'Revolta', medo', 'cansaço': mães atípicas
relatam dificuldade para garantir tratamento dos filhos
Durante o "BBB
24", a participante Fernanda Bande, de Niterói (RJ), disse várias vezes
que estava em busca do prêmio do programa para poder dar uma qualidade de vida
melhor para ela e a família, principalmente para o filho Marcelo, de 11 anos,
que tem o Transtorno do Espectro Autista.
Apesar de não
conseguir os milhões garantidos ao campeão, por causa da visibilidade Fernanda
realizou um de seus maiores desejos: o menino iniciou um tratamento de
psicomotricidade enquanto ela ainda estava no jogo, e ela emocionou os fãs ao
mostrar o reencontro dos dois e ao postar um vídeo em que chora ao vê-lo em uma
sessão do tratamento.
Fernanda é apenas uma
de muitas mães que lutam para conseguir garantir que os filhos tenham acesso a
terapias que podem melhorar a qualidade de vida.
No dia 2 de abril, Dia
Mundial de Conscientização do Autismo, mães e pais do Rio de Janeiro
protestaram contra planos de saúde.
>>>> As
principais reclamações são:
• suspensão de tratamentos;
• cancelamentos de contratos;
• falta de pagamentos para profissionais e
clínicas;
• dificuldade para obter reembolso;
• oferecimento de terapias sem
especialização ou com carga menor que a determinada em laudo médico;
• profissionais pouco qualificados para
atender as demandas específicas da criança.
Nas redes sociais,
mães atípicas, que falam sobre o dia a dia de suas famílias e buscam
conscientizar sobre o tema, têm usado o espaço também para desabafar sobre
esses desafios. Todas têm liminares judiciais que deveriam garantir o
tratamento para os filhos, mas que não têm sido respeitadas.
Uma delas é Daiane
Gomes, mãe de Heitor, que tem autismo e a Síndrome Hemimelia Fibular Bilateral,
e gravou um vídeo para seus 93 mil seguidores convocando outros pais para a
manifestação.
"Meu filho está
com tratamento suspenso desde o dia 1º. As terapias multidisciplinares já
vinham sendo interrompidas desde dezembro e, agora, a terapia ABA, que ele vem
fazendo há mais de 2 anos na mesma clínica, o plano não está efetuando o
pagamento. Ele também está há um ano sem fono! Estou bem aflita. Tenho muito
medo de regressão, de o meu filho perder habilidades, porque sei que ele
precisa disso para se desenvolver", desabafou Daiane.
Outra moradora de
Itaboraí que vive as mesmas questões é Suellen Verdan, que tem dois filhos
diagnosticadas com autismo – Lucas, de 6 anos, e Helena, de 3 – e quase 12 mil
seguidores.
Ela conta que, após
tentar obrigar o menino a seguir o tratamento em uma clínica credenciada, agora
o plano de saúde não está mais arcando com os pagamentos das terapias, a
obrigando a pagar e depois buscar o reembolso.
"Eu gasto uns R$
25 mil por mês com as terapias só do Lucas. Eu tenho que conseguir o dinheiro
para pagar a clínica, pedir o reembolso e depois devolver para quem me
emprestou, porque é um custo altíssimo. A terapia ABA é um tratamento que é
para uma parcela muito elitista da sociedade", lamenta Suellen.
Mãe de Malu, de 3
anos, que tem paralisia cerebral, a carioca Renata Darzi, moradora da Barra da
Tijuca, vive uma realidade um pouco diferente, mas as mesmas dificuldades.
Ela tem home care e,
durante o tempo em que divide sua rotina com seus 133 mil seguidores, já fez
vários relatos de problemas que enfrenta com alguns dos profissionais e também
com toda a burocracia.
"As pessoas que
olham de foram atribuem toda a demanda excessiva que a família de uma criança
com deficiência tem à criança, mas a maior parte dos nossos problemas reais, as
coisas que tiram a nossa energia são burocráticas e externas, como você ter que
se desgastar por algo que você tem direito e que é negado. Eu tenho pedidos de
reembolso de cirurgias e anestesias de emergência que totalizam R$ 8 mil... É
crueldade! Dá raiva, cansa, revolta. A Malu teve múltiplas sequelas e
diagnósticos, então a qualidade de vida dela depende totalmente das terapias
que ela faz. Caso ela fique sem, ela já para de evoluir e isso limita o futuro
e as possibilidades de autonomia que ela tem", destaca.
