Roberto
Amaral: Na antessala do horror - lembranças do golpe de 1º de abril
Desde 1961, com a derrota imposta pelo povo nas ruas ao golpe
militar que intentara impedir a posse de Jango, vivíamos um processo histórico
tenso.
Hoje, com o distanciamento de tantos anos, diríamos que tenso,
mas muito rico, atravessado que foi por uma realidade em construção, povoada
por dúvidas e receios, muitos sonhos e muitas esperanças.
Com os termos de hoje, diria que vivíamos de forma aguda o
teatro de uma grande polarização, a que nos persegue há 500 anos, entre a
necessidade do avanço (então o pleito das reformas de base, ainda hoje por
serem realizadas) e a resistência do statu quo, nome de fantasia do atraso e da
concentração de renda, de escandalosa injustiça.
Acreditávamos, a esquerda de então, na revolução brasileira,
vista como em processo, e nos considerávamos construtores de uma nova
sociedade.
A direita, por seu turno, a um tempo negava a ruptura e a
conciliação, e direita e esquerda disputavam aliança com os militares, de um
lado os “entreguistas”, de outro, o nosso campo, os legalistas, herdeiros do
Marechal Lott.
Em certos momentos tínhamos a sensação de tocar com as mãos o
horizonte socialista, nossa utopia de sempre, e ao mesmo tempo confiávamos no
governo João Goulart, o que punha rédeas em nosso deslumbramento revolucionário
juvenil.
Muitos achavam inconcebível os velhos generais abrirem as portas
do poder para sargentos, políticos de esquerda, “empresários progressistas”,
estudantes e camponeses sem terra.
Nossos ideólogos no PCB ensinavam que a primeira fase da
revolução seria em aliança com a burguesia nacional.
Contava-se, de igual, com a estabilidade do governo Jango,
assentado em larga maioria no Congresso e festejado pelo apoio popular, apesar
da campanha ferrenha que lhe movia a grande imprensa, sempre reacionária. E,
sobretudo, confiávamos na sua base de sustentação na caserna, que se dizia
forte. Era o tal do “dispositivo militar do general Assis Brasil”.
O país discutia as reformas de base, a plataforma-síntese de
nosso projeto e o divisor de águas da política. O país era uma só assembleia, e
discutia-se seu destino em auditórios por todo o país.
Certamente alcançou-se, naquela altura do século passado, o
momento de maior nível de educação das massas e organização popular.
Eram os nossos anos dourados, após o sucesso de JK; os anos do
Cinema Novo, de Maria Esther Bueno, nossa tenista campeã, do Brasil bicampeão
mundial de futebol ao lado do Brasil das ligas camponesas, da UNE, da Frente
Parlamentar Nacionalista, das centrais sindicais em ebulição e do crescimento
do movimento popular. Mesmo a Guerra Fria nos favorecia, e foi um marco a
viagem de Iuri Gagarin.
Mas a lua tem duas faces: nossos avanços eram acompanhados pelo
avanço dos centros da reação que se espalhavam Brasil afora, como o IBADE
(encarregado de financiar as candidaturas de direita nas eleições brasileiras)
e o IPES (formulador da doutrina golpista).
Nas eleições de 1962 a direita comprometida com o golpe havia
eleito os governadores de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, o chamado
centro dinâmico do país, aproximadamente 40% da população e 60% da economia
nacional.
A partir de 1963 sentíamos, sem clareza quanto ao significado,
que algo impalpável se movia no quadro tradicional da política brasileira: a
rebelião dos sargentos em Brasília e o motim dos marinheiros no Rio. Eram fatos
bastante objetivos para serem ignorados.
O recuo de Jango, retirando do Congresso o pedido de decretação
do estado de sítio, que dizia amparado no apoio dos ministros militares e com o
qual pretendia atingir o governador Carlos Lacerda, da Guanabara, seu principal
opositor, era evidente indicador de conflito no seu núcleo mais íntimo: contra
o estado de sítio moveram-se Arraes e Brizola, a Frente Parlamentar
Nacionalista, a UNE e as centrais sindicais.
