quinta-feira, 18 de abril de 2024

POLÍTICA E RELIGIÃO: Lula à espera de um milagre

O discurso do presidente Lula durante a inauguração da Estação Elevatória de Água Bruta de Ipojuca, no dia 4 de abril, em Pernambuco, foi interpretado por parte da imprensa brasileira como um ponto de inflexão. Pressionado pela queda de popularidade captada nas últimas edições da Pesquisa Quaest, Lula acena com uma guinada em direção à religião. Reportagem do jornal Folha de S.Paulo contou 27 menções a Deus: uma por minuto, em média. Em sua terra natal, e na sequência do lançamento da campanha Fé no Brasil, o presidente integrou à sua performance termos e tons que a sensibilidade pública brasileira percebe como religiosos.

DEUS NO DISCURSO

Em seu discurso na inauguração da obra do governo federal, logo após agradecer os presentes e anunciar que falaria de improviso, Lula perguntou a uma audiência composta por políticos convidados no palanque e populares sentados na plateia se eles criam em Deus e se acreditavam em milagre. Expressando simpatia e afinidade com o orador, o público assentiu entusiasmado, ratificando o que parece ser um mínimo denominador comum linguístico no Brasil: Deus.

Lula costura em sua fala Deus, obras extraordinárias d’Ele no mundo, isto é, os milagres e os feitos humanos, naquele caso, a adutora vinculada ao Programa de Aceleração do Crescimento. A adutora figura no discurso como parte de um feito maior, a transposição do Rio São Francisco, destacada pela sua dupla grandiosidade.

A transposição do São Francisco seria, de acordo com o presidente, a segunda maior obra já feita pelo homem, podendo ser vista da Lua, como a Muralha da China, a primeira. Noutra dimensão, ela aparece como obra de engenharia civil capaz de transformar as águas do rio em desenvolvimento regional. Se transmuta, assim, em engenharia social.

Pelo que contou o presidente, a solução já havia sido aventada cerca de 150 anos atrás pelo imperador do Brasil, Dom Pedro II. O imperador trouxe ao país um engenheiro alemão que teria localizado o ponto exato para a transposição fluvial: Cabrobó, o mesmo lugar escolhido como ponto estratégico da transposição atual. No entanto, segundo Lula, para que a obra acontecesse foi preciso esperar mais de um século por um milagre. Qual? O milagre da crença que um filho de retirante criado nas águas insalubres dos açudes nordestinos pudesse ser o presidente do Brasil.

À audiência em vermelho e aos políticos profissionais presentes, Lula se apresentou como pivô de um milagre que só poderia ocorrer em uma democracia encantada, na qual as obras de salvação se encontram com a vontade dos homens e mulheres expressa em voto. Dessa forma, Lula e o voto “do povo” se constituem em veículo de um milagre que transforma um desígnio divino em elemento histórico: o fim do sofrimento “dos sertanejos”.

ENTRE A TEOLOGIA E A TELEOLOGIA

O sertanejo é uma personagem bem talhada no imaginário político e católico, com o qual o presidente se conecta em seu discurso. Aparece com frequência como uma figuração do pobre marcada pela honra e altivez diante das adversidades.

Como filho da retirante Dona Lindu, Lula encarna “o pobre” agente-motor, situado entre a teologia e a teleologia da história. Para muitos religiosos católicos, especialmente atrelados à Teologia da Libertação, essa personagem certamente tem sentido. Também tem sentido para parte de uma esquerda secularizada e crente de suas convicções sobre os dilemas da modernidade e da desigualdade.

Resta saber se esse “pobre” terá apelo àqueles que, segundo a imprensa e analistas, Lula pretendeu principalmente alcançar com seu discurso: os eleitores evangélicos. Estes são homens e mulheres de uma audiência em expansão e nova para Lula, que fabulam e experimentam novos sentidos para aqueles mesmos dilemas da modernidade e da desigualdade.

O discurso de Lula em Ipojuca evidenciou sua imaginação política católica. Nele, o presidente refaz uma história coletiva espiritualizada. Milagres também habitam imaginações evangélicas sobre a ordem do mundo, em especial a de pentecostais. Porém, nesses novos mundos encantados, os milagres são operados por indivíduos divinizados em histórias concretas, alheios a coletivos generalizantes e abstratos. Também são efeitos de regramento e de condutas práticas que refazem os sujeitos, seja como provação, seja como consagração dos desígnios divinos.

