A imprescindível refundação da Internet
Depois de 35 anos da
concepção da arquitetura da world wide web por Tim Berns-Lee, chegou-se ao
ponto de termos que nos colocar a pergunta: precisamos refundar a Internet?
A resposta se alterna
conforme o interlocutor. Para Maria Farrell e Robin Berjon, autores deste
artigo (https://www.noemamag.com/we-need-to-rewild-the-internet/), por exemplo, devemos dizer sim se formos aprender com a
ecologia. A partir do conceito de “rewilding”, eles defendem que retornemos não
aos tempos românticos anteriores aos anos 90, quando a rede mundial de
computadores, a despeito de sua origem militarista, era povoada basicamente por
acadêmicos e nerds. A ideia é avançar além dos muros. Conforme a
definição da União Internacional para a Conservação da Natureza, “rewilding”
significa “restaurar ecossistemas saudáveis criando espaços selvagens e
biodiversos”.
Mas o que a internet
tem a ver com isso? Para Farrell e Berjon, o ambiente digital encontra-se
atualmente degradado como a natureza e não se configura mais como um
ecossistema.
“Nossos espaços
on-line não são ecossistemas, embora as empresas de tecnologia adorem essa
palavra. Eles são plantations; ambientes altamente concentrados e
controlados, mais próximos da agricultura industrial do confinamento de gado ou
das granjas de frangos que enlouquecem as criaturas presas neles. Todos nós
sabemos disso. Vemos isso toda vez que pegamos nossos telefones. Mas o que a
maioria das pessoas não percebe é como essa concentração atinge profundamente a
infraestrutura da Internet – os tubos e protocolos, cabos e redes, mecanismos
de pesquisa e navegadores. Essas estruturas determinam como construímos e
usamos a Internet, agora e no futuro.” (tradução nossa)
·
Duopólio global
Usando dados recentes,
aos quais acrescentei alguns, os autores nos revelam que vivemos um duopólio
global em quase todos os segmentos que estruturam a web. Por exemplo:
- Os navegadores do Google (Chrome) e da Apple (Safari)
conquistaram quase 85% da participação no mercado mundial.
- Os dois sistemas operacionais de desktop da Microsoft e da
Apple, mais de 80%.
- Mais da metade dos smartphones são da Apple e da Samsung.
- Mais de 99% dos sistemas operacionais móveis são executados
com software do Google (Android) ou da Apple (iOS).
- Dois provedores de computação em nuvem, Amazon Web Services
e Azure, da Microsoft, representam mais de 50% do mercado global.
- Google e a Cloudflare atendem a cerca de 50% das
solicitações globais do sistema de nomes de domínio.
Este fenômeno se
repete no andar de cima da camada lógica e nos dispositivos. Na prática, em
termos de aplicações temos:
- Google, que realiza 84% das buscas globais, e a Microsoft,
com apenas 3%.
- Redes sociais da Meta (Facebook e Instagram) e da ByteDance
(TikTok), que respondem por cerca de 75% dos usuários ativos mensais (aqui
existem exceções porque alguns países desenvolveram suas alternativas –
entre eles, China, Rússia, Coreia do Sul, Indonésia e Vietnã).
- Também com poucas exceções, dois dos principais serviços de
mensageria são da Meta (Whatsapp e Facebook Messenger) e o Telegram, sendo
que os primeiros aplicativos alcançam quase 3 bilhões de usuários mensais
ativos enquanto a aplicação russa conta com 800 milhões.
- Os clientes de e-mail da Apple e do Google gerenciam quase
90% da correspondência eletrônica no mundo.
>>>> Onda
regulatória
Todo este poder de
mercado, e as externalidades negativas derivadas dele, como ameaças à
democracia e prejuízos à saúde mental de crianças e adolescentes, passaram a
motivar uma onda de esforços regulatórios por parte dos Estados nacionais. Sem
ser exaustivo, a lista reúne boa parte do PIB e da população mundiais: os 27
países da União Europeia, os Estados Unidos, a Austrália, o Canadá, o Reino
Unido, a China, a Índia e a Indonésia. Chama atenção neste rol a presença do
berço das big techs, onde o presidente Joe Biden e o Congresso estão formulando
regulamentações que poderão impor determinados limites às chamadas big techs.
Como ele disse em 2021, ao assinar a ordem executiva sobre concorrência:
“Capitalismo sem concorrência não é capitalismo; é exploração”.
Em outra frente,
alguns países estão construindo suas próprias infraestruturas computacionais e
de armazenamento a fim de criar mercados comuns para lidar com o controle e a
centralização exercidos pelas atuais detentoras dos nossos dados. Novamente,
União Europeia e Índia, esta com sua Digital Public Infrastructure (DPI)
replicada pela Presidência brasileira no G-20, estão neste esforço.
Almoço grátis
No fundo, o que está
em jogo no mundo todo, e que impulsiona estes movimentos comerciais
monopolistas e a consequente reação dos policy makers, é o valor
embutido nas commodities digitais: os dados. Como já disseram Yamana, Nirei e
Li (2018) na economia digital nada está tão perto de um almoço grátis do
que a forma com que os dados recebem valor nestes mercados. A cadeia de valor
dos dados (DVC na sigla em inglês) é algo que até hoje carece de mais
transparência e investigação partindo de um olhar atento das autoridades e da
sociedade como um todo. Para os autores, análises econômicas de bens e serviços
digitais que não considerem o valor dos dados podem resultar em políticas
públicas equivocadas.
Ao classificar oito
tipos de plataformas e tentar entender como funcionam os modelos de negócio de
cada uma a partir de suas atividades em relação aos dados, os três
pesquisadores identificaram que seu valor varia em diferentes etapas da cadeia.