Consolidava-se a ideia da iminência de um golpe, quando
sonhávamos com a revolução.
No Rio, ex-vice-presidente da UNE, fui conversar com José Serra,
então presidente da entidade e quadro político influente. A conversa confluiu
para o plano nacional, e para o golpe, que não se expunha, mas se sentia.
Indagado sobre sua visão, o líder estudantil que seria ministro de Estado no
governo FHC e governador de São Paulo, respondeu algo que ainda relembro,
passados tantos anos: “- O golpe será dado. A dúvida é simplesmente sobre a
iniciativa, se da direta ou da esquerda”.
Voltaria a ver o Serra de longe, daí a poucos dias, discursando
no palanque do comício de 13 de março. Passadas dezenas de anos, nos
reencontramos no Recife, no velório de Miguel Arraes. Ele não se recordava do
diálogo.
Mas, de fato, a esquerda, ou pelo menos setores da esquerda
vinculados ao Partidão, já contavam com o golpe, a nosso favor, mas comandado
pelos generais, e cuidavam de tomar assento. Estava na esquina o governo
democrático-nacionalista e era a hora de negociar sua composição.
Algo como dois dias passados do encontro com Serra, deparo-me
com Antônio Carlos Peixoto, intelectual de primeira linha do PCB, assistente da
fração da UNE: nosso amigo Fco. Faria, vice-presidente, iria representar a
entidade em reunião que começaria a definir nosso futuro ministério. O Partidão
teria dois votos, o seu, da organização, e aquele que chegaria no galope da
entidade estudantil. O golpe não seria das Forças Armadas, nem contra o povo.
O comício da Central foi um marco e mudou muitas cabeças,
inclusive a minha. Antes reticente em relação às vias de conquista do poder,
passei a me incorporar ao contingente dos conquistados pela demonstração de
força para uma imediata e irresistível conquista do poder.
No dia 17 de março, havia o que comemorar. Era o aniversário do
Partidão (que desfrutava de plena liberdade e de uma legalidade fatual), e a
festa foi uma conferência de Prestes, nosso secretário-geral e líder quase
mítico. A “festa” foi no 9º andar da ABI, e constituiu de longa e didática
preleção sobre o processo social brasileiro e a presença dos militares em nossa
história.
Relembro, de memória, três pontos que ainda hoje considero os de
maior relevo: I) os militares brasileiros eram oriundos da classe-média, e por
isso refletiam o sentimento nacional; II) as forças armadas eram legalistas e
democráticas, e, corolário, III) não havia o menor risco de golpe de Estado
militar.
O que, dito pelo grande comandante, valia para nós como verdade
irrefutável. Saímos empolgados e fomos tomar chope no bar Vermelhinho, bem em
frente à ABI.
No dia seguinte, Prestes repetiria sua pregação no grande
comício do Pacaembu, em São Paulo. A tradução de tudo isso foi a absoluta
desmobilização das forças populares.
Dois dias passados subíamos ao Nordeste, Marcos Lins, dirigente
da AP, eu e outro personagem cuja imagem e nome a história e a memória não
registraram.
Marcos Lins levava cartas para dois governadores da região, e eu
para o governador Virgílio Távora, do Ceará, com quem me encontrei logo na
noite de minha chegada.
Por indicação do movimento sindical e partidos de esquerda, eu
exercia, a partir de 1963, uma assessoria política no gabinete do governador,
quadro da UDN, amigo a um só tempo de Jango (era o que se dizia) e do banqueiro
Magalhães Pinto, governador de Minas Gerais e figura das mais decisivas na
maquinação do golpe – que, não sabia Prestes e não sabíamos nós, logo saltaria
às ruas.
No dia seguinte, estou restabelecendo contatos e tentando montar
uma linha de informações, quando sou chamado ao gabinete do governador. Quando
entro em sua sala, ele está saindo de uma pequena cabine que mandara instalar,
“para ter mais privacidade em suas ligações “com Brasília e Rio”.