Se conseguir as
terapias especializadas pelo plano de saúde está cada vez mais difícil, para
quem depende do SUS, o Sistema Único de Saúde, a situação é ainda mais difícil.
Faby Almeida, moradora
de Irajá, na Zona Norte do Rio, é mãe de Theo, de 5 anos, autista nível 2, e
não tem conseguido atendimento para o menino.
"Hoje, o Theo
está sem terapia e tem regredido desde então. Ele fazia pelo SUS, na ABBR, mas
infelizmente perdeu o direito de continuar o tratamento lá. Com a renovação do
contrato da prefeitura com a clínica, eles tiraram o autismo da listagem de atendimento.
Nos deram encaminhamento para o Centro Municipal de Referência da Pessoa com
Deficiência Irajá, mas infelizmente eles não têm vaga", afirma ela, que
tem mais de 22 mil seguidores.
Uma coisa em comum
entre todas essas mães, além da iniciativa em conscientizar outras pessoas
sobre as crianças atípicas, é o fato de que, por causa dos cuidados paliativos
que os filhos necessitam, elas precisaram parar de trabalhar.
A questão foi tema do
Profissão Repórter, que mostrou como muitas brasileiras estão tendo que abrir
mão da vida profissional e pessoal para serem cuidadoras.
"Eu era
supervisora de uma central de relacionamento e ministrava treinamentos, mas
larguei o emprego, passei a estudar e resolvi fazer pós em psicopedagogia
quando veio o diagnóstico de autismo do Lucas. Aos 18 meses, ele teve uma
regressão – perdeu várias habilidades como segurar, falar as palavras que já
tinha aprendido - e eu não aceitava aquela situação que a gente estava
passando", relembra Suellen.
• Projeto social em comunidades no Rio de
Janeiro cuida de quem cuida
Em março, um estudo da
FGV já havia feito um retrato preocupante da situação da chamada "geração
sanduíche": cada vez mais cidadãos estão tendo que abraçar o desafio de
tomar conta dos pais e ainda criar os filhos na mesma casa.
Faby é um exemplo, já
que, além de Theo, agora ela está tendo que se dedicar aos cuidados da mãe, que
está desenvolvendo Alzheimer.
Para conseguir
dinheiro, ela tem vivido de bicos. Os posts na rede social, que ela tem há
cerca de 3 anos, ela encara como uma "missão":
"Como meu filho
recebeu o diagnóstico 'precoce', com 1 ano e 11 meses, decidi criar o perfil
para dar a oportunidade para outras mães identificarem cedo também. Assim eu
poderia ajudar essas crianças a terem as mesmas oportunidades de desenvolvimento
que meu filho iria ter."
Para Daiane, as redes
também são importantes para mostrar a realidade das famílias e desconstruir
alguns clichês: "Ainda acho que nos veem com supermães, porém não temos
nada de especial. Quero que mais pessoas compreendam a nossa realidade, que sejam
mais empáticas com a nossa luta. Tudo na maternidade atípica tem um peso
grande."
Sobre a dificuldade
crescente das famílias atípicas de acesso aos tratamentos especializados,
Renata ressalta a importância deles, não só para os pacientes, mas para as
famílias: "A falta de terapia impacta tanto a criança quanto a família,
porque tira a esperança, a perspectiva de ver a criança com qualidade de vida
melhor".
>>>>
Entenda as reclamações
• Suspensão de tratamentos:
- "Meu filho está
com tratamento suspenso desde dia 1º. As terapias multidisciplinares já vinham
sendo interrompidas desde dezembro e, agora, a terapia ABA, que ele vem fazendo
há mais de 2 anos na mesma clínica, e o plano não está efetuando o
pagamento".
• Cancelamentos de contratos:
_ "Planos de
saúde que estão cancelados, reativem! Não deixem as mães desesperadas".
• Falta de pagamentos para profissionais e
clínicas:
_ "Crianças
portadoras de deficiência estão sem os tratamentos porque o plano de saúde não
está repassando o pagamento para as clínicas".
