terça-feira, 23 de abril de 2024

'Revolta', medo', 'cansaço': mães atípicas relatam dificuldade para garantir tratamento dos filhos

Durante o "BBB 24", a participante Fernanda Bande, de Niterói (RJ), disse várias vezes que estava em busca do prêmio do programa para poder dar uma qualidade de vida melhor para ela e a família, principalmente para o filho Marcelo, de 11 anos, que tem o Transtorno do Espectro Autista.

Apesar de não conseguir os milhões garantidos ao campeão, por causa da visibilidade Fernanda realizou um de seus maiores desejos: o menino iniciou um tratamento de psicomotricidade enquanto ela ainda estava no jogo, e ela emocionou os fãs ao mostrar o reencontro dos dois e ao postar um vídeo em que chora ao vê-lo em uma sessão do tratamento.

Fernanda é apenas uma de muitas mães que lutam para conseguir garantir que os filhos tenham acesso a terapias que podem melhorar a qualidade de vida.

No dia 2 de abril, Dia Mundial de Conscientização do Autismo, mães e pais do Rio de Janeiro protestaram contra planos de saúde.

>>>> As principais reclamações são:

        suspensão de tratamentos;

        cancelamentos de contratos;

        falta de pagamentos para profissionais e clínicas;

        dificuldade para obter reembolso;

        oferecimento de terapias sem especialização ou com carga menor que a determinada em laudo médico;

        profissionais pouco qualificados para atender as demandas específicas da criança.

Nas redes sociais, mães atípicas, que falam sobre o dia a dia de suas famílias e buscam conscientizar sobre o tema, têm usado o espaço também para desabafar sobre esses desafios. Todas têm liminares judiciais que deveriam garantir o tratamento para os filhos, mas que não têm sido respeitadas.

Uma delas é Daiane Gomes, mãe de Heitor, que tem autismo e a Síndrome Hemimelia Fibular Bilateral, e gravou um vídeo para seus 93 mil seguidores convocando outros pais para a manifestação.

"Meu filho está com tratamento suspenso desde o dia 1º. As terapias multidisciplinares já vinham sendo interrompidas desde dezembro e, agora, a terapia ABA, que ele vem fazendo há mais de 2 anos na mesma clínica, o plano não está efetuando o pagamento. Ele também está há um ano sem fono! Estou bem aflita. Tenho muito medo de regressão, de o meu filho perder habilidades, porque sei que ele precisa disso para se desenvolver", desabafou Daiane.

Outra moradora de Itaboraí que vive as mesmas questões é Suellen Verdan, que tem dois filhos diagnosticadas com autismo – Lucas, de 6 anos, e Helena, de 3 – e quase 12 mil seguidores.

Ela conta que, após tentar obrigar o menino a seguir o tratamento em uma clínica credenciada, agora o plano de saúde não está mais arcando com os pagamentos das terapias, a obrigando a pagar e depois buscar o reembolso.

"Eu gasto uns R$ 25 mil por mês com as terapias só do Lucas. Eu tenho que conseguir o dinheiro para pagar a clínica, pedir o reembolso e depois devolver para quem me emprestou, porque é um custo altíssimo. A terapia ABA é um tratamento que é para uma parcela muito elitista da sociedade", lamenta Suellen.

Mãe de Malu, de 3 anos, que tem paralisia cerebral, a carioca Renata Darzi, moradora da Barra da Tijuca, vive uma realidade um pouco diferente, mas as mesmas dificuldades.

Ela tem home care e, durante o tempo em que divide sua rotina com seus 133 mil seguidores, já fez vários relatos de problemas que enfrenta com alguns dos profissionais e também com toda a burocracia.

"As pessoas que olham de foram atribuem toda a demanda excessiva que a família de uma criança com deficiência tem à criança, mas a maior parte dos nossos problemas reais, as coisas que tiram a nossa energia são burocráticas e externas, como você ter que se desgastar por algo que você tem direito e que é negado. Eu tenho pedidos de reembolso de cirurgias e anestesias de emergência que totalizam R$ 8 mil... É crueldade! Dá raiva, cansa, revolta. A Malu teve múltiplas sequelas e diagnósticos, então a qualidade de vida dela depende totalmente das terapias que ela faz. Caso ela fique sem, ela já para de evoluir e isso limita o futuro e as possibilidades de autonomia que ela tem", destaca.