Após os rápidos cumprimentos de praxe, dirige-se a mim: “-
Doutorzinho (assim ele identificava todos os colaboradores jovens), seu amigo
Jango acaba de nos foder: mexeu na única coisa em que não se mexe neste país, a
hierarquia militar (o governador se referia ao discurso do Presidente aos
sargentos no Automóvel Clube do Rio, na noite do dia 30/03). O golpe está dado
e eu não posso fazer nada por vocês Vou tentar salvar meu mandato. Saia daqui e
vá avisar aos seus amigos”.
Saí, atordoado. Mesmo assim falei com quem pude, saiu de
circulação quem pôde, mas não havia nenhuma retaguarda, nem opção tática:
estávamos preparados, política e estrategicamente, tão-só, para assumirmos a
direção revolucionária.
Caminhávamos ou corríamos sem direção, como formigas expulsas do
formigueiro. E houve muita resistência, talvez de ordem mais psicológica do que
política, a aceitar a desagradável informação que eu levava. Ela desmontava as
fantasias de há pouco. Estávamos todos sem chão, e, pior de tudo, sem saber o
que fazer, sem ter a quem consultar.
No auditório da Fênix Caixeiral, no centro de Fortaleza, antigo
e liberal estabelecimento de ensino fundado por comerciários, sucediam-se
discursos inflamados. O sentimento geral era de um repeteco de agosto de 1961 e
da resistência democrática. Mas não surgiu um novo governador Brizola, não teve
voz uma nova Campanha da Legalidade.
No dia seguinte dessa longa noite, chego cedo à Faculdade de
Direito e me dou com algo que semelhava uma festa. Os companheiros comemoravam
o levante do general Mourão, porque, diziam, era o que “o gal. Brasil esperava
para cortar a cabeça dos golpistas”.
Achei mais prudente ir à casa do governador. Era fundamental
obter informações. Lá o encontrei pressionado por uma delegação de empresários
que cobravam uma declaração sua de apoio ao golpe e promessa de repressão a
qualquer agitação popular.
Imperturbável, Virgílio, coronel do exército, repetiu não poucas
vezes que seu papel era o de garantir a ordem, o que faria. Depois se soube que
oficiais do 23º Batalhão de Caçadores, que seria o centro da repressão,
trabalhavam naquele transe pela sua cassação. Mas o governador era sobrinho do
Marechal Juarez Távora.
Finda a pressão dos endinheirados, ficamos ali, alguns políticos
e auxiliares diretos do governador.
Tentando recuperar o ânimo enquanto via diante de mim o
desmoronamento de um sonho que até há pouco tínhamos como realizado, virei-me
para meu amigo deputado Pontes Neto, um quadro de escol, e comentei, querendo
ser otimista, mas carente de convicção, e ao mesmo tempo em busca do que quer
que fosse que me tirasse das previsões pessimistas que me assaltavam: “-
Pontes, isso é como um mandato que nos foi tomado. Em cinco anos tudo volta ao
seu leito…” “- Não… – respondeu o sábio parlamentar – isso é coisa para dez a
quinze anos”.
Pontes seria um dos primeiros presos. Com o peso da realidade me
oprimindo, tomei o rumo que as circunstâncias me permitiam, mas até minhas mãos
chegou, na manhã seguinte, o jornal O Estado, com meu retrato na capa ao lado
do deputado Moisés Pimentel, “empresário progressista”, em um encontro com
camponeses promovido pelo Círculo Operário Católico, e a legenda: “Comunista
até no gabinete do governador”.
Ficou claro para mim que o alvo era o governador, e tive tempo
para entender que Fortaleza ficara muito pequena. Logo chegaram os idos de
abril, que pareciam não ter fim pois não nos deixavam uma só fresta para
contemplarmos o horizonte.
Nossas dores falavam de dias luciferinos, e falavam claramente
as imagens de Gregório Bezerra, espancado, torturado, seminu sendo arrastado,
corda no pescoço, exibido como presa de carniceiros pelas assustadas ruas do
Recife.
