terça-feira, 23 de abril de 2024

Roberto Amaral: Entre a tutela e o golpismo

Comemora-se decisão do STF que, por unanimidade, pulverizou a interpretação castrense (que falava para além do texto) do malfadado art. 142 da Constituição Cidadã do dr. Ulisses, redigido pelo senador Fernando Henrique Cardoso, embora ditado pelo general Leônidas Pires Gonçalves, bedel da constituinte, cumprindo com rigor o dever que o castro se auto-atribuíra, de reduzir a termos aceitáveis pelos fardados as aspirações políticas e sociais “mais avançadas” dos constituintes de 1988, que chegavam a Brasília embalados pelas bandeiras progressistas da longa luta contra o regime de 1º de abril de 1964. Já nos havíamos libertado da ditadura tout court, mas persistia a supervisão política da caserna no novo regime, como parte do acordo que permitira a anistia capenga, a implosão do colégio eleitoral, a eleição de Tancredo Neves e a posse de José Sarney. Assim tinha início o governo da Nova República, no qual se projetava o regime decaído, mas não derrotado, tanto que pudera ditar as condições de sua retirada de cena, “lenta e gradual”,  processo continuado que parece não ter fim, como sugerem o patrocínio castrense da ascensão política e do regime Bolsonaro,  a intentona frustrada de 8 de janeiro de 2023 e o comando da Defesa no governo Lula. 

Havia, porém, o que celebrar, em 1985 e em 1988, e o ganho essencial terá sido a convocação da constituinte, após os infames Atos Institucionais e a Carta de 1967, outorgada pela ditadura. Uma constituinte sem poder originário, é verdade; limitada, condicionada, apenas consentida, mas, ao fim e ao cabo, autorizada a promover a reorganização política do país, transitando do autoritarismo larvar para um misto de aspirações que conjugavam o sonho da recuperação da liberdade perdida com a utopia da erradicação da pobreza, jamais permitida pela classe dominante.

O outro lado da democracia, conquistada mediante tratativas entre o poder real e a expectativa de poder, era a formalização da tutela dos fardados sobre a ordem civil (uma narrativa que nasce com a República), mediante a incorporação, no regramento constitucional negociado, daquele  dispositivo que condenaria a República a sobreviver, insegura, sob o guante da espada de Dâmocles, a permanente ameaça de  intervenção militar para garantir “a lei e a ordem”, ou seja, o statu quo, a imobilidade social. É a história do art. 142 da Constituição, dispositivo que, a rigor, nada acrescentava ao ordenamento jurídico, pois a vontade das forças independe do texto constitucional para efetivar-se, como ensina a história dos últimos 135 anos, desde os golpes fundadores de Deodoro e Floriano à intentona do ano passado.

O golpe de Estado é a força que não pode ser contida pela ordem legal. Tratam-se de entidades em conflito. Não cuida, pois, de sua autorização, nem os militares a pediam com a fabricação do art. 142.  O grave não era, nem é, o próprio texto  enxertado (que, por sinal, foi conservado pelo STF), mas, a partir dele,  a interpretação capiciosa da caserna e dos juristas de japona, lendo o texto do constituinte de 1988 como concedente de um certo “poder moderador” de que os militares se dizem naturalmente titulares.

Primeiro, o castro abraçou a ideia de construir um país digno de si mesmo, isto é, moderno como ele se julgava. Para funcionar, o país tinha de mudar, e essa mudança era ditada pela visão que a caserna alimentava  de modernidade, desapartada do progresso social. Na sequência, os fardados, regressando dos palcos da Itália, seguindo cursinhos nas escolas de formação de oficiais mantidos pelos EUA para adestrar os oficiais das nações do capitalismo periférico, tomou partido na Guerra Fria, e renunciou  a qualquer sonho de soberania nacional. Uma conquista dos engalanados que muito incomodava a república, assim impedida de ser, caminhar com suas próprias pernas e segundo sua própria existência, pois agredida pela presença de um colonial poder moderador, ao fim e ao cabo uma servidão dentre tantas quantas avançavam sobre os direitos da cidadania. 

Mais forte do que qualquer regra escrita, a tutela é doutrina que remonta ao Império. O 142 (hoje juridicamente esvaziado sem haver sido, antes, revogado) passou a ameaçar, mais e mais, pela interpretação emprestada. O poder moderador arguido pela caserna de há muito fôra reconhecido e sancionado pelo processo histórico, pela sua efetividade, derivada da aceitação nacional de suas seguidas intervenções na vida política e institucional.

O golpe de 1964 não se efetivou por meio dos atos institucionais: estes é que derivaram da voz dos tanques, a  fonte do direito da ditadura. Tratava-se, em 1988, de engalanar o poder exorbitante das fileiras com a fantasia da legitimidade de um quarto poder, o poder armado e porque armado auto-constituído, imperando sobre os três únicos poderes (executivo, legislativo e judiciário) conhecidos pelo sistema republicano. De fato,  o art. 142 sempre foi apenas isso: uma tentativa de estabelecer como regra constitucional condições permissivas do exercício fático da tutela militar sobre os demais poderes, no limite da legalização do golpe de Estado. Legalização de resto impossível, pois a natureza insanável do golpe de Estado é a violência legal.  

