A vida e carreira de Javier Milei, o
anarco-capitalista que promete abalar o sistema com mudanças radicais na
Argentina
Javier Milei — O Leão, O
Rei, O Louco, o Rara Avis —, líder do Movimento Liberdade Avante, o homem que
prometeu revolucionar tudo para transformar a Argentina novamente em uma
potência global, avançou no domingo (22/10) para o segundo turno das eleições
presidenciais após obter 30% dos votos.
Milei, que esperava
vencer no primeiro turno depois de surpreender e vencer as primárias em agosto,
competirá em 19 de novembro com o Ministro da Economia, Sergio Massa, que
obteve 36% dos votos.
Os analistas preveem uma
disputa no segundo turno sobre o papel que o Estado deve desempenhar na vida
dos argentinos.
Mais de seis milhões de
pessoas apoiaram as propostas que Milei descreve como "libertárias" e
"anarco-capitalistas", incluindo a dolarização da economia através de
uma "competição livre de moedas", a eliminação do Banco Central e a
drástica redução do tamanho do Estado, através da eliminação de ministérios,
obras públicas e privatização de empresas estatais.
Se Milei vencer no
segundo turno, ele se tornará o primeiro economista a chegar à Casa Rosada, um
fato significativo em um país que já foi um dos mais ricos do mundo, mas que há
anos sofre com uma inflação anual de 140% e com 40% da população abaixo da
linha de pobreza.
Em contraste com Massa,
Milei afirma que gastará menos, não mais.
Ele também promete
combater o que chama de "casta política". De fato, o desgaste com a
política tradicional e a falta de alternativas parecem ter trabalhado a seu
favor.
"Ele consegue captar
o cansaço dos ricos, dos pobres, dos de classe média, dos jovens, dos adultos,
o cansaço de todos", disse Juan Carlos de Pablo, economista da
Universidade de San Andrés e amigo de Milei há mais de 30 anos, à BBC Mundo.
"Milei sabe conectar
'do lado exótico' com o cansaço da sociedade argentina, que prefere mandar tudo
às favas a continuar vivendo como vive agora", disse Juan Negri, diretor
da carreira de Ciência Política e Governo da Universidade Torcuato Di Tella.
Mas quais são os marcos
na vida e carreira de Javier Milei?
·
Sem medo
Javier Gerardo Milei
nasceu em 22 de outubro de 1970 na cidade de Buenos Aires e cresceu no bairro
de Villa Devoto em uma família de classe média.
Seu pai, Norberto Horacio
Milei, de 78 anos, passou a vida trabalhando em ônibus, primeiro como motorista
e depois como proprietário de sete linhas de transporte. Sua mãe, Alicia Luján
Lucich, de 73 anos, é dona de casa.
Ele descreve sua infância
como reservada, dividindo seu tempo entre os estudos e o esporte. O apelido de
"O Louco" foi dado a ele quando frequentava a escola Cardenal
Copello, um sinal de que naquela época seu tom, palavras e imagem eram únicos
entre seus colegas.
Ele chegou a jogar como
goleiro no Club Atlético Chacarita Juniors, da segunda divisão do futebol
argentino, uma posição que, em suas próprias palavras, melhor refletia seu
caráter singular.
No entanto, como ele
mesmo contou, o que realmente marcou sua infância foi a violência. Tanto que,
desde 2010, ele não tem mais contato com o que ele prefere chamar de seus
"progenitores".
Milei lembra que, em 2 de
abril de 1982, enquanto assistia pela televisão o presidente de fato Leopoldo
Galtieri anunciar o desembarque de tropas argentinas nas Ilhas
Malvinas/Falklands, sob controle do Reino Unido, o que marcou o início de uma
guerra que tirou a vida de 655 combatentes argentinos e 255 militares
britânicos, ele tinha apenas 11 anos e disse a seu pai que a decisão do governo
militar lhe parecia um "delírio" devido à desigualdade de forças
entre os exércitos.
"Meu pai teve um
acesso de fúria. Ele começou a me bater. Ele me chutou pela cozinha",
lembrou Milei em uma entrevista ao jornalista Agustín Gallardo cinco anos
atrás.
"Quando cresci, ele
parou de me bater e passou a infligir violência psicológica", contou.
"Ele sempre me disse que eu era lixo, que eu iria morrer de fome, que eu
seria inútil."
Mas, na perspectiva de
Milei, o abuso físico e psicológico que ele sofreu na infância e juventude, em
vez de enfraquecê-lo, o fortaleceu.
"Isso fez com que
agora eu não tenha medo de nada", afirma.
·
O verdadeiro chefe
Mas "O Leão",
como seus seguidores o chamam devido a sua juba — um apelido que muitos
aproveitaram vendendo camisetas com sua figura —, não cresceu sozinho. Karina
Milei, sua única irmã, um ano e meio mais nova do que ele, desempenha um papel
central em sua vida.
Apelidada no masculino
como "O Chefe", Karina tem sido peça fundamental na formação política
que o levou à presidência. Milei reconhece que "sem ela, nada disso teria
acontecido".
