PEC das
Drogas que avança no Senado pode neutralizar STF?
O Senado aprovou na noite dessa terça-feira
(16/4) no plenário, em dois turnos, a chamada PEC das Drogas, proposta
de emenda à Constituição que determina que é crime possuir ou portar qualquer quantidade
de droga, mesmo que para consumo próprio.
Agora, o texto segue para votação na Câmara dos Deputados.
A criminalização do porte e da posse, mesmo para consumo
próprio, já é prevista na Lei de Drogas de 2006, que está em vigor; o Código
Penal também prevê crimes sobre o tema. Mas não é algo determinado na
Constituição Federal.
A intenção da PEC é incluir a regra na Constituição, tornando-a
superior a uma lei, mais difícil de ser alterada.
Esse movimento do Legislativo é visto por políticos, advogados e
analistas ouvidos pela BBC News Brasil como uma reação do Congresso ao fato do
tema estar sendo debatido em um julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF).
O julgamento no Supremo é um decisão sobre um caso específico,
mas pode ter repercussão geral – quando vale para todos os outros.
O que os ministros estão decidindo é se o artigo da lei que
criminaliza a posse (ter) e o porte (carregar consigo) de maconha para consumo
próprio é inconstitucional.
Caso decidam que sim, o julgamento na prática leva à
descriminalização.
No momento, o processo está aguardando a análise do ministro
Dias Toffoli, que pediu vista, para voltar a ser julgado pelo colegiado da
Corte. Mas cinco dos 11 ministros já votaram pela descriminalização.
É para tentar "neutralizar" o que aparenta ser a
provável decisão do STF que os senadores avançam a tramitação da PEC.
Nesta terça, o senador Eduardo Girão (Novo-CE) disse no plenário
que "foi necessária a criação de uma PEC para evitar que o STF invada a
competência de outro poder".
Por se tratar de uma adição à Constituição, a PEC precisa ser
aprovada em dois turnos no Senado e dois turnos na Câmara dos Deputados.
A expectativa dos parlamentares por trás da proposta é de que
ela continue a ser aprovada sem grandes resistências. Nesta terça-feira, o
texto teve grande maioria pela aprovação no Senado, com 53 votos a 9 no
primeiro turno e 52 a 9 no segundo.
Embora tenha muitos quadros críticos à criminalização do porte,
por considerar que ela prejudica os mais pobres, o PT não orientou sua bancada
a se posicionar contra a PEC. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT)
também não se manifestou sobre um eventual veto.
No entanto, especialistas apontam que a aprovação da emenda no
Legislativo pode não encerrar o debate no Supremo.
·
Aprovação de PEC pode
não encerrar debate no STF
A bancada evangélica – que foi quem deu fôlego ao avanço da PEC,
com o apoio do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco – aposta na sua aprovação
como uma espécie de garantia contra o julgamento do STF
Mas especialistas em direito avaliam que a situação é mais
complexa do que parece.
Mesmo que o Congresso aprove a PEC em todos os turnos antes da
decisão do Supremo no caso, o julgamento não seria interrompido e não
necessariamente a PEC teria efeitos "automáticos".
"A emenda constitucional pode ser impugnada pela via das
ações diretas de inconstitucionalidade (ADI), como o Supremo já fez no
passado", afirma Henrique Sobreira Barbugiani Attuch, do escritório Wilton
Gomes Advogados.
Ou seja, é possível contestar a própria emenda à Constituição na
Justiça.
Isso porque mesmo PECs podem ser consideradas inconstitucionais
caso se conclua que elas interferem nas chamadas "cláusulas pétreas"
da Carta – temas que não são passíveis de mudança.
"O direito não aceita tudo. Há princípios que nem emendas
podem mudar na Constituição", diz Belisário dos Santos Junior,
especialista em Direito Público e ex-secretário de Justiça de São Paulo.
"Então, se aprovada, essa PEC não garante o fim da
discussão."
Caso a PEC seja aprovada e não seja questionada, o que é
considerado por analistas ouvidos pela reportagem como algo improvável diante
do atual cenário político, aí sim o resultado da decisão do Supremo sobre o
artigo 28 da Lei de Drogas (que está em julgamento) teria que levar em
consideração o que estabelece a emenda.
·
Diferenciar usuário e
traficante
Wallace Corbo, professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas
(FGV), explica que existe também a possibilidade de o Supremo decidir que a
criminalização do uso não viola a Constituição – ou seja, não derrubar
totalmente a PEC.
Mesmo assim, existiria a necessidade de se estabelecer uma
quantidade para diferenciar usuário e traficante, explica Corbo.
