POLÍTICA E
RELIGIÃO: Lula à espera de um milagre
O discurso do
presidente Lula durante a inauguração da Estação Elevatória de Água Bruta de Ipojuca, no dia 4 de abril, em Pernambuco, foi interpretado por parte
da imprensa brasileira como um ponto de inflexão. Pressionado pela queda de
popularidade captada nas últimas edições da Pesquisa Quaest, Lula acena com uma
guinada em direção à religião. Reportagem do jornal Folha de
S.Paulo contou 27 menções a Deus: uma por
minuto, em média. Em sua terra natal, e na sequência do lançamento da campanha
Fé no Brasil, o presidente integrou à sua performance termos e tons que a
sensibilidade pública brasileira percebe como religiosos.
DEUS NO
DISCURSO
Em seu discurso na
inauguração da obra do governo federal, logo após agradecer os presentes e
anunciar que falaria de improviso, Lula perguntou a uma audiência composta por
políticos convidados no palanque e populares sentados na plateia se eles criam
em Deus e se acreditavam em milagre. Expressando simpatia e afinidade com o
orador, o público assentiu entusiasmado, ratificando o que parece ser um mínimo
denominador comum linguístico no Brasil: Deus.
Lula costura em sua
fala Deus, obras extraordinárias d’Ele no mundo, isto é, os milagres e os
feitos humanos, naquele caso, a adutora vinculada ao Programa de Aceleração do
Crescimento. A adutora figura no discurso como parte de um feito maior, a
transposição do Rio São Francisco, destacada pela sua dupla grandiosidade.
A transposição do São
Francisco seria, de acordo com o presidente, a segunda maior obra já feita pelo
homem, podendo ser vista da Lua, como a Muralha da China, a primeira. Noutra
dimensão, ela aparece como obra de engenharia civil capaz de transformar as
águas do rio em desenvolvimento regional. Se transmuta, assim, em engenharia
social.
Pelo que contou o
presidente, a solução já havia sido aventada cerca de 150 anos atrás pelo
imperador do Brasil, Dom Pedro II. O imperador trouxe ao país um engenheiro
alemão que teria localizado o ponto exato para a transposição fluvial: Cabrobó,
o mesmo lugar escolhido como ponto estratégico da transposição atual. No
entanto, segundo Lula, para que a obra acontecesse foi preciso esperar mais de
um século por um milagre. Qual? O milagre da crença que um filho de retirante
criado nas águas insalubres dos açudes nordestinos pudesse ser o presidente do
Brasil.
À audiência em
vermelho e aos políticos profissionais presentes, Lula se apresentou como pivô
de um milagre que só poderia ocorrer em uma democracia encantada, na qual as
obras de salvação se encontram com a vontade dos homens e mulheres expressa em
voto. Dessa forma, Lula e o voto “do povo” se constituem em veículo de um
milagre que transforma um desígnio divino em elemento histórico: o fim do
sofrimento “dos sertanejos”.
ENTRE A
TEOLOGIA E A TELEOLOGIA
O sertanejo é uma
personagem bem talhada no imaginário político e católico, com o qual o
presidente se conecta em seu discurso. Aparece com frequência como uma
figuração do pobre marcada pela honra e altivez diante das adversidades.
Como filho da
retirante Dona Lindu, Lula encarna “o pobre” agente-motor, situado entre a
teologia e a teleologia da história. Para muitos religiosos católicos,
especialmente atrelados à Teologia da Libertação, essa personagem certamente
tem sentido. Também tem sentido para parte de uma esquerda secularizada e crente de suas convicções sobre os dilemas da
modernidade e da desigualdade.
Resta saber se esse
“pobre” terá apelo àqueles que, segundo a imprensa e analistas, Lula pretendeu
principalmente alcançar com seu discurso: os eleitores evangélicos. Estes são
homens e mulheres de uma audiência em expansão e nova para Lula, que fabulam e
experimentam novos sentidos para aqueles mesmos dilemas da modernidade e da
desigualdade.
O discurso de Lula em
Ipojuca evidenciou sua imaginação política católica. Nele, o presidente refaz
uma história coletiva espiritualizada. Milagres também habitam imaginações
evangélicas sobre a ordem do mundo, em especial a de pentecostais. Porém, nesses
novos mundos encantados, os milagres são operados por indivíduos divinizados em
histórias concretas, alheios a coletivos generalizantes e abstratos. Também são
efeitos de regramento e de condutas práticas que refazem os sujeitos, seja como
provação, seja como consagração dos desígnios divinos.