Lula falou, sim, religiosamente aos católicos. Usou Deus discursivamente como operador da universalização e instância afetiva das várias perspectivas acerca da ordem. Essas perspectivas organizam a relação dos humanos entre si, da humanidade com a natureza e com tudo que estaria para além dela. Usou metáforas, enfim, como a transposição do rio, para dar forma lírica a abstrações históricas, como o sertanejo.

Para se comunicar com os evangélicos, no entanto, talvez não baste falar em Deus e em milagres. Para alcançá-los, pode ser preciso situar Deus e seus milagres em um mundo que lhes faça sentido.

 

Ø  Vamos celebrar a desigualdade social. Por Raisa Pina

 

Um péssimo momento para o governo celebrar a habilitação de 38 frigoríficos para importação chinesa. Se na última década o monopólio industrial da carne brasileira triplicou sua receita e se consolidou como líder do mercado global, a fome no país aumentou significativamente. A quantidade de cadastros do programa Bolsa Família é um bom indicador para quantificar lares com renda insuficiente para a alimentação básica.

Entre 2013 e 2023, o Brasil viu a pobreza crescer e voltou para o mapa da fome da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Houve um aumento de 50% no número nacional de famílias cadastradas para assistência social. A situação em cidades que historicamente contam com grandes indústrias frigoríficas é ainda mais alarmante. Uma delas é Campo Grande (MS), onde o presidente Lula esteve para celebrar a ampliação do mercado internacional da carne brasileira. Por lá, o aumento de cadastros do Bolsa Família foi de 82%.

Outras cidades tradicionais da carne também tiveram aumento expressivo na quantidade de pessoas com renda mensal de até R$ 218 (valor máximo per capta para que uma família possa se beneficiar da assistência social). Goiânia (GO), por exemplo, cresceu 162% no número de cadastros; Andradina e Lins (SP), 87% e 51%, respectivamente; Barra do Garças (MT), 74%; Marabá (PA), 49%. No geral, de uma amostra de doze cidades analisadas no relatório “Alimentando a desigualdade”, onze apresentaram piora nos indicadores sociais.

Atualmente o BNDES tem 20% das ações da maior empresa de alimentos do mundo em termos de receita, a JBS. O Estado nacional é o segundo maior acionista da corporação. Existe um paradoxo claro, para não dizer uma ironia, entre o fenômeno da carne brasileira em nível global e a fome crescente no país. É uma conta incoerente considerando os fluxos de alimentos e dinheiro para fora do Brasil, como se o país ainda fosse colônia de um império privado que beneficia uma elite restrita. Se os brasileiros passam fome, os administradores da gigante de alimentos tiveram 2000% de aumento nas remunerações na última década. Além disso, 70% dos lucros da companhia vão para reservas de aquisições futuras e, dos dividendos distribuídos, 11% vão para acionistas estrangeiros.

A conclusão que esses números revelam é que o sistema alimentar industrial de larga escala tem falhado na sociedade. A celebração sobre frigoríficos exportando para a China é a festa de um país que vai continuar pobre e faminto. Ver o presidente Lula vestido com o uniforme da JBS em uma cidade que viu 82% de aumento nas solicitações do Bolsa Família é um espetáculo trágico. O que deve ser prioridade do governo são mudanças em direção a políticas que de fato promovam o desenvolvimento para todos os brasileiros. A celebração real virá no dia em que o país zerar a fome e superar de vez sua desigualdade social.

 

Ø  MS: Luiz Inácio promove o latifúndio e subjugação nacional

 

No dia 12 de abril, o mandatário do País, Luiz Inácio, esteve em visita a uma unidade da JBS na capital do Mato Grosso do Sul, Campo Grande. A visita de Luiz Inácio foi marcada pelos acenos ao latifúndio: posou com o governador pró-latifúndio Eduardo Riedel (PSDB), elogiou a empresa latifundiária JBS e prometeu “carne de qualidade” para a China. Mas, para não sair totalmente queimado, prometeu comprar terras para solucionar o problema dos indígenas do estado. Os Guarani-Kaiowá do MS têm suas terras sistematicamente invadidas pelos pistoleiros do latifúndio e pelas tropas da Força Nacional, essas últimas mantidas no MS pelo próprio governo.

