A crença espírita no 'Vale dos Suicidas'
que angustia parentes em luto
Entre as dezenas de
livros espíritas que a tradutora Maria Cecilia Cencini, 63 anos, tem, há um que
ela nunca conseguiu ler: Memórias de um Suicida, da médium Yvonne do Amaral
Pereira (1900-1984). O livro relata o que seria o sofrimento após a morte — ou
desencarne, para os espíritas — de almas de pessoas que se suicidaram, segundo
relatos que a médium teria recebido de espíritos. A obra traz histórias, por
exemplo, de espíritos desencarnados que tiveram que observar, a partir do plano
espiritual, o próprio corpo em decomposição, ou testemunhar parentes encarnados
em sofrimento por conta da morte.
Cencini, que segue o
espiritismo há mais de 15 anos, já havia tentado há algum tempo ler o livro,
mas abandonou a leitura por considerá-la muito "forte". Entretanto,
em 2021, aconteceu algo que a afastou completamente da possibilidade de retomar
a leitura: o filho dela se suicidou quando estava prestes a completar 32 anos.
"É uma obra que com certeza veio elucidar algumas coisas, que eram talvez
desconhecidas. Mas é uma literatura bastante forte, bastante impactante.
Estudando a doutrina, a gente vê que não funciona bem dessa forma", aponta
Cencini. "Eu acho que não é esse caminho. Eu acredito muito mais na
misericórdia divina", diz, indicando acreditar que o filho foi perdoado
pelo ato.
O suicídio é visto no
espiritismo como um ato repreensível — embora se admita algumas atenuantes —
desde as obras organizadas pelo fundador da religião, o francês Hippolyte Léon
Denizard Rivail, mais conhecido por seu pseudônimo Allan Kardec (1804-1869)
A história de Maria
Cecilia e a forma como os espíritas tratam o suicídio são o tema da terceira
reportagem da série “Suicídio & Fé”, que aborda o tabu religioso com o ato,
com foco nas religiões com mais adeptos no Brasil.
A primeira reportagem
mostrou que, por séculos, o suicídio foi visto como um pecado pela Igreja
Católica. Até 1983, havia um documento oficial determinando que suicidas não
recebessem ritos funerários normais, como a missa de sétimo dia.
Igrejas evangélicas
veem o suicídio como um pecado, de acordo com especialistas ouvidos na segunda
reportagem da série. Há relatos de que é comum, nesse meio, escutar que alguém
que se suicidou vai para o inferno.
O número de suicídios
no país vem aumentando ano a ano desde 2016, segundo dados do Fórum Brasileiro
de Segurança Pública. Apenas em 2022, houve 16.262 mortes. Um estudo publicado
na revista científica The Lancet Regional Health Americas em fevereiro mostrou
que a taxa anual de suicídios a cada 100 mil habitantes no Brasil cresceu em
média 3,7% entre 2011 e 2022.
As religiões têm, como
apontam especialistas, uma forte influência não apenas na forma como as pessoas
lidam individualmente com o suicídio, mas também em como as famílias lidam com
a perda de quem tirou a própria vida.
• O que dizem os textos espíritas
Vários livros
importantes de Kardec abordam o suicídio. Neles, tanto as mensagens relatadas
como recebidas dos espíritos quanto as anotações de Kardec indicam que o
suicídio contraria as leis divinas e gera algum tipo de punição ao espírito de
quem se matou.
Em O Céu e o Inferno,
são frequentemente usadas palavras como "castigo" e "pena"
para quem se mata.
Um trecho diz ser
comum que espíritos de suicidas sintam vermes corroendo o corpo, embora as
consequências do ato variem de "duração e intensidade conforme as
circunstâncias atenuantes ou agravantes da falta". Em outro, é dito que
"longa e terrível deve ser a pena dos culpados por se terem
voluntariamente refugiado na morte para evitar a luta" — nesse caso,
referindo-se especificamente ao caso de suicidas que tenham escolhido essa
saída para escapar de forma honrosa de alguma situação.