• Dificuldade para obter reembolso:
- "Agora, o plano
não está arcando com os pagamentos, está fazendo por reembolso. Eu tenho que
conseguir o dinheiro para pagar a clínica, pedir o reembolso e depois devolver
para quem me emprestou, porque é um custo altíssimo".
• Oferecimento de terapias sem
especialização ou com carga menor que a determinada em laudo médico:
- "O plano acaba
querendo disponibilizar clínicas credenciadas, que não dão um tratamento
assertivo e efetivo para crianças com nível de necessidade mais elevada. A
gente fica à mercê".
• Profissionais pouco qualificados para
atender as demandas específicas da criança:
• - "A Malu teve múltiplas sequelas e
diagnósticos, então a qualidade de vida dela depende totalmente das terapias
que ela faz. Caso ela fique sem, ela já para de evoluir e isso limita o futuro
e as possibilidades de autonomia que ela tem".
>>>> O que
dizem os planos de saúde
Questionada sobre a
questão, a Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde) chamou a atenção
para o crescimento do volume de terapias ligadas aos pacientes com transtornos
globais do desenvolvimento (TGD), em especial aos transtornos dos espectros autistas
(TEA).
Segundo os números,
entre 2019 e 2022, houve um aumento de 94% apenas na procura de terapeutas
ocupacionais.
"A Abramge
reconhece o enorme desafio dessas terapias. A ausência de diretrizes de
utilização claras e objetivas gera insegurança, que vai desde o diagnóstico até
o tratamento adequado e, principalmente, da necessária e contínua avaliação da
evolução clínica de nossos pacientes.
É importante que a ANS
e as entidades de profissionais de saúde indiquem protocolos que possuam
evidência científica, eficiência e eficácia colocando o paciente no centro do
cuidado, trazendo diretrizes que auxiliem a todos na condução dos tratamentos".
Em relação às
reclamações dos pais sobre as clínicas credenciadas, que não teriam
profissionais especializados e oferecem uma carga horária de terapias mais
curta, a Abramge respondeu:
"Em busca de
entregar o melhor cuidado e ter um acompanhamento mais próximo, nos últimos
anos as operadoras de planos de saúde estão investindo em parcerias e
inaugurando clínicas próprias para atender este enorme contingente de pessoas,
além de avaliarem continuamente cada um dos seus planos comercializados bem
como a prestação de serviços de saúde pela rede própria e credenciada".
• Opinião de especialista
O Dr. Márcio Moacyr de
Vasconcelos, membro do Departamento Científico de Neurologia da Sociedade
Brasileira de Pediatria, rebate a declaração da representante dos planos de
saúde sobre a falta de diretrizes claras e objetivas acerca do diagnóstico de
autismo.
"Eles estão
enganados. Muito pelo contrário. A questão é que às vezes o médico necessita
acompanhar a criança durante um período de tempo a fim de avaliar melhor o seu
desenvolvimento e a lei que rege os direitos da criança com autismo - Lei
Berenice Piana - afirma claramente que não precisamos do diagnóstico definitivo
para garantir acesso a um bom programa terapêutico. As crianças que têm
problemas neurológicos necessitam de muitos estímulos para ampliar sua função e
as habilidades essenciais ao dia-a-dia. O início precoce de um programa de
reabilitação intensivo e multidisciplinar fará toda a diferença do mundo na
qualidade da vida futura daquele indivíduo".
Sobre a eficácia das
clínicas credenciadas oferecidas pelos planos, o médico também apoia as mães e
diz que, em sua experiência, elas "deixam muito a desejar".
"Os pais de meus
pacientes relatam muitas deficiências no atendimento: sessões de duração muito
breve, sessões conjuntas com várias crianças que muitas vezes não têm o mesmo
objetivo terapêutico, instalações precárias, profissionais inexperientes, trocas
frequentes de membros da equipe, falta de retorno sobre a evolução da criança e
etc. Acrescente-se que os profissionais mais bem qualificados não aceitam
trabalhar nessas clínicas, que geralmente remuneram mal e, por conseguinte,
atraem apenas profissionais recém-formados ou que não tenham outra opção",
explica.
Fonte: g1
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