Durante o evento, que celebrava o primeiro envio de carne bovina daquela unidade da JBS para a China, Luiz Inácio mostrou toda sua subserviência: “Vamos mostrar o povo de Mato Grosso do Sul batendo palmas para o embaixador chinês no dia em que estamos exportando o primeiro carregamento de carne desse frigorífico para China. Daqui alguns dias vai ter muito chinês comendo a nossa carne”. 

Se colocando contra a suposta “sociedade raivosa” e defendendo a “tranquilidade”, o governante aproveitou para fazer à Riedel sua proposta para solucionar os conflitos agrários envolvendo os indígenas: “Vamos nós, juntos, comprar em sociedade uma terra para salvar aqueles Guarani que vivem perto de Dourados”. O governo promete comprar terras desde os tempos de campanha, mas em 2023 nenhum metro de terra foi comprado para a reforma agrária. 

A situação dos Guarani-Kaiowá em Dourados e na região de fato é um problema explosivo. Abrangendo Dourados e Itaporã, a Reserva Indígena de Dourados (RID) é a sexta reserva mais populosa do Brasil pelo Censo do IBGE de 2022 com 13.473 habitantes em 3,5 mil hectares. Com uma densidade de 384,94 pessoas por km², a RID supera em mais de três vezes Campo Grande (111,09). Na luta contra esse confinamento, pelo menos treze retomadas (Avae’te I e II, Apyka’i, Aratikuty, Bolqueirão, Jaychapiry, Ñu Porã, Ñu Vera I e II, Ñu Vera Guasu, Pacurity, Yvy Rory Poty e Yvu Vera) foram realizadas pelos indígenas nessa região nos últimos anos e elas tem sido palco de inúmeros conflitos.

·        Compra de terras beneficia o latifúndio e impede demarcações

A cantilena de Luiz Inácio, embora possa soar bonita a alguns ouvidos, não passa de uma velha proposição reacionária requentada. Em 2011, por exemplo, começou a tramitar no Senado a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 71 (depois PEC 132/2015), de autoria de Paulo Bauer (PSDB-SC), que propunha a indenização da terra nua aos produtores que de “boa-fé” estiverem sobrepostos a terras indígenas (TI). Atualmente, a Constituição proíbe essa prática – com exceção de pagamento por benfeitorias realizadas na terra – uma vez que as TIs são propriedade da União. 

Em 2012, o partido de Luiz Inácio encabeçou no Mato Grosso do Sul a defesa de ideia similar, a Lei nº 4.164/2012, que criou a Fundação Estadual de Terras Indígenas (Fepati). Proposta pelos deputados Laerte Tetila (PT), ex-prefeito de Dourados, e por Pedro Kemp (PT), o objetivo do fundo seria captar recursos financeiros para aquisição de terras de propriedades particulares consideradas terras indígenas e, nas palavras de Tetila, “para agilizar indenizações que geralmente demoram de 15 a 20 anos”, conforme declarou à época ao monopólio de imprensa Campo Grande News. A proposição também foi apoiada por nomes de peso da agremiação no estado, como Zeca do PT – governador entre 1999 e 2007 – e Delcídio do Amaral – Senador entre 2003 e 2016. 

Com a lei aprovada, Tetila disse que “o Fepati é um importante instrumento para o Governo Federal resolver o conflito de terra em Mato Grosso do Sul”. No entanto, em 12 anos de existência, o pretenso fundo provou-se letra morta para solucionar os problemas dos indígenas. Segundo informações do monopólio de imprensa Correio do Estado, o balanço anual do Fepati “permanecia, pelo menos até 2022, sem nenhum tipo de movimentação financeira, mantendo apenas a sua verba inicial destinada de R$ 585 mil”. Mesmo a proposta de 2015 do então governador Reinaldo Azambuja (PSDB) à ex-presidente Dilma Rousseff, do aporte mensal de R$ 80 milhões, não solucionou o problema. 