Lula falou, sim,
religiosamente aos católicos. Usou Deus discursivamente como operador da universalização e instância afetiva das
várias perspectivas acerca da ordem. Essas perspectivas organizam a relação dos
humanos entre si, da humanidade com a natureza e com tudo que estaria para além
dela. Usou metáforas, enfim, como a transposição do rio, para dar forma lírica
a abstrações históricas, como o sertanejo.
Para se comunicar com
os evangélicos, no entanto, talvez não baste falar em Deus e em milagres. Para
alcançá-los, pode ser preciso situar Deus e seus milagres em um mundo que lhes
faça sentido.
Ø Vamos celebrar a desigualdade social. Por Raisa Pina
Um péssimo momento
para o governo celebrar a habilitação de 38 frigoríficos para importação
chinesa. Se na última década o monopólio industrial da carne brasileira
triplicou sua receita e se consolidou como líder do mercado global, a fome no
país aumentou significativamente. A quantidade de cadastros do programa Bolsa
Família é um bom indicador para quantificar lares com renda insuficiente para
a alimentação básica.
Entre 2013 e 2023, o
Brasil viu a pobreza crescer e voltou para o mapa da fome da Organização das
Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Houve um aumento de 50% no
número nacional de famílias cadastradas para assistência social. A situação em
cidades que historicamente contam com grandes indústrias frigoríficas é ainda
mais alarmante. Uma delas é Campo Grande (MS), onde o presidente Lula esteve
para celebrar a ampliação do mercado internacional da carne brasileira. Por lá,
o aumento de cadastros do Bolsa Família foi de 82%.
Outras cidades
tradicionais da carne também tiveram aumento expressivo na quantidade de
pessoas com renda mensal de até R$ 218 (valor máximo per capta para que uma
família possa se beneficiar da assistência social). Goiânia (GO), por exemplo,
cresceu 162% no número de cadastros; Andradina e Lins (SP), 87% e 51%,
respectivamente; Barra do Garças (MT), 74%; Marabá (PA), 49%. No geral, de uma
amostra de doze cidades analisadas no relatório “Alimentando a desigualdade”,
onze apresentaram piora nos indicadores sociais.
Atualmente o BNDES tem
20% das ações da maior empresa de alimentos do mundo em termos de receita,
a JBS. O Estado
nacional é o segundo maior acionista da corporação. Existe um paradoxo claro,
para não dizer uma ironia, entre o fenômeno da carne brasileira em nível global
e a fome crescente no país. É uma conta incoerente considerando os fluxos de
alimentos e dinheiro para fora do Brasil, como se o país ainda fosse colônia de
um império privado que beneficia uma elite restrita. Se os brasileiros passam
fome, os administradores da gigante de alimentos tiveram 2000% de aumento nas
remunerações na última década. Além disso, 70% dos lucros da companhia vão para
reservas de aquisições futuras e, dos dividendos distribuídos, 11% vão para
acionistas estrangeiros.
A conclusão que esses
números revelam é que o sistema alimentar industrial de larga escala tem
falhado na sociedade. A celebração sobre frigoríficos exportando para a China é
a festa de um país que vai continuar pobre e faminto. Ver o presidente Lula vestido
com o uniforme da JBS em uma cidade que viu 82% de aumento nas solicitações
do Bolsa Família é um espetáculo trágico. O que deve ser prioridade do
governo são mudanças em direção a políticas que de fato promovam o
desenvolvimento para todos os brasileiros. A celebração real virá no dia em que
o país zerar a fome e superar de vez sua desigualdade social.
Ø
MS: Luiz Inácio promove o latifúndio e
subjugação nacional
No dia 12 de abril, o
mandatário do País, Luiz Inácio, esteve em visita a uma unidade da JBS na
capital do Mato Grosso do Sul, Campo Grande. A visita de Luiz Inácio foi
marcada pelos acenos ao latifúndio: posou com o governador pró-latifúndio
Eduardo Riedel (PSDB), elogiou a empresa latifundiária JBS e prometeu “carne de
qualidade” para a China. Mas, para não sair totalmente queimado, prometeu
comprar terras para solucionar o problema dos indígenas do estado. Os
Guarani-Kaiowá do MS têm suas terras sistematicamente invadidas pelos
pistoleiros do latifúndio e pelas tropas da Força Nacional, essas últimas
mantidas no MS pelo próprio governo.