O fato objetivo é este: juridicamente, o poder moderador foi revogado (mais precisamente, foi dado como inexistente) sem que o Supremo tivesse alterado o texto do art. 142; para tanto limitou-se a negar interpretação vulgar e estamental. Mas, evidentemente, não nos livrou de futuras intervenções militares, sob tais ou quais arguições. Estas poderão amanhã ser frustradas dependendo do socorro do processo social.

Há que aplaudir ação do STF, a quem já devíamos a resistência à intentona de janeiro de 2023, e a quem devemos o esforço por julgar e condenar os golpistas, muitos militares de alto coturno, useiros e vezeiros de crimes políticos, e sempre protegidos pela impunidade que abraça  os enfileirados. Mas é de lamentar a inanição social, a anomia que paralisa o movimento popular.

Um comentarista desprevenido revelou, em texto recente, seu desencanto com a corrigenda interpretativa da alta corte, ao descobrir que o simples esvaziamento do art.142 não nos livraria, amanhã, de um golpe de Estado. De igual, não cuidou o articulista que a simples menção constitucional não era suficiente para a tutela. Esta era alimentada pelo papel desempenhado no país pelos fardados; da mesma forma, a tutela militar sobre o poder civil não cessará por obra e graça do esvaziamento do indigno 142, mas, tão-só, como consequência do eventual progresso da vida social: a tutela e o golpismo serão evitados na medida em que se organize e fortaleça o poder popular.

O que poderá impedir a curatela militar e eventuais intervenções no processo político é, só e tão só, a organização dos movimentos sociais, um desafio que se oferece à conjuntura, quando a história do presente registra o esvaziamento dos partidos e do movimento social.

 

       Denise Assis: Lula entre sustos e acertos

 

Ao mirarmos para o enfrentamento do Congresso ao Executivo, devemos ter em mente um nome: o do general Luiz Eduardo Ramos. É dele o legado da bagunça nas emendas e a estrada larga para os desmandos e chantagens. Foi ele o criador da “engenharia” do orçamento secreto, enquanto inquilino da pasta da Secretaria Geral da Presidência, no desgoverno anterior.

Para os que não se lembram, ou não ligam o nome à pessoa, trata-se daquele general que precisou sair de quatro, do Planalto, escondido por vasos de samambaias, durante a pandemia, para tomar vacina. Não queria perder o título – àquela altura honorífico -, de negacionista, mas tampouco arriscar a pele para a Covid-19, que grassava em torno de si, onde “vacina” significava omissão e palavrão.

Como desgraça pouca é bobagem, enquanto o general Ramos saiu de cena, de fininho, antes que pudesse, tal como seus pares, ser arrolado em processos do golpe, outra figura de triste lembrança em Brasília, voltou a circular na cena política. Eduardo Cunha, o criador das pautas-bomba, tem dado expediente no Congresso, no gabinete da filha que, apesar de eleita, parece delegar ao pai as atividades do mandato.

Juntando-se a desgraça das manobras nas emendas, com a fórmula de obstáculos financeiros criados por Cunha, temos aí um pedregulho para o governo ultrapassar. Com habilidade e experiência, o presidente Lula já contornou a questão das emendas colocando-as nas mãos do desafeto do presidente da Câmara, Alexandre Padilha. Lira corcoveou, estrebuchou, mas o máximo que conseguiu foi uma visita/surpresa do ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, e um papo amistoso com o seu interlocutor mais viável, no momento, o ministro da Casa Civil, Rui Costa.

Lira tem demonstrado que não está morto, mas não desfruta mais do absolutismo de antes. Meio desidratado, mas ainda com um ano pela frente, em que terá de se dividir entre fazer a campanha do sucessor, e as eleições municipais – quando precisará empurrar a parentalha/candidata – em seu reduto eleitoral, ele sabe que perdeu parte das asas e seu voo está mais curto.

Para contornar as ameaças de CPIs - vindas do presidente da Câmara, que já andou espalhando que não falou a sério, e até desistiu de brincar disso -, o   presidente Lula se reuniu nesta sexta-feira, 19, com o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, e os líderes do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (sem partido-AP), no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), e na Câmara, José Guimarães (PT-CE.

O presidente procurou dar ao encontro, ares de mais um, de rotina, mas ficou evidente que se trata de uma tentativa de alinhar com os seus, os últimos acontecimentos desta semana na relação com o Congresso. Ele que esteve fora, em visita oficial à Colômbia, quis conversar também com os ministros mais próximos: da Casa Civil, Rui Costa, e da Comunicação Social da Presidência, Paulo Pimenta.

O encontro é, na verdade, a busca de saídas para a redução da fervura entre os poderes e traçar estratégias que possam barrar as propostas desfavoráveis ao governo, como a da Emenda à Constituição (PEC) do Quinquênio, aprovada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado nesta semana, e que está pronta para começar a tramitar no plenário da Casa. Uma “pauta-bomba” em andamento no Congresso, de R$ 70 bilhões, que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, entrará em campo para desarmar.

A semana foi pródiga em dificuldades desse nível. Uma delas, o retrocesso proposto por requerimento de autoria da deputada Adriana Ventura (Novo-SP), que susta a regulamentação da lei da igualdade salarial. O requerimento chegou a entrar na pauta do plenário, mas acabou sendo retirado, após acordo do governo com Arthur Lira (PP-AL), em almoço com Rui Costa, na quarta-feira (17).

 

Fonte: Brasil 247

 

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