sexta-feira, 26 de abril de 2024

Brasil caminha para liderar evolução da genômica na América Latina

A evolução da genômica a passos largos nas duas últimas décadas vem reinventando a maneira como a medicina é praticada. Novos caminhos e possibilidades têm sido abertos para diagnósticos, tratamentos e até mesmo prevenção. Se antes a medicina genética era associada automaticamente a doenças raras, os avanços indicam uma nova direção, com um olhar cada vez mais voltado para doenças mais comuns, como as cardiovasculares e diabetes.

Com a produção científica a todo vapor, artigos de publicações científicas como Science, The New England Journal of Medicine, Nature e Genome Biology apontam a genômica como a nova era da medicina. E o mercado segue o movimento: em 2023, a medicina genômica já era avaliada em US$33,9 bilhões e deve atingir US$157 bilhões até 2033, de acordo com dados da consultoria NovaOneAdvisor. A estimativa é de um crescimento de até 47% no investimento em iniciativas de edição e terapias genéticas, segundo números da Evaluate Pharma.

Motivos não faltam para a grande expectativa de pesquisadores, profissionais de saúde e investidores. Nos últimos anos, estudos levaram à descoberta de biomarcadores de cânceres, por exemplo, o que possibilitou o desenvolvimento de terapias-alvo, nova classe de medicamento que permite um tratamento mais eficaz, seguro e com menos toxicidade, aumentando não apenas a sobrevida do paciente, como também a qualidade de vida. As doenças raras, como anemia falciforme e fibrose cística, também têm sido beneficiadas com a descoberta de novas terapias com potencial para mudar o curso da doença. Mais recentemente, novas pesquisas identificaram também biomarcadores para Alzheimer e Parkinson, que até o momento não têm cura, mas as descobertas podem ajudar a compreender melhor a fisiopatologia das condições e, assim, avançar no desenvolvimento de novos fármacos.

“O avanço da genômica significa uma revolução para a medicina, principalmente para a medicina personalizada. Ela permite que você tenha tecnologias e terapias muito mais assertivas, o que melhora muito o desfecho para o paciente”, destaca Carlos Carpio, mestre em genética molecular e diretor comercial da MGI para a América Latina.

A empresa é especializada em desenvolver soluções tecnológicas utilizadas em pesquisas de ciências da vida, e inaugurou em abril um Centro de Experiência do Cliente em São Paulo. O objetivo é ter um ambiente para que laboratórios clínicos, hospitais e universidades aprimorarem o aprendizado e a experiência com a tecnologia aplicada em medicina de precisão, oncologia e metagenômica (análise genômica de uma comunidade de microrganismos), dentre outros segmentos.

•        Evolução da genômica

No Brasil, a área também ganhou força nos últimos anos. Criado em 2020, o Programa Nacional de Genômica e Saúde de Precisão – Genomas Brasil foi lançado pelo governo federal como um estímulo para o desenvolvimento da medicina genômica. A ideia é atuar em duas frentes: utilizar o sequenciamento genômico para aprimorar as áreas de diagnóstico e predição de risco; e avançar no emprego de terapias que têm como foco a arquitetura genômica do paciente.

Embora o projeto federal seja recente, o país já tem uma atuação relevante e reconhecida globalmente nessa esfera, graças a pesquisadores como Mayana Zatz, Maria Rita-Passos-Bueno e Eloísa de Sá Moreira, que ainda na década de 1990 foram responsáveis por localizar um dos genes ligados a um tipo de distrofia dos membros e pelo mapeamento do gene que causa a síndrome de Knobloch.

Na mesma época em que as cientistas anunciavam a descoberta ao mundo, engatinhava o “Genoma Humano”, primeiro projeto internacional para o sequenciamento completo de um genoma humano. A iniciativa reuniu pesquisadores de diversos países, como Estados Unidos, Reino Unido, Japão, França, Alemanha e China, e é considerado um marco revolucionário. Ao todo foram treze anos de pesquisa, que consumiram cerca de US$ 3 bilhões.

De lá para cá, o avanço da tecnologia e os ganhos de escala permitiram a expansão das pesquisas genômicas. Atualmente, já é possível sequenciar um genoma humano por menos de mil dólares.

“A criação de uma nova leva de tecnologias de sequenciamento de genoma, que chamamos de next generation sequencing (NGS), é a mais recente revolução na genômica”, ressalta João Bosco Oliveira Filho, doutor em imunologia e investigador principal do projeto Genomas Raros, iniciativa do Hospital Israelita Albert Einstein com o Ministério da Saúde via Programa de Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS). “Esses equipamentos aumentaram a nossa capacidade de sequenciar DNA de forma rápida e escalável, o que nos permite automatizar e interpretar os resultados com mais agilidade e a um custo mais reduzido. Foi uma transformação que realmente permitiu a introdução da genética em larga escala.”

O panorama fez com que países fora do eixo Estados Unidos-Europa pudessem entrar com mais força no cenário mundial de pesquisas. E abriu caminho também para a utilização da tecnologia para diversas áreas. “Conseguimos trazer esses testes para diagnóstico, para guiar tratamento, para a prevenção, para a clínica e para dentro dos laboratórios de forma mais acessível e com um tempo de entrega rápida. E tudo isso com alta qualidade”, completa Bosco.

Com a chegada do Centro de Experiência do Cliente, o cenário da genômica brasileira ganha um reforço. Isso porque o novo centro irá contar com equipamentos que fazem sequenciamento de DNA ultrarrápido. Com eles, pela primeira vez na indústria, segundo a MGI, o preço do sequenciamento do genoma cairá para menos de US$ 100. Essa redução possibilitará a expansão de pesquisas realizadas no país, estimulando ainda mais a produção de conhecimento científico local. “O Brasil é o país líder nesse aspecto na América Latina, e a MGI está presente no país para contribuir com esse desenvolvimento. Temos aumentado a nossa presença na região para apoiar esses esforços”, reforça Carpio.