No Livro dos
Espíritos, médiuns fazem uma série de perguntas sobre o ato de se matar. Os
espíritos respondem que o suicídio "voluntário" seria uma
"transgressão" do direito de Deus sobre a vida —
"voluntário" demarcaria a diferença do "louco que se mata"
e "não sabe o que faz". Também afirmam que "muito diversas são
as consequências do suicídio".
"Não há penas
determinadas e, em todos os casos, correspondem sempre às causas que o
produziram. Há, porém, uma consequência a que o suicida não pode escapar: é o
desapontamento", respondem os espíritos, segundo o livro de Kardec.
"Mas, a sorte não
é a mesma para todos; depende das circunstâncias."
A historiadora e
socióloga Celia Arribas, que estudou o espiritismo em seu mestrado e doutorado,
resume que, do ponto de vista de Kardec, a escolha pelo suicídio seria uma
"triste ilusão" — e isso tem a ver com a perspectiva de duração da
vida para a religião. "O espiritismo traz uma visão de que a vida é
praticamente eterna, no sentido de que a gente tem várias existências: o que
morre é o corpo, e não a alma", diz Arribas. "Não teria muito sentido
se pensar em suicídio, porque o espírito continuaria vivo com as suas
angústias, suas dores."
Arribas, que é
professora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), explica que Kardec
considerava que sua produção tinha um caráter científico — por isso, embora os
livros dele sejam vistos como um "farol", obras posteriores são
bem-vindas. "Há um princípio proposto pelo Kardec de que o espiritismo
precisaria sempre estar ao lado da ciência e dos avanços científicos. Isso abre
a possibilidade de uma renovação constante."
Assim, um livro como
Memórias de um suicida pode ganhar a dimensão que tomou, popularizando a ideia
de que existe um "Vale dos Suicidas" — descrito na obra como um lugar
onde a alma de quem se matou passa por um período de punição e sofrimento.
"O livro tem um cenário bastante excessivo, que olha para os suicidas
condenando essas pessoas”, diz Arribas. "Essa é uma visão que não
necessariamente Kardec defendia, mas a gente tem uma certa autonomia do
espiritismo no Brasil."
O livro da médium
Yvonne do Amaral Pereira foi lançado em 1956. A obra, publicada pela Federação
Espírita Brasileira (FEB), já teve 27 edições em português e foi traduzida para
inglês e francês, além de adaptado para radionovelas. "Não havia então ali,
como não haverá jamais, nem paz, nem consolo, nem esperança: tudo em seu âmbito
marcado pela desgraça era miséria, assombro, desespero e horror", diz um
trecho do livro que descreve o Vale dos Suicidas. "Aqui, era a dor que
nada consola, a desgraça que nenhum favor ameniza, a tragédia que ideia alguma
tranquilizadora vem orvalhar de esperança! Não há céu, não há luz, não há Sol,
não há perfume, não há tréguas!", diz outro trecho.
Após um intenso
período de sofrimento, os espíritos de suicidas do livro pouco a pouco — ainda
no mundo espiritual — refletem sobre sua decisão e passam por uma espécie de
tratamento, com mentores e até uma universidade que os ajudam a se preparar
para uma nova encarnação.
O Vale dos Suicidas
também foi retratado na TV brasileira na novela A Viagem, exibida primeiro pela
Tupi e depois em uma reedição pela Globo, que completa 30 anos esse mês e será
reexibida este ano pelo canal Viva. O personagem Alexandre sofre as consequências
de seu suicídio no Vale — um lugar onde se escuta gritos, o fogo arde,
moribundos perambulam e o personagem é torturado.
• Herança católica no espiritismo
Arribas lembra de
outro livro posterior a Kardec, Missionários da Luz, do médium Chico Xavier.