Milei comparou o vínculo
deles com o do profeta mais importante do judaísmo, Moisés, e seu irmão Aarão:
"Moisés era um grande líder, mas não um grande divulgador. Deus enviou
Aarão para que ele se comunicasse. Eu sou para a Kari o que Aarão é para
Moisés".
Milei, que se considera
católico, mencionou a possibilidade de se converter ao judaísmo e expressou
críticas severas ao Papa Francisco, a quem chamou de "representante do
maligno na Terra" e que "tem afinidade com comunistas
assassinos".
Embora tenha amenizado
seu discurso, como fez em outras ocasiões, as críticas ao Papa estão alinhadas
com a rejeição contundente que ele demonstrou ao comunismo e socialismo,
afirmando que isso o coloca em sintonia com outros líderes de extrema-direita,
como o brasileiro Jair Bolsonaro, o chileno José Antonio Kast e o partido
espanhol Vox.
Na imprensa, Milei tem
sido comparado várias vezes ao presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
"Minha afinidade com Trump e Bolsonaro é quase natural", disse em
relação ao líder norte-americano e ao ex-presidente do Brasil.
Caso seja eleito
presidente, já afirmou que se distanciará da China, país que investiu
consideravelmente na Argentina nos últimos anos, e do Brasil, já que o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva é de esquerda.
"Se eu for eleito
presidente, meus aliados serão os Estados Unidos e Israel", declarou com
firmeza.
Sobre sua vida pessoal,
sabe-se que ele é um amante do rock e liderou a banda "Everest",
dedicada a fazer versões das músicas dos "The Rolling Stones". Milei
mantém seu estilo roqueiro, com jaqueta de couro e longas madeixas, embora também
tenha revelado ser um apaixonado por ópera.
Ele também fala
repetidamente de seu amor por seus cães, chamados Conan, Murray, Milton, Robert
e Lucas, nomeados em homenagem aos economistas liberais Murray Rothbard, Milton
Friedman e Robert Lucas.
"Agradeço a vitória
aos meus filhotes de quatro patas", disse após vencer as primárias de
agosto, referindo-se aos seus cinco mastins, cópias genéticas de um cão chamado
Conan, criados em um laboratório no norte do Estado de Nova York. Ele não tem
filhos e nunca conviveu com um parceiro ou parceira.
As únicas namoradas
conhecidas são personalidades famosas no mundo do entretenimento: a cantora
Daniela Pérez e a humorista Fátima Flórez, com quem anunciou um relacionamento
algumas semanas após sua vitória nas primárias de agosto passado. De acordo com
relatos da imprensa, foi ela quem o apelidou de "O Rei", em
referência ao leão.
·
O 'catecismo' do
anarco-capitalismo
A primeira vez que Javier
Milei votou para presidente foi em 1989. Naquele ano, ele não escolheu o
peronista Carlos Menem, que acabou vencendo, nem o representante do governo, o
radical de centro-direita Eduardo Angeloz.
Naquelas eleições, ele se
inclinou pelo político, militar e economista Álvaro Alsogaray, que na década de
1950 foi ministro da Indústria no governo de facto de Pedro Eugenio Aramburu e
é reconhecido como o principal defensor do liberalismo na Argentina na segunda
metade do século 20.
Com o passar dos anos, no
entanto, Milei esclareceu que as ideias de Alsogaray não refletem com precisão
suas preferências políticas. Ele prefere se identificar como
anarco-capitalista, uma corrente que busca minimizar o papel do Estado na
economia, ou, como ele mesmo colocou, "um 'não-Estado'".
É uma proposta radical e
complexa, que seus críticos alertam que pode funcionar bem como discurso, mas
que pode se tornar um problema na prática diante da eventual perda de empregos
públicos e de programas de assistência social dos quais depende uma boa parte
da população. Na Argentina, as universidades são gratuitas há quase um século,
o sistema de saúde pública é robusto, e o emprego no setor público, acima da
média regional, representa 18% dos trabalhadores empregados.
No entanto, embora ele
repita isso e o caracterize tanto, Milei nem sempre foi um
"anarco-capitalista". Nos primeiros anos de sua carreira como
estudante de Economia na Universidade de Belgrano, assim como durante as
mestrados que realizou no Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social
(IDES) e na Universidade Torcuato Di Tella (UTDT), ele se considerava um
liberal clássico.
"Naquela época, ele
era um economista matemático, um neoclássico tradicional, com uma atração
especial por matemática", lembra Stefanoni, que se dedicou nos últimos
anos ao estudo do movimento libertário na Argentina e cursou Microeconomia na Universidade
de Buenos Aires com Milei como professor.
Foi somente em 2014 que
Milei aderiu ao mundo da Escola Austríaca, graças à leitura do libertário
Murray Rothbard, um economista americano reconhecido por unir ideias
libertárias à extrema direita e dar forma ao chamado
"paleo-libertarismo".
"Milei adota ideias
de um libertarianismo de extrema direita e tenta aplicá-las na Argentina, algo
sem precedentes neste país", diz Stefanoni.
Para o economista Juan
Carlos de Pablo — que acredita que essas ideias têm aspectos excelentes e
outros muito ruins, como a crença de que não há falhas de mercado — Milei
adotou a Escola Austríaca "de forma extrema, mais como um catecismo do que
como um pensamento".
O mesmo pode ser dito do
liberalismo com o qual frequentemente explica suas decisões.
Um diálogo que
exemplifica claramente a liberdade que ele defende é aquele que ele teve no
canal TN, depois que seu partido votou contra uma lei para expandir o programa
de combate a doenças cardíacas congênitas, uma das principais causas de
mortalidade em recém-nascidos. Quando perguntado sobre a razão da recusa, ele
respondeu: "Isso implica mais intervenção do Estado na vida dos indivíduos
e mais gastos. Isso não funciona assim. Nós votamos com base nos princípios
liberais".
No mesmo contexto, há
algumas das posições que mais preocupam aqueles que o consideram um salto no
escuro, como sua oposição ao aborto e ao feminismo, sua defesa do porte de
armas e da venda de órgãos, e a ambiguidade com que ele se referiu até mesmo ao
tráfico de bebês.
·
'Moralmente superiores'
Embora Milei tenha
ocupado seu primeiro cargo público apenas em 2021, quando foi eleito deputado
pela capital, ele já havia incursionado no âmbito público como divulgador das
ideias libertárias.
Foi no início dos anos
2000 que ele se aproximou dos meios de comunicação e em 2015 começou a aparecer
com mais frequência.
O jornalista argentino
Roberto García, um dos primeiros a convidá-lo para um programa de televisão,
notou que ele era um homem que "dizia coisas diferentes dos outros economistas".
Na época, que era diretor
de redação do jornal Ámbito Financiero, o convidou para falar sobre seus
relatórios econômicos, mas rapidamente percebeu que Milei tinha a habilidade de
manter a audiência atenta devido ao seu tom fervoroso.
"Milei é um rara
avis", diz García à BBC Mundo e afirma que há 15 anos ninguém poderia
imaginar que algumas das propostas de Milei poderiam ser aceitas pela sociedade
argentina.
Foi nesse contexto que
ele começou a promover o que chamou de "batalha cultural", na qual
introduziu questionamentos que raramente eram ouvidos até então, como a
possibilidade de dolarização ou críticas ao consenso alcançado em relação aos
direitos humanos após o governo militar dos anos 70 e 80.
"Os esquerdistas
estão perdendo a batalha cultural. Enquanto continuarem repetindo suas
mentiras, nós, os liberais, continuaremos defendendo nossas verdades.
Venceremos porque somos moralmente superiores", disse Milei em 2018.
Na televisão, ele
construiu uma imagem que soube se conectar com a ansiedade econômica dos
argentinos que querem mudanças e se identificam com ele.
"Milei criou um
personagem para a televisão. Muitas vezes eu disse a ele para ter cuidado, para
não enlouquecer fazendo-se de louco", confidencia seu amigo Juan Carlos de
Pablo, com quem Milei trocava opiniões sobre o pensamento econômico e alguns
discos de ópera. "Não é a primeira vez que o personagem devora a
pessoa", indica.
Estabelecido como figura
nos meios de comunicação, chegou a vez do que ele chamou de "batalha
política", que começou há dois anos com a fundação do partido La Libertad
Avanza, com o qual disputou as eleições legislativas de 2021 e superou as
melhores expectativas ao obter 17% dos votos na cidade de Buenos Aires.
Além dos corredores das
universidades e dos estúdios de TV, ele passou pela Corporación América, um
grupo do poderoso empresário Eduardo Eurnekian, que administra os principais
aeroportos da Argentina e da América Latina, onde ocupou o cargo de
Economista-Chefe até o dia anterior à sua posse como deputado em 2021.
Dois anos depois, Milei
conseguiu chegar ao segundo lugar na corrida presidencial, tendo ocupado apenas
um cargo público, com um partido novo e diversificado, que não conta com
governadores regionais.
A primeira questão que se
coloca em uma eventual presidência, se ele vencer em 19 de novembro, é até que
ponto suas ideias radicais poderão ser realmente aplicadas a partir de um
Estado que ele considerou seu principal "inimigo" e em um ambiente
que ele conhece pouco porque despreza.
Para o segundo turno, ele
precisará ampliar sua base de eleitores e satisfazer um eleitorado
diversificado, com expectativas muito diversas e urgentes.
Se Milei conseguir chegar
à presidência, iniciará o verdadeiro teste para El Rey, El León, El Loco,
o Rara Avis, o homem que expressou sua fúria contra o que ele se
tornará a partir desse dia: o líder do governo e do Estado argentino.
"Por meses me
chamaram de louco por propor um caminho diferente para nosso país. A loucura é
continuar fazendo a mesma coisa e esperar resultados diferentes", disse
durante a campanha.
Em 19 de novembro,
saberemos o quanto sua proposta de ruptura realmente impactou a Argentina.
Fonte: BBC News Mundo
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