Afinal, tal qual para a falida “reforma agrária”, o governo federal sempre alega falta de recursos. O abismo entre o fundo citado e a necessidade real, não obstante, é real. Segundo cálculos do Procurador da República Marco Antonio Delfino, em 2012, o montante necessário para indenizar fazendeiros hoje ocupando terras indígenas seria de R$ 1 bilhão para pagar o total de 100 mil hectares reivindicados pelos indígenas. Atualmente, segundo o advogado Gustavo Passarelli, que defende os latifundiários da Famasul (Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul), o valor ultrapassa os R$ 7,7 bilhões em cerca de 140 mil hectares. Na prática, tal como admite a Ministra Sonia Guajajara: “Realmente tem um risco, porque vai onerar muito o orçamento da União. A gente sabe que tem um limite no orçamento público para essas questões”.

·        Todos juntos para indenizar o latifúndio

A proposta de Luiz Inácio e a similar de seus asseclas é tão benéfica ao latifúndio que é aplaudida por um juiz tão reacionário quanto o ministro do STF Dias Toffoli, notório defensor do “movimento de 64”. Ainda que tenha votado contra a tese do Marco Temporal, em seu parecer, o ministro chamou o Fepati de uma “iniciativa que merece ser citada”. 

O próprio governador Riedel, que falou no evento pelo fim da “polarização”, também se orgulhou em dizer que já defendia essa mesma proposta de Luiz Inácio “há quase uma década”.

Ex-presidente da Famasul, ele participou das negociações que levaram à criação do Fepati. Se somam a eles outros reacionários que defenderam a PEC 71/2011, como Waldemir Moka (MDB-MS), Blairo Maggi (PR-MT) e Simone Tebet, hoje Ministra de Luiz Inácio e que esteve presente no dia 12/04 em Campo Grande. 

A nível municipal, a proposta do gerente de turno coincide com a posição da “Frente Parlamentar em Defesa da Solução de Conflitos entre Indígenas e Proprietários de Terras”, criada ano passado pela Câmara de Vereadores de Dourados. Segundo o presidente desta, o vereador Rogério Yuri (PSDB): “O presidente Lula tem conhecimento do trabalho que fizemos desde setembro do ano passado, o governador Eduardo Riedel também está a par. Entre as soluções que vamos apresentar no relatório é a compra de terras. Já conversamos sobre o assunto com o coordenador da bancada federal, deputado Vander Loubet”, disse ao monopólio Campo Grande News. Desde março do ano passado, Loubet (PT) promete alocar R$ 1 bilhão para solucionar os conflitos, mas até agora nada foi feito.

As distintas matizes dos apoiadores desta proposta anti-povo deixam cada vez mais claro como funciona a coalizão reacionária que quer barrar a luta pela terra no Brasil. Enquanto alguns oportunistas querem atribuir os problemas do atual governo apenas a um nome ou outro, a um ministro ou outro, a fala de Luiz Inácio deixa bem claro que essa é a posição oficial de todo o governo. Não que já não estivesse clara, nesse um ano e quatro meses de governo, outra forma de impedir essa luta – a tendência de militarização da questão indígena – mas agora fica claro que os povos indígenas também não podem contar com o velho Estado para obterem suas terras.

·        Governo não engana indígenas

Os indígenas do Mato Grosso do Sul perceberam isso e reagiram. O Kuñangue Aty Guasu (Grande Assembleia das Mulheres Kaiowá e Guarani), por exemplo, se posicionou contrário a fala de Luiz Inácio:

“Essa proposta de compra de terras abre um precedente perigoso, que inclusive foi aberto no debate sobre o Marco Temporal no STF. Isso descaracteriza inclusive o direito originário, bem anterior à própria Constituição de 1988”. Além disso, a entidade denuncia que, embora o estado seja aquele com o maior número de retomadas, “até agora nenhuma delas foi demarcada e homologada nessa gestão”. Concluem que seria injusto pagar “por terras que foram roubadas dos povos indígenas” e que a compra de terras “é pauta do latifúndio”.

 

Fonte: Por Aramis Luis Silva e Renata Nagamine, no Le Monde/A Nova Democracia

 

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