"O livro traz o relato de um suicida que também vai descrever que ele
vivia num vale de trevas, de aprisionamento, de muita dor”, diz a socióloga.
"Então, a gente tem essas trilhas um pouco pesadas, deterministas,
condenatórias [para suicidas], que têm a ver com a tradição católica de
pensamento."
A pesquisadora explica
que algumas crenças do catolicismo e do espiritismo têm semelhanças, mas também
diferenças. Por exemplo, enquanto o castigo de uma alma é eterno na crença da
Igreja Católica, no espiritismo é transitório. "O céu e o inferno não
existem para o espiritismo. A ideia é que são estados mentais para onde os
espíritos acabam indo por conta da semelhança vibratória", explica
Arribas.
Sociólogo e um dos
diretores da Sociedade Brasileira de Estudos Espíritas (SBEE), Rui Simon Paz
diz que ele e colegas da entidade não acatam a crença de que exista um Vale dos
Suicidas ou o umbral — também comumente apontado como um lugar transitório de sofrimento
para espíritos de suicidas.
Simon Paz aponta que essas
crenças têm origem no que chama de "ranço" da cultura católica no
Brasil, trazendo ideias de punição e castigo.
Na SBEE, são
priorizadas as obras de Kardec e sucessores de uma época próxima, como Camille
Flammarion (1842-1925), Léon Denis (1846-1927), Ernesto Bozzano (1862-1943) e
Gabriel Delanne (1857-1926) — que, segundo o sociólogo, perpetuaram a leitura
de Kardec sobre o suicídio.
Embora as obras de
Kardec indicassem algum tipo de punição para os suicidas, Simon Paz diz que é
preciso sempre levar em consideração o contexto dos livros.
"Toda obra sofre
o curso do tempo", diz o membro da SBEE. "A comunicação é uma
integração de 50% do espírito, 50% do médium. Mas a estética que será
registrada é a estética do médium, e essa estética envelhece. Não vemos [o
suicídio] como castigo, vemos como um passivo", explica, falando em nome
da entidade. "Você se ausentou antes do tempo que deveria permanecer aqui,
e, ao mesmo tempo, deixou de fazer o seu crescimento. É como se você
abandonasse um curso na metade do ano, trancasse matrícula: vai ter que voltar
para refazer", diz, acrescentando que esse passivo pode ser
"difícil", mas tem sempre um "sentido construtivo".
• 'Um ato falho e humano'
Ao adentrar no
apartamento de Maria Cecilia Cencini, logo percebe-se de certa forma a presença
do filho dela ali — em fotos e em muitas pinturas e desenhos que ele, que era
ilustrador, fez e estão expostos pela casa. Também não há uma fala sobre ele
que pareça vir sem alguma emoção — às vezes saudade, às vezes carinho, talvez
um choro contido que não chega e desaguar e, muitas vezes, sorrisos. "Eu
lembro do meu filho com alegria", diz a mãe, ao mostrar uma foto dele que
diz sempre despertar um sorriso nela.
Diferente de muitas
famílias enlutadas pelo suicídio que ela conheceu em grupos de apoio, Maria
Cecilia diz que não quis passar a evitar e isolar o quarto do filho onde ela
própria encontrou o corpo. Cerca de um mês após o suicídio, ela doou as roupas
e materiais de trabalho dele e passou a usar o espaço como seu escritório. Para
ela, que tem mais uma filha, essas atitudes exemplificam sua crença de que já
havia sido preparada no plano espiritual para esta morte. "Dentro da
doutrina espírita, a gente já vem para a vida com um roteiro programado. Aquilo
que não está definido depende do livre arbítrio. Acho que realmente fui
preparada para esse momento da minha vida", diz a tradutora.
"Transformei o quarto dele no meu escritório. Fiz questão disso, porque o
meu filho não se resumia àquilo ali. Eu trouxe a minha força de trabalho aqui
para dentro", conta.