A questão da quantidade para diferenciar traficantes de usuários
é considerada um dos temas centrais do julgamento.
O Supremo julga a constitucionalidade de um artigo da Lei de
Drogas (Lei 11.343/2006) que cria a figura do usuário de drogas em uma
diferenciação em relação ao traficante.
Este último ficaria sujeito a penas mais severas, mas a lei não
estabeleceu critérios objetivos sobre a diferença entre usuário e traficante.
Em resposta a isso, o texto da PEC foi alterado durante a
tramitação justamente para incluir a questão da diferenciação entre traficante
e usuário, mas os senadores não determinaram uma quantidade.
O relator da emenda, senador Efraim Filho (União-PB), incluiu no
texto a determinação de que seja "observada a distinção entre traficante e
usuário", mas com a previsão de que a distinção seja feita com base nas
"circunstâncias fáticas do caso concreto".
Na prática, isso só incluiria na Constituição o que a lei já
determina e o que já acontece hoje.
No entanto, diversos críticos da falta de critérios objetivos
para diferenciação dizem que isso torna a questão muito subjetiva e costuma
levar a distorções.
Eles afirmam que isso prejudica especialmente jovens negros que
moram em comunidades pobres que seriam presos e processados como traficantes,
apesar de portarem pequenas quantidades de drogas.
O caso que motivou o julgamento no STF, por exemplo, refere-se a
um homem que foi flagrado com três gramas de maconha enquanto estava preso.
Já defensores desse ponto específico afirmam que não é possível
estabelecer uma quantidade que valha para todos.
"[Não haver uma quantidade determinada] dá a
discricionariedade da definição se é ou não porte ou tráfico a quem faz de fato
a apreensão, quem está 'com a mão na massa'", disse o senador Rogério
Marinho na reunião da Comissão de Constituição e Justiça do Senado.
"O juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância
apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às
circunstâncias sociais e pessoais, bem como a conduta, os antecedentes do
agente."
O ministro do STF Alexandre de Moraes afirmou que estabelecer
uma quantidade específica para essa diferenciação é importante porque cria um
critério objetivo e evita injustiças e distorções.
Até o momento, quatro dos cinco ministros que votaram pela
descriminalização do porte defenderam determinar que um porte acima de 60
gramas caracterizaria tráfico – o que, segundo especialistas, dá uma margem
bastante grande para que nenhum usuário seja confundido com traficante.
Já os ministros Cristiano Zanin e Kássio Nunes, que votaram
contra descriminalizar o porte, defenderam que a quantidade máxima para uso
próprio deveria ser 25 gramas. Também contrário, André Mendonça falou em 10
gramas.
Corbo afirma que, se o Congresso quisesse ele próprio determinar
a quantidade, a tendência seria a Corte acatar a escolha.
"Esse seria o cenário com menor risco de judicialização,
menor chance de voltar ao Supremo", avalia Corbo.
Toffoli, inclusive, chegou a dizer que determinar essa
quantidade não seria uma tarefa do STF. Mendonça defendeu que a Corte
encaminhasse a questão toda - tanto sobre a quantidade para diferenciar usuário
e traficante quanto sobre a criminalização da posse – para o Congresso votar em
até 180 dias.
"Esse tipo de decisão tem sido cada vez mais comum no
Supremo e no Judiciário como um todo", afirma Corbo.
Isso seria, na visão de Corbo, um "meio-termo" em que
o Supremo se sobreporia ao Legislativo, mas também não deixaria a critério do
Congresso decidir quando bem entender.
"Fixa-se um prazo para essa decisão do Congresso e, se esse
prazo não for cumprido, podem advir consequências, como, por exemplo, valer a
decisão do Supremo quanto ao que entende como mais adequado."
·
Evitar o embate
A descriminalização das drogas é um assunto que, historicamente,
gera debates acalorados entre defensores e opositores à proposta no Brasil.
A dimensão dessa polêmica pode ser medida pelo tempo que o STF
está levando para julgar o tema.
O julgamento retomado na semana passada foi iniciado em 2015. A
demora se deu, em parte, por dois pedidos de vistas feitos pelos ministros
Teori Zavascki, já falecido, em agosto daquele ano, e André Mendonça, em agosto
do ano passado.
Antes da regra criada pela ex-ministra Rosa Weber, os pedidos de
vista não tinham prazo e os ministros podiam parar por anos um julgamento para
analisar o caso. Agora, devem devolver um caso em até 90 dias.
Especialistas avaliam que o pedido de vista de Toffoli feito na
última sessão do julgamento pode ser interpretado como uma tentativa de evitar
o embate direto entre dois Poderes diante desse momento de tensão entre
Congresso e STF.
Isso porque