Durante o evento, que
celebrava o primeiro envio de carne bovina daquela unidade da JBS para a China,
Luiz Inácio mostrou toda sua subserviência: “Vamos mostrar o povo de Mato
Grosso do Sul batendo palmas para o embaixador chinês no dia em que estamos exportando
o primeiro carregamento de carne desse frigorífico para China. Daqui alguns
dias vai ter muito chinês comendo a nossa carne”.
Se colocando contra a
suposta “sociedade raivosa” e defendendo a “tranquilidade”, o governante
aproveitou para fazer à Riedel sua proposta para solucionar os conflitos
agrários envolvendo os indígenas: “Vamos nós, juntos, comprar em sociedade uma
terra para salvar aqueles Guarani que vivem perto de Dourados”. O governo
promete comprar terras desde os tempos de campanha, mas em 2023 nenhum metro de
terra foi comprado para a reforma agrária.
A situação dos
Guarani-Kaiowá em Dourados e na região de fato é um problema explosivo.
Abrangendo Dourados e Itaporã, a Reserva Indígena de Dourados (RID) é a sexta
reserva mais populosa do Brasil pelo Censo do IBGE de 2022 com 13.473
habitantes em 3,5 mil hectares. Com uma densidade de 384,94 pessoas por km², a
RID supera em mais de três vezes Campo Grande (111,09). Na luta contra esse
confinamento, pelo menos treze retomadas (Avae’te I e II, Apyka’i, Aratikuty,
Bolqueirão, Jaychapiry, Ñu Porã, Ñu Vera I e II, Ñu Vera Guasu, Pacurity, Yvy
Rory Poty e Yvu Vera) foram realizadas pelos indígenas nessa região nos últimos
anos e elas tem sido palco de inúmeros conflitos.
·
Compra de terras
beneficia o latifúndio e impede demarcações
A cantilena de Luiz
Inácio, embora possa soar bonita a alguns ouvidos, não passa de uma velha
proposição reacionária requentada. Em 2011, por exemplo, começou a tramitar no
Senado a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 71 (depois PEC 132/2015), de
autoria de Paulo Bauer (PSDB-SC), que propunha a indenização da terra nua aos
produtores que de “boa-fé” estiverem sobrepostos a terras indígenas (TI).
Atualmente, a Constituição proíbe essa prática – com exceção de pagamento por
benfeitorias realizadas na terra – uma vez que as TIs são propriedade da
União.
Em 2012, o partido de
Luiz Inácio encabeçou no Mato Grosso do Sul a defesa de ideia similar, a Lei nº
4.164/2012, que criou a Fundação Estadual de Terras Indígenas (Fepati).
Proposta pelos deputados Laerte Tetila (PT), ex-prefeito de Dourados, e por
Pedro Kemp (PT), o objetivo do fundo seria captar recursos financeiros para
aquisição de terras de propriedades particulares consideradas terras indígenas
e, nas palavras de Tetila, “para agilizar indenizações que geralmente demoram
de 15 a 20 anos”, conforme declarou à época ao monopólio de imprensa Campo
Grande News. A proposição também foi apoiada por nomes de peso da agremiação no
estado, como Zeca do PT – governador entre 1999 e 2007 – e Delcídio do Amaral –
Senador entre 2003 e 2016.
Com a lei aprovada,
Tetila disse que “o Fepati é um importante instrumento para o Governo Federal
resolver o conflito de terra em Mato Grosso do Sul”. No entanto, em 12 anos de
existência, o pretenso fundo provou-se letra morta para solucionar os problemas
dos indígenas. Segundo informações do monopólio de imprensa Correio do Estado,
o balanço anual do Fepati “permanecia, pelo menos até 2022, sem nenhum tipo de
movimentação financeira, mantendo apenas a sua verba inicial destinada de R$
585 mil”. Mesmo a proposta de 2015 do então governador Reinaldo Azambuja (PSDB)
à ex-presidente Dilma Rousseff, do aporte mensal de R$ 80 milhões, não
solucionou o problema.