Ela também deixou ali
no cômodo, no cavalete, a última pintura que o filho fez antes de morrer — que
mostra uma mulher com os olhos fechados, aparentemente em prece e com um manto.
Na base, ela deixou vários pequenos objetos que a lembram dele, como um cachorrinho
de brinquedo que ele gostava e uma foto 3x4 do jovem.
O filho dela tomava
antidepressivos, mas Cencini desconfia que ele tivesse um transtorno bipolar
que não foi diagnosticado corretamente. A tradutora está cursando uma
pós-graduação em Suicidologia para entender o que aconteceu com o filho.
"O estado de saúde dele se agravou com a pandemia: ele ficou mais recluso
e tinha medo de sair na rua", relata a mãe.
Maria Cecilia acredita
que o filho agora está passando por um período de aprendizado, guiado por
espíritos bondosos que estão ajudando-o a refletir sobre o ato do suicídio e
preparando-o para uma futura encarnação. "Não digo que não haja um período
de sofrimento para o espírito quando ele desencarna, porque existe uma
confusão", diz a tradutora, dizendo que espíritos desencarnados de várias
formas, não só pelo suicídio, passam por um período de angústia para entender
onde estão e o que aconteceu com eles. "Mas isso é absolutamente normal. É
nesse ponto que o espírito é auxiliado [por espíritos benfeitores]."
A tradutora cursou por
anos uma formação em espiritismo, que ela prefere definir como uma doutrina de
vida em vez de religião. Dos escritos de Kardec, Cencini foca nos
"atenuantes" que podem suavizar as consequências do suicídio para o
espírito.
"A bondade de
coração dele [do filho] com certeza contribuiu para ele hoje estar bem",
diz a tradutora. Ela também destaca a diferenciação que Kardec faz entre o
suicídio voluntário e a decisão de um "louco". "Simplesmente
todas as pessoas que tinham qualquer tipo de transtorno mental eram
classificadas como louca", aponta a tradutora, referindo-se à época das
obras de Kardec. "Então, o 'louco' é acolhido, é perdoado, porque ele tem
um transtorno."
Para Cencini, o
suicídio é um "um ato falho e humano de um espírito que estava com sérios
comprometimentos". Segundo ela, o espiritismo foi importantíssimo no luto.
"Quem tem fé e entende o propósito das coisas na vida consegue superar as dificuldades
e buscar dentro delas o aprendizado", afirma a tradutora. "E quando
você vibra amor, faz chegar isso até o seu ente querido desencarnado. Ele
recebe todos os seus bons pensamentos, todas as suas preces."
"Aprendi a me
dirigir ao meu filho como 'meu filho amado'. Quando repito isso, sinto que vai
direto para ele. Sinto como se saísse do meu coração uma luz de amor que chega
até ele", diz a mãe.
O espiritismo é a
terceira religião com mais seguidores no Brasil, atrás do catolicismo e das
igrejas evangélicas. Tem 3,8 milhões de adeptos, cerca de 2% da população
segundo o Censo 2010. Houve um aumento em relação ao Censo 2000, quando os
espíritas eram 1,3% da população, ou 2,3 milhões de pessoas. Mas Celia Arribas
afirma que o número é na prática maior, porque, na pesquisa demográfica, o
participante geralmente só indicava uma religião, e não várias.
Segundo o IBGE, no
Censo 2010, os entrevistados até podiam declarar pertencer a várias religiões,
mas os funcionários responsáveis por coletar os dados não tinham sido tão bem
orientados sobre essa possibilidade quanto em 2022 (cujos resultados sobre religião
ainda não foram divulgados). "As pessoas transitam no centro espírita.
Muitas. Há uma forte circulação de livros espíritas, e as pessoas leem sem
necessariamente se autodeclararem espíritas”, diz a pesquisadora. "Tem o
que a gente chama de simpatizantes do espiritismo, e aí essa quantidade aumenta
absurdamente, não vai ficar só em 2%."