•        Era da representatividade genética

A chegada em escala da tecnologia de NGS na América Latina traz consigo uma nova perspectiva para os grandes sequenciamentos populacionais. Em 2023, o projeto britânico UK Biobank anunciou o sequenciamento completo de 500 mil cidadãos do Reino Unido, se estabelecendo como o maior banco de dados genéticos aberto para cientistas de todo o mundo. Contudo, Bosco salienta que, embora a conquista deva ser celebrada pela grande amostragem e pela lógica de compartilhamento de conhecimento, ainda é preciso observar que a população sequenciada é majoritariamente caucasiana, o que significa que a representatividade é, de certa forma, limitada.

Por isso, segundo ele, alguns dos achados podem não se aplicar a populações mais miscigenadas e de outras etnias: “Há um problema de representação de populações não caucasianas. Os grandes estudos populacionais sempre tiveram essa limitação, porque era também onde a maior parte do dinheiro para pesquisas se concentrava. Ao longo dos anos, notou-se que alguns resultados acabavam ficando distorcidos quando aplicados em outras populações. Com isso, foi-se dando mais atenção para esse fator e exigindo mais esforços nessa linha”.

Bosco cita como exemplos o projeto Genomas Brasil, que tem um alvo de sequenciar 100.000 indivíduos, o projeto Genomas Raros, que já sequenciou cerca de 9 mil pessoas. “Tudo isso para entender as peculiaridades da nossa população. E temos observado esse movimento em outros lugares também”, completa.

Outro exemplo de olhar internacional para essa questão é o projeto All of Us, do governo norte-americano, que pretende sequenciar o genoma de 1 milhão de cidadãos. Ao anunciar os primeiros resultados esse ano, os pesquisadores destacaram o ineditismo de um estudo desta proporção no país: pela primeira vez, 46% da amostragem é composta por grupos étnicos historicamente sub representados. Para Carpio, o Brasil tem potencial para liderar a tendência de grandes estudos populacionais na região, uma vez que o país já apresenta uma maturidade maior nesse campo de atuação em relação aos países vizinhos:

“A MGI está presente no Brasil desde 2019, e nesta jornada de contribuição, temos observado como o país está cada vez mais estruturado. É um dos poucos países na América Latina que têm capacidade de realizar todas as etapas no seu território, desde a coleta das amostras, o sequenciamento no laboratório e a análise dos resultados. Em geral, é uma oportunidade totalmente nova para a região se envolver, e acredito que o Brasil pode apoiar as nações vizinhas com o seu conhecimento.”

Ele explica que países como México e Colômbia também começaram a se engajar em iniciativas similares, mas ainda há alguns passos para que a genômica se desenvolva de forma mais acelerada. O momento é de construir leis que apoiem e regulamentem pesquisas de sequenciamento, além de ampliar o apoio dos governos locais nesta empreitada, aponta Carpio.

•        Doenças comuns e prevenção são apostas para o futuro

Segundo os especialistas, avançar na direção das doenças comuns é o próximo passo para o futuro da genômica. Com a possibilidade de estudos populacionais cada vez maiores, o foco agora deve ser aprofundar o conhecimento sobre a relação entre a genética e as doenças comuns, especialmente as doenças crônicas não transmissíveis, um dos principais desafios para a saúde pública nas próximas décadas.

Neste contexto, em abril foi lançado o projeto Genoma SUS, que pretende caracterizar aspectos genômicos que impactam o processo saúde-doença dos brasileiros. Com o objetivo inicial de sequenciar 21 mil brasileiros, a atenção está nas doenças infecciosas, do coração, do cérebro, entre outras de grande impacto para o Sistema Único de Saúde (SUS), além de trabalhar temas cada vez mais emergentes, como o envelhecimento e a resposta a fármacos – na linha de pesquisas baseadas em dados de vida real.

“Ao compreender o risco de um paciente para determinada doença, é possível trabalhar a prevenção de maneira mais estratégica”, explica o diretor da MGI. “Com isso, podemos ponderar entre dois tratamentos diferentes e analisar a qual o paciente vai responder melhor de acordo com o seu histórico genético, ao invés de optar por uma que pode comprometer o desfecho da condição no futuro. Essa é uma característica-chave na tecnologia que nos permite melhorar o nível de saúde individual e populacional e, consequentemente, ajudar neste processo de envelhecimento saudável.”

Bosco complementa e cita uma nova iniciativa europeia como exemplo da tendência de prevenção: “O Reino Unido anunciou um novo projeto em que vai sequenciar 100 mil bebês recém-nascidos para entender como isso pode ajudar a identificar precocemente doenças graves que têm intervenção e como essa estratégia impacta no futuro. Esse uso da genômica para a prevenção é algo que deve se expandir muito nos próximos anos.”

Mas para esse futuro se concretizar, há ainda desafios. Um deles é a conscientização a respeito dos benefícios não somente de investir em tecnologias dessa natureza, mas também para que tomadores de decisão, profissionais de saúde, pacientes e familiares compreendam quais são os recursos viabilizados pela genômica. “Há um trabalho a ser feito de analisar e mostrar dados de onde há uma custo-efetividade na aplicação e deixar o tomador de decisão munido de informações para decidir pela implementação”, conclui Bosco.

 

Fonte: Futuro da Saúde

 

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