Eles descobriram também que a integração vertical na cadeia de valor dos dados
se altera entre empresas, afetando a monetização dos dados e os benefícios
econômicos capturados. Diferentemente de P&D, sustentam no artigo, os dados
podem gerar novos valores por meio da fusão, o que pode dificultar a medição. E
chegaram a uma conclusão que nos parece óbvia seis anos depois: as empresas
online capturam a maior parte dos benefícios devido à falta de conhecimento dos
consumidores sobre o valor de seus próprios dados.
E mesmo depois de
achados como estes, o mundo continua não estando preparado para lidar com uma
economia sub-reptícia, que se estabeleceu longe dos holofotes, gerada pela
forma como funcionam os mecanismos de monetização que as plataformas digitais
criaram para remunerar a prestação de seus serviços, permanecendo ao largo dos
instrumentos de tributação e de outras formas de redistribuição de renda. A
falta de ferramentas vai dos acordos da Organização Mundial do Comércio (OMC),
que preveem regras – um tanto quanto condescendentes é verdade – sobre bens e
serviços digitais, mas não contabilizam os dados em nome do chamado livre fluxo
transfronteiriço, e chega aos institutos de estatística, que ainda não possuem
definições para computar a presença dos dados nos sistemas de contas nacionais
ou classificar atividades empresariais ligadas à economia digital.
·
Padrões de controle
Voltando a Farrell e
Berjon, para dar pistas do porquê é tão difícil avançar rumo a uma internet
mais transparente e aberta, eles destacam que existe um espaço quase invisível,
mas que detém o poder de definir os rumos da web. Forjados no ambiente das chamadas
organizações de desenvolvimento de padrões (SDOs na sigla em inglês), os dois
pesquisadores falam com conhecimento de causa. Sustentam que mais do que
responsabilizar civil e economicamente o uso abusivo que os conglomerados fazem
de suas infraestruturas e modelos de negócio é preciso se preocupar de forma
objetiva, colocando luz sobre quem elabora e toma conta das normas técnicas que
regem a internet.
Trata-se de um grupo
seleto de engenheiros e cientistas da computação – a autobatizada comunidade
técnica – com recursos suficientes para se manterem ativos nas discussões a
respeito dos protocolos e padrões da internet, o que exige tempo e dinheiro. O
artigo sustenta que atualmente esta conta começou a ser paga por algumas das
principais companhias citadas acima.
“O que parecem ser
padrões ‘voluntários’ geralmente são as escolhas comerciais das maiores
empresas. O domínio das SDOs por grandes companhias também molda o que não é
padronizado – por exemplo, a pesquisa, que é efetivamente um monopólio global.
Embora os esforços para abordar diretamente a consolidação da Internet tenham
sido levantados repetidamente nas SDOs, pouco progresso foi feito. Isso está
prejudicando a credibilidade das SDOs, especialmente fora dos EUA. As SDOs
precisam mudar radicalmente ou perderão seu mandato global implícito para
administrar o futuro da Internet.”
·
Revisitando a governança
Como fica claro por
esta forte denúncia, neste campo está em jogo a própria governança e a
arquitetura da Internet. Mais do que enxergar apenas a camada de proteção de
direitos individuais e coletivos na rede mundial, o que é legítimo e
necessário, é preciso também dar visibilidade aos impactos econômicos advindos
deste modelo dentro dos fóruns de coordenação sobre o desenvolvimento e uso da
web.
Debates como os
conduzidos na Organização das Nações Unidas ou em outros fóruns multilaterais
ou multissetoriais não podem encarar os problemas sociais e políticos oriundos
da atuação desregrada das empresas sem discutir que eles não são gerados apenas
pelo conteúdo informacional que circula em seus tubos e conexões. Um modelo de
monetização baseado em dados criado para gerar perfilamento e engajamento
infinitos está condenando todo o resto que a Internet nos trouxe de avanços em
termos políticos, sociais, culturais e mesmo econômicos.
À beira de sediar o
NETmundial+10, evento surgido há uma década como reação à espionagem eletrônica
dos EUA, outra disfunção gerada pelas redes em 2013, que teve a “digital”
das big techs, o Brasil tem condição de ser protagonista de uma
discussão profícua sobre o que poderia vir a ser uma “refundação” da internet.
Baseada nesta mesma promessa, a primeira edição do evento, realizada em São
Paulo em 2014, teve a presença maciça dos principais atores do ecossistema da
internet e foi aberta pela presidenta Dilma Rousseff que sancionou no evento o
Marco Civil da Internet. Vendido como um regramento moderno para sua época, por
enfrentar a questão da neutralidade de rede, o MCI ignorou que a web já era
dominada pelos duopólios globais, que acabaram protegidos pelo Art. 19 ao serem
tratados apenas como intermediários da relação entre usuários podendo ser
responsabilizados apenas ex-post.
Reunindo novamente
atores da sociedade civil, do setor privado, da academia e de governos de todo
o planeta em São Paulo, espera-se que os debates do Netmundial+10 em poucos
dias saiam da acanhada posição de criar espaços de desabafos institucionais e
resoluções de princípios que ficam para a história sem o condão de modificar o
status quo. A janela de oportunidade que se descortina com o momento atual –
riscos sistêmicos advindos do modelo de negócios baseado em dados e a
consequente reação de legisladores e autoridades regulatórias – permitiria se
estabelecer ações concretas a fim de transformar a web antes que seja (mais)
tarde.
Voltando à analogia
ecológica do início, pode-se dizer que as mudanças climáticas do mundo digital
começaram há algum tempo. O ponto central é como iremos nos preparar para
atacar suas causas enquanto já vivemos suas consequências.
Fonte: Por James
Görgen, em Outras Palavras
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