Bruno*, de 46 anos, é
uma das pessoas que está fora desses 2%, mas diz ter uma afinidade com o
espiritismo e conhecimento sobre a religião. Ele cresceu em uma família
católica, deixou de seguir essa fé, mas afirma seguir uma "crença
cristã".
Em junho de 2023, o
irmão de Bruno se matou, aos 42 anos. Ele enfrentava uma depressão, frustrações
profissionais e a perda do pai e da mãe em um curto período de tempo. Bruno
acredita que o irmão não estava seguindo o tratamento para depressão corretamente.
Antes da morte, Bruno
já tinha se aproximado do espiritismo com a leitura de livros de Kardec, Chico
Xavier e do médium Divaldo Franco — mas nunca foi a um centro espírita. Foi
então que, após a perda, ele buscou na internet qual seria o destino de alguém
que se matou segundo o espiritismo. "Quando ocorreu o problema com meu
irmão, fui procurar saber. Eu queria uma explicação", diz Bruno.
Ele chegou então a um
vídeo com milhares de visualizações em que um influenciador espírita fala das
possíveis consequências para a alma de um suicida. Entre elas, a obrigação de
conviver por décadas, no plano espiritual, com o próprio corpo em decomposição
e, ao reencarnar, sofrer com doenças debilitantes. "Ele era uma pessoa
boa, não fazia mal a ninguém. Um cara totalmente do bem. Conheço pessoas muito
piores. Por que ele [meu irmão] sofreria tanto?", questiona Bruno.
"Acho que se ele
parasse para pensar mais meia hora, talvez ele não tomaria aquela
atitude", diz. "Será que por uma decisão tomada de supetão, a pessoa
pode ser condenada a passar por um martírio após a morte?"
Bruno conta que, até
hoje, não está "lidando muito bem" com a perda. "Penso nele
todos os dias. Acho que penso em todas as horas. Tenho muita pena dele, né?
Queria tanto que ele tivesse conversado comigo...”, lamenta.
Bruno relata
frequentemente pedir a Deus que dê algum "sinal" de como seu irmão
está. "Queria sentir que ele tá bem. Como está o espírito dele? Será que
está sofrendo? Está arrependido?", indaga.
• Alento e dor
Celia Arribas cita que
começaram a surgir nos últimos anos autores e obras espíritas que tratam do
suicídio com "um pouco mais de sensibilidade". Ela vê isso com bons
olhos, porque leituras como a de Memórias de um Suicida intensificaram sua própria
dor.
A mãe de Arribas se
suicidou quando a socióloga tinha 20 anos. Seu irmão fez o mesmo duas décadas
depois. A pesquisadora procurou o espiritismo no final da vida da mãe para
entender melhor o adoecimento mental dela, que tinha transtorno afetivo
bipolar. Hoje, Arribas sê vê mais como estudiosa do que praticante do
espiritismo.
Mas a socióloga diz
que a religião teve um papel misto no seu luto — em alguns momentos, trouxe
alívio e, em outros, dor. "O espiritismo foi muito reconfortante para
tentar entender algum sentido para morte, para dar uma explicação de que a vida
continua e para eu não adoecer fisicamente. São princípios que me confortaram e
me confortam até hoje."
Por outro lado,
Arribas conta ter abandonado a leitura de Memórias de um Suicida quando a morte
da mãe ainda era recente. "Eu falei: ‘Não, não tem condição’. Mas foi por
conta disso que pensei: 'Bom, será que é só essa visão mesmo?'”, afirma a pesquisadora.
"Aí, fui tentando estudar, entender, e não fiquei só nas explicações
espíritas."
Rosana Amado Gaspar,
presidente da União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo (USE-SP) e
membro da Federação Espírita Brasileira (FEB), cuja editora publica Memórias de
um suicida, não recomenda que a obra seja lida por quem tenha acabado de perder
uma pessoa por suicídio. A editora tem outros livros que retratam o sofrimento
de espíritos suicidas, como O martírio dos suicidas e Suicídio e vida após a
morte: amargura e remorso de poetas suicidas.