Depois, muito depois, seriam as histórias de Mário Alves, nosso
dirigente (torturado até a morte nas dependências da Polícia do Ex;ercito, no
Rio de Janeiro), e do menino Stuart Angel (torturado até a morte nas
dependência da Base Aerio do Galeão.
Dois saudosos amigos, Luciano Magalhães e Aquiles Peres Mota,
percorriam de carro as saídas de minha cidade.
Ø Golpe em 31 de março de 1964: a primeira
mentira dos militares na ditadura
Neste domingo, 31 de
março de 2024, completam-se 60 anos da primeira grande mentira que levou o
Brasil a mergulhar em um dos momentos mais sombrios de sua História.
Classificado na
caserna como "Movimento Democrático de 31 de Março de 1964", o golpe
militar que levou o Brasil ao obscurantismo da ditadura por quase 21 anos, na
verdade, foi consumado no dia 1º de abril.
A data verdadeira, no
entanto, é rechaçada no meio militar. E tem uma explicação simples e surreal
para isso.
"O golpe foi
consumado, realmente, nos dias 1º e 2 de abril, mas oficialmente os militares
reconhecem como sendo o dia 31 de março para evitar trocadilho com o Dia da
Mentira. Eles fogem dessa data por causa disso", explica o historiador e
cientista político Carlito Neto.
Segundo ele, o golpe
só pode ser considerado como efetivo quando João Goulart deixa a
Presidência.
"Se formos
procurar dados históricos, até o dia 31 de março João Goulart estava no
poder. Então, não tinha golpe consumado", afirma.
No dia 31 de março de
1964, data celebrada pelos militares, o general Olímpio Mourão Filho, então
comandante da 4ª Região Militar, iniciou uma rebelião em Juiz de Fora,
comandando as tropas em marcha até o Rio de Janeiro, com o objetivo de derrubar
o governo de Jango.
·
Documentos históricos
Até mesmo na
documentação histórica da Câmara dos Deputados, onde foi concretizada a
vacância da Presidência – mesmo com Goulart ainda no Rio Grande do Sul –, a data
registrada do golpe se refere ao Dia da Mentira.
Segundo a documentação
histórica, a deposição do presidente João Goulart pelos militares aconteceu em
1º de abril de 1964.
"No dia 2 de
abril, Ranieri Mazzilli assume interinamente o governo e, no dia seguinte, com
o poder de fato na mão dos militares, desencadeia-se em todo o País uma onda de
prisões de líderes políticos, sindicais e camponeses, enquanto João Goulart se
refugia no Uruguai", diz o texto alusivo aos 50 anos do golpe, publicado
no site da Casa legislativa.
Os militares,
entretanto, só viriam a assumir definitivamente o poder no dia 9 de abril de
1964, com o Ato Institucional nº 1, que "dispõe sobre a manutenção da
Constituição Federal de 1946 e as Constituições Estaduais e respectivas
emendas, com as modificações introduzidas pelo Poder Constituinte originário da
revolução Vitoriosa" –, criando uma outra mentira dos militares, que
também classificam o golpe como "revolução".
O decreto foi assinado
pelos comandantes da Marinha, almirante Augusto Hamann Rademaker Grünewald, da
Aeronáutica, tenente-brigadeiro Francisco de Assis Correia de Mello, e do
Exército, general Arthur da Costa e Silva, que viria a suceder três anos
depois o marechal Humberto de Alencar Castello Branco, primeiro presidente da
ditadura militar no Brasil.
A mentira seria
reproduzida décadas depois, em 2022, durante o governo Jair Bolsonaro (PL),
quando o então ministro da Defesa, Walter Souza Braga Netto, divulgaria nota
dizendo que "o Movimento de 31 de março de 1964 é um marco histórico da
evolução política brasileira, pois refletiu os anseios e as aspirações da
população da época".
Fonte: Viomundo/Fórum
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