Afinal, tal qual para
a falida “reforma agrária”, o governo federal sempre alega falta de recursos. O abismo
entre o fundo citado e a necessidade real, não obstante, é real. Segundo
cálculos do Procurador da República Marco Antonio Delfino, em 2012, o montante
necessário para indenizar fazendeiros hoje ocupando terras indígenas seria de
R$ 1 bilhão para pagar o total de 100 mil hectares reivindicados pelos
indígenas. Atualmente, segundo o advogado Gustavo Passarelli, que defende os
latifundiários da Famasul (Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso
do Sul), o valor ultrapassa os R$ 7,7 bilhões em cerca de 140 mil hectares. Na
prática, tal como admite a Ministra Sonia Guajajara: “Realmente tem um risco, porque vai onerar muito o orçamento
da União. A gente sabe que tem um limite no orçamento público para essas
questões”.
·
Todos juntos para
indenizar o latifúndio
A proposta de Luiz
Inácio e a similar de seus asseclas é tão benéfica ao latifúndio que é
aplaudida por um juiz tão reacionário quanto o ministro do STF Dias Toffoli,
notório defensor do “movimento de 64”.
Ainda que tenha votado contra a tese do Marco Temporal, em seu parecer, o
ministro chamou o Fepati de uma “iniciativa que merece ser citada”.
O próprio governador
Riedel, que falou no evento pelo fim da “polarização”, também se orgulhou em
dizer que já defendia essa mesma proposta de Luiz Inácio “há quase uma década”.
Ex-presidente da
Famasul, ele participou das negociações que levaram à criação do Fepati. Se
somam a eles outros reacionários que defenderam a PEC 71/2011, como Waldemir
Moka (MDB-MS), Blairo Maggi (PR-MT) e Simone Tebet, hoje Ministra de Luiz
Inácio e que esteve presente no dia 12/04 em Campo Grande.
A nível municipal, a
proposta do gerente de turno coincide com a posição da “Frente Parlamentar em
Defesa da Solução de Conflitos entre Indígenas e Proprietários de Terras”,
criada ano passado pela Câmara de Vereadores de Dourados. Segundo o presidente
desta, o vereador Rogério Yuri (PSDB): “O presidente Lula tem conhecimento do
trabalho que fizemos desde setembro do ano passado, o governador Eduardo Riedel
também está a par. Entre as soluções que vamos apresentar no relatório é a
compra de terras. Já conversamos sobre o assunto com o coordenador da bancada
federal, deputado Vander Loubet”, disse ao monopólio Campo Grande News. Desde
março do ano passado, Loubet (PT) promete alocar R$ 1 bilhão para solucionar os
conflitos, mas até agora nada foi feito.
As distintas matizes
dos apoiadores desta proposta anti-povo deixam cada vez mais claro como
funciona a coalizão reacionária que quer barrar a luta pela terra no Brasil.
Enquanto alguns oportunistas querem atribuir os problemas do atual governo
apenas a um nome ou outro, a um ministro ou outro, a fala de Luiz Inácio deixa
bem claro que essa é a posição oficial de todo o governo. Não que já não
estivesse clara, nesse um ano e quatro meses de governo, outra forma de impedir
essa luta – a tendência de militarização da questão indígena – mas agora fica claro que os povos indígenas também não
podem contar com o velho Estado para obterem suas terras.
·
Governo não engana
indígenas
Os indígenas do Mato
Grosso do Sul perceberam isso e reagiram. O Kuñangue Aty Guasu (Grande
Assembleia das Mulheres Kaiowá e Guarani), por exemplo, se posicionou contrário
a fala de Luiz Inácio:
“Essa proposta de
compra de terras abre um precedente perigoso, que inclusive foi aberto no
debate sobre o Marco Temporal no STF. Isso descaracteriza inclusive o direito
originário, bem anterior à própria Constituição de 1988”. Além disso, a
entidade denuncia que, embora o estado seja aquele com o maior número de
retomadas, “até agora nenhuma delas foi demarcada e homologada nessa gestão”.
Concluem que seria injusto pagar “por terras que foram roubadas dos povos
indígenas” e que a compra de terras “é pauta do latifúndio”.
Fonte: Por Aramis Luis
Silva e Renata Nagamine, no Le Monde/A Nova Democracia
Nenhum comentário:
Postar um comentário