Gaspar destaca que
Memórias de um Suicida não retrata um destino único no mundo espiritual — o
Vale dos Suicidas — para quem se mata e mostra, no final, o perdão divino para
quem tira a própria vida. "As pessoas ficam amedrontadas, mas o livro está
contando a história de um grupo de espíritos que estão naquela região",
diz.
Gaspar ressalta que os
livros de Kardec preveem destinos variados para as almas de suicidas. "A
pessoa que está pensando no suicídio, ao ler uma obra dessa [Memórias de um
Suicida], fala assim: 'Esse grupo teve essa experiência ruim. Então, eu não vou
ter essa mesma experiência'. Ele faz uma prevenção", afirma. "E o
Memórias de um Suicida é interessante porque, quando o espírito realmente se
arrepende, ele conta com a misericórdia divina."
Na doutrina espírita,
explica Arribas, Deus não é necessariamente uma figura personificada, mas tem
papel importante. "No espiritismo, não há esse Deus com barba branca, esse
homem gigante. É uma força, é algo que não tem forma, que seja. Mas é Deus:
onipresente, onipotente, onisciente", esclarece a socióloga. "A
figura de Cristo também é muito central no sentido de uma moral. Tanto que a
ideia de caridade se espelha na vivência do Cristo."
Gaspar afirma que,
para o espiritismo, o suicídio é uma "transgressão à lei de Deus",
mas não existe o conceito de pecado. "Nada no espiritismo é
proibido", diz ela, destacando que o que há são "consequências".
Gaspar afirma que
iniciativas pela prevenção ao suicídio de organizações espíritas normalmente se
juntam a "campanhas de valorização da vida" que se colocam contra o
aborto e a eutanásia. Uma dessas iniciativas fez surgir, em 1962, uma das organizações
brasileiras mais conhecidas na prevenção ao suicídio: o Centro de Valorização
da Vida (CVV).
A entidade, que atende
gratuitamente em regime de plantão pessoas que pensam em se matar, nasceu da
iniciativa de uma turma da Escola de Aprendizes do Evangelho da Federação
Espírita do Estado de São Paulo (Feesp).
Jacques Conchon
(1942-2018), fundador do CVV, foi quando jovem o responsável por mobilizar os
colegas para a iniciativa. A ideia foi inspirada no trabalho da organização
Samaritans em Londres, comandado pelo sacerdote anglicano Chad Varah. Assim, no
início, a maioria dos primeiros voluntários do CVV era espírita, mas isso foi
mudando com o tempo.
Carlos Correia,
voluntário do CVV desde 1992 e porta-voz da organização, conta à BBC News
Brasil que os voluntários usavam no começo um número de telefone da própria
Feesp. Ele relata também que, por motivos naturais, a iniciativa começou a
circular primeiro no meio espírita. "Claro, o espaço que eles tinham
inicialmente para divulgar o trabalho eram os meios de comunicação espíritas, e
naturalmente os leitores também eram."
Entretanto, Correia
garante que a doutrina religiosa nunca teve muito espaço no CVV. "Não
havia um lado espiritual, religioso, no sentido da doutrina espírita, mas sim o
princípio de ajuda ao próximo", afirma. Ele acrescenta que, com o passar do
tempo, o vínculo com o espiritismo foi desaparecendo. "Eles perceberam que
tinham que desvincular [da religião] para ampliar o crescimento, para acolher a
todos. Isso [o caráter religioso] poderia ser uma barreira, porque as pessoas
poderiam pensar que teria uma doutrinação", explica Correia.