Se conseguir as terapias especializadas pelo plano de saúde está cada vez mais difícil, para quem depende do SUS, o Sistema Único de Saúde, a situação é ainda mais difícil.

Faby Almeida, moradora de Irajá, na Zona Norte do Rio, é mãe de Theo, de 5 anos, autista nível 2, e não tem conseguido atendimento para o menino.

"Hoje, o Theo está sem terapia e tem regredido desde então. Ele fazia pelo SUS, na ABBR, mas infelizmente perdeu o direito de continuar o tratamento lá. Com a renovação do contrato da prefeitura com a clínica, eles tiraram o autismo da listagem de atendimento. Nos deram encaminhamento para o Centro Municipal de Referência da Pessoa com Deficiência Irajá, mas infelizmente eles não têm vaga", afirma ela, que tem mais de 22 mil seguidores.

Uma coisa em comum entre todas essas mães, além da iniciativa em conscientizar outras pessoas sobre as crianças atípicas, é o fato de que, por causa dos cuidados paliativos que os filhos necessitam, elas precisaram parar de trabalhar.

A questão foi tema do Profissão Repórter, que mostrou como muitas brasileiras estão tendo que abrir mão da vida profissional e pessoal para serem cuidadoras.

"Eu era supervisora de uma central de relacionamento e ministrava treinamentos, mas larguei o emprego, passei a estudar e resolvi fazer pós em psicopedagogia quando veio o diagnóstico de autismo do Lucas. Aos 18 meses, ele teve uma regressão – perdeu várias habilidades como segurar, falar as palavras que já tinha aprendido - e eu não aceitava aquela situação que a gente estava passando", relembra Suellen.

        Projeto social em comunidades no Rio de Janeiro cuida de quem cuida

Em março, um estudo da FGV já havia feito um retrato preocupante da situação da chamada "geração sanduíche": cada vez mais cidadãos estão tendo que abraçar o desafio de tomar conta dos pais e ainda criar os filhos na mesma casa.

Faby é um exemplo, já que, além de Theo, agora ela está tendo que se dedicar aos cuidados da mãe, que está desenvolvendo Alzheimer.

Para conseguir dinheiro, ela tem vivido de bicos. Os posts na rede social, que ela tem há cerca de 3 anos, ela encara como uma "missão":

"Como meu filho recebeu o diagnóstico 'precoce', com 1 ano e 11 meses, decidi criar o perfil para dar a oportunidade para outras mães identificarem cedo também. Assim eu poderia ajudar essas crianças a terem as mesmas oportunidades de desenvolvimento que meu filho iria ter."

Para Daiane, as redes também são importantes para mostrar a realidade das famílias e desconstruir alguns clichês: "Ainda acho que nos veem com supermães, porém não temos nada de especial. Quero que mais pessoas compreendam a nossa realidade, que sejam mais empáticas com a nossa luta. Tudo na maternidade atípica tem um peso grande."

Sobre a dificuldade crescente das famílias atípicas de acesso aos tratamentos especializados, Renata ressalta a importância deles, não só para os pacientes, mas para as famílias: "A falta de terapia impacta tanto a criança quanto a família, porque tira a esperança, a perspectiva de ver a criança com qualidade de vida melhor".

>>>> Entenda as reclamações

        Suspensão de tratamentos:

- "Meu filho está com tratamento suspenso desde dia 1º. As terapias multidisciplinares já vinham sendo interrompidas desde dezembro e, agora, a terapia ABA, que ele vem fazendo há mais de 2 anos na mesma clínica, e o plano não está efetuando o pagamento".

        Cancelamentos de contratos:

_ "Planos de saúde que estão cancelados, reativem! Não deixem as mães desesperadas".

        Falta de pagamentos para profissionais e clínicas:

_ "Crianças portadoras de deficiência estão sem os tratamentos porque o plano de saúde não está repassando o pagamento para as clínicas".

