lessa, preso acusado de executar Marielle e seu motorista, Anderson Gomes, apontou em sua delação "como motivo [do crime] o fato de a vereadora Marielle Franco estar atrapalhando os interesses dos Irmãos, em especial, sua atuação junto a comunidades em Jacarepaguá, em sua maioria dominadas por milícias, onde se concentra relevante parcela da base eleitoral da família Brazão".

Os irmãos Domingos Brazão e Chiquinho Brazão foram presos no último domingo (24) apontados como mandantes do atentado contra Marielle Franco, em março de 2018, no qual também morreu o motorista Anderson Gomes. O delegado Rivaldo Barbosa também foi preso, suspeito de ajudar a planejar crime e de atrapalhar as investigações.

A defesa de Domingos Brazão afirmou que seu cliente é inocente. O advogado de Rivaldo Barbosa, Alexandre Dumans, disse que seu cliente não obstruiu as investigações. A defesa de Chiquinho Brazão não havia se posicionado até a última atualização desta reportagem.

 

       Lula promove general atacado por bolsonaristas e que nomeou delegado do caso Marielle

 

O governo Lula (PT) nomeou nesta sexta-feira (29) o general Richard Nunes para assumir o Estado-Maior do Exército, segundo posto mais relevante da força.

A mudança já era prevista, foi publicada no Diário Oficial da União desta sexta e efetivada na véspera, durante assinatura da promoção de oficiais e trocas nas forças com presença dos comandantes e do ministro José Múcio Monteiro (Defesa) no gabinete de Lula.

Segundo integrantes do governo, trata-se de uma movimentação comum nas forças.

Assim como o próprio comandante do Exército, Tomás Paiva, Nunes sofreu ataques de bolsonaristas no fim do governo Jair Bolsonaro (PL). À época, ele era do Alto Comando, por ser comandante militar do Nordeste, e teve seu nome e foto circulando por não apoiar atos golpistas após a derrota do então presidente.

À época, ele escreveu um texto em que criticou o inconformismo com a "tradicional postura legalista e de neutralidade do Exército", que tem gerado "insultos a camaradas de longa data, ataques a reputações típicos de regimes totalitários, 'vazamentos' de supostas informações, divulgação de memes difamatórios, tudo para tentar atingir a coesão da Força".

Em outra passagem de seu texto, publicado em blog do Exército, Nunes afirma que "por vezes, dizer 'não' pressupõe muito mais coragem do que alinhar-se a eventuais pressões de caráter político".

Na gestão de Paiva, Nunes estava chefiando o departamento de Educação e Cultura do Exército. Agora, o general Francisco Humberto Montenegro Junior assumirá o cargo, uma vez que o ex-comandante militar do Nordeste vai para o Estado-Maior.

O general também voltou aos holofotes nesta semana após a prisão do delegado Rivaldo Barbosa, suspeito de envolvimento no assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL).

Barbosa chegou ao cargo de chefe da Polícia Civil no Rio de Janeiro em 2018, nomeado por Nunes, então secretário de Segurança Pública do estado. À época, a área estava sob intervenção federal, e o interventor era o general Braga Netto, que depois virou ministro de Bolsonaro e vice na chapa derrotada pela reeleição.

À Folha de S.Paulo Nunes se disse "perplexo" com a prisão de Rivaldo Barbosa como um dos arquitetos da execução e disse considerar que pode ter sido ludibriado, "como toda a sociedade foi".

"Lógico que essa prisão me deixou perplexo. Como é que pode um negócio assim? É impressionante. É um negócio de deixar de queixo caído. Naquela época, não havia nada que sinalizasse uma coisa dessas, uma coisa estapafúrdia", declarou Nunes.

Ele relatou que na época havia elementos para achar que Rivaldo e o delegado Giniton Lages, que conduziu o caso Marielle na Delegacia de Homicídios e é investigado como participante do esquema para matá-la (foi afastado das funções e terá de usar tornozeleira eletrônica), estavam no caminho correto da elucidação do crime.

O general ficou na função de fevereiro de 2018 a dezembro do mesmo ano. Quando estava de saída, deu uma entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo em que afirmou que Marielle foi morta por milicianos por ser um entrave à grilagem de terras na zona oeste do Rio.

Hoje, segundo a Polícia Federal, Rivaldo é suspeito de ter arquitetado as mortes da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, em março de 2018. Ainda de acordo com os investigadores, o delegado teria atuado para obstruir as investigações do caso.

Quem chefiou a investigação no Rio foi o delegado Giniton Lages, indicado por Rivaldo, e que foi alvo de busca e apreensão no último domingo. Ambos negam envolvimento na morte da vereadora.

O relatório da PF sobre o caso diz que Rivaldo criou uma organização criminosa dentro da Polícia, suspeita de cometimento de crimes variados, como corrupção, obstrução, tráfico de influência e até fraudes processuais.

A atuação da Polícia Civil é o ponto central da tese dos investigadores federais. A apuração evidencia problemas dentro da polícia fluminense ocorridos em diferentes gestões.

 

Fonte: FolhaPress/g1

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