• Lidando com o luto e com a fé
Para a psicóloga Karen
Scavacini, doutora pela Universidade de São Paulo (USP), as religiões em geral
têm o potencial de ajudar na prevenção do suicídio e nos cuidados com quem
perdeu alguém que se matou, a chamada posvenção. "Quanto mais religiosos
falando abertamente sobre suicídio, sobre as questões de saúde mental, e
mostrando através da sua fala e de seus atos que essas pessoas precisam ser
cuidadas e acolhidas, cada vez mais a religião se torna um fator de
proteção", defende Scavacini, fundadora e diretora do Instituto Vita Alere
de Prevenção e Posvenção do Suicídio.
A psicóloga diz que há
muitas evidências científicas de que a espiritualidade auxilia a prevenir o
suicídio por trazer esperança e sentimento de pertencimento a uma comunidade,
dentre outros fatores. Mas Scavacini afirma que, quando as religiões trazem "vergonha
e exclusão" relacionadas ao suicídio, elas se tornam prejudiciais.
O impacto da religião
em quem perdeu uma pessoa por suicídio pode ser particularmente
"devastador", diz a psicóloga.
É uma situação que ela
diz já ter testemunhado muitas vezes no consultório. "Os enlutados trazem
muitas experiências. A própria fala de que foi 'Deus que quis'. Que Deus é esse
que quer que alguém que se mate? Não faz sentido.” As famílias compartilham com
Scavacini muitas histórias de falas inapropriadas em velórios e cerimônias
religiosas. "São falas que colocam na família, que já está passando por
essa perda absurda, a culpa de ter ocorrido esse suicídio."
Outra fonte de
sofrimento é justamente o destino que terão as almas das pessoas que se
suicidaram. "Primeiro, lógico, há um acolhimento, mas depois [o estímulo
a] um pensamento mais crítico do que faz sentido para ela. O que pode acalmar o
seu coração? O que vai te ajudar nesse processo de luto?", exemplifica.
"Então muitas famílias chegam à conclusão de que aquela crença ainda não
conseguiu entender exatamente o que é o suicídio e que não pode falar que
aquela pessoa está em sofrimento."
No espiritismo, essa
pergunta sobre o destino de uma pessoa que se suicidou muitas vezes encontra
alívio nas cartas psicografadas — mensagens enviadas por um espírito por meio
de um médium.
Scavacini relata ser
muito comum pessoas enlutadas pelo suicídio buscarem essas cartas, mesmo quem
não é espírita. "Na maioria das vezes, elas recebem mensagens de que a
pessoa está bem. Para o enlutado, é um alívio enorme", diz a psicóloga. Ela
destaca que, na terapia, não importa tanto o questionamento sobre a veracidade
dessas cartas e sim como isso vai ajudar no processo de luto.
Mas ela diz ser
preocupante quando há a cobrança de valores muito altos em dinheiro para
receber cartas psicografadas. "Tem locais onde não se cobra nada e tem
pessoas que cobram valores absurdos. Aí também é nosso papel olhar e trazer um
pouco de reflexão", diz. "Como psicóloga, sempre vou tentar entender
qual é o papel da espiritualidade, da religiosidade na vida daquela pessoa. Se
perceber que tem um valor positivo, isso vai estar dentro do meu
tratamento", conclui.
O caminho que inclui
refletir e às vezes superar o que diz uma religião sobre o suicídio, citado
pela psicóloga, foi exatamente a trilha pela qual Bruno passou depois da morte
do irmão. "Tá certo que [o suicídio] é uma atitude antinatural. Mas a gente
vê que Deus é misericordioso. Jesus na cruz falou para o ladrão: 'Se se
arrependeu de coração, eu te digo hoje, estarás comigo no paraíso'", diz
Bruno. "Então, essa fala de Jesus é contraditória com essa afirmação do
Vale dos Suicidas. Sempre me pauto por Cristo, as ações dele no Evangelho, e me
pergunto: 'Como ele lidaria com esse assunto hoje?'"
*Nome fictício, a
pedido do entrevistado
Fonte: BBC News Brasil
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