        Dificuldade para obter reembolso:

- "Agora, o plano não está arcando com os pagamentos, está fazendo por reembolso. Eu tenho que conseguir o dinheiro para pagar a clínica, pedir o reembolso e depois devolver para quem me emprestou, porque é um custo altíssimo".

        Oferecimento de terapias sem especialização ou com carga menor que a determinada em laudo médico:

- "O plano acaba querendo disponibilizar clínicas credenciadas, que não dão um tratamento assertivo e efetivo para crianças com nível de necessidade mais elevada. A gente fica à mercê".

        Profissionais pouco qualificados para atender as demandas específicas da criança:

        - "A Malu teve múltiplas sequelas e diagnósticos, então a qualidade de vida dela depende totalmente das terapias que ela faz. Caso ela fique sem, ela já para de evoluir e isso limita o futuro e as possibilidades de autonomia que ela tem".

>>>> O que dizem os planos de saúde

Questionada sobre a questão, a Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde) chamou a atenção para o crescimento do volume de terapias ligadas aos pacientes com transtornos globais do desenvolvimento (TGD), em especial aos transtornos dos espectros autistas (TEA).

Segundo os números, entre 2019 e 2022, houve um aumento de 94% apenas na procura de terapeutas ocupacionais.

"A Abramge reconhece o enorme desafio dessas terapias. A ausência de diretrizes de utilização claras e objetivas gera insegurança, que vai desde o diagnóstico até o tratamento adequado e, principalmente, da necessária e contínua avaliação da evolução clínica de nossos pacientes.

É importante que a ANS e as entidades de profissionais de saúde indiquem protocolos que possuam evidência científica, eficiência e eficácia colocando o paciente no centro do cuidado, trazendo diretrizes que auxiliem a todos na condução dos tratamentos".

Em relação às reclamações dos pais sobre as clínicas credenciadas, que não teriam profissionais especializados e oferecem uma carga horária de terapias mais curta, a Abramge respondeu:

"Em busca de entregar o melhor cuidado e ter um acompanhamento mais próximo, nos últimos anos as operadoras de planos de saúde estão investindo em parcerias e inaugurando clínicas próprias para atender este enorme contingente de pessoas, além de avaliarem continuamente cada um dos seus planos comercializados bem como a prestação de serviços de saúde pela rede própria e credenciada".

        Opinião de especialista

O Dr. Márcio Moacyr de Vasconcelos, membro do Departamento Científico de Neurologia da Sociedade Brasileira de Pediatria, rebate a declaração da representante dos planos de saúde sobre a falta de diretrizes claras e objetivas acerca do diagnóstico de autismo.

"Eles estão enganados. Muito pelo contrário. A questão é que às vezes o médico necessita acompanhar a criança durante um período de tempo a fim de avaliar melhor o seu desenvolvimento e a lei que rege os direitos da criança com autismo - Lei Berenice Piana - afirma claramente que não precisamos do diagnóstico definitivo para garantir acesso a um bom programa terapêutico. As crianças que têm problemas neurológicos necessitam de muitos estímulos para ampliar sua função e as habilidades essenciais ao dia-a-dia. O início precoce de um programa de reabilitação intensivo e multidisciplinar fará toda a diferença do mundo na qualidade da vida futura daquele indivíduo".

Sobre a eficácia das clínicas credenciadas oferecidas pelos planos, o médico também apoia as mães e diz que, em sua experiência, elas "deixam muito a desejar".

"Os pais de meus pacientes relatam muitas deficiências no atendimento: sessões de duração muito breve, sessões conjuntas com várias crianças que muitas vezes não têm o mesmo objetivo terapêutico, instalações precárias, profissionais inexperientes, trocas frequentes de membros da equipe, falta de retorno sobre a evolução da criança e etc. Acrescente-se que os profissionais mais bem qualificados não aceitam trabalhar nessas clínicas, que geralmente remuneram mal e, por conseguinte, atraem apenas profissionais recém-formados ou que não tenham outra opção", explica.

 

Fonte: g1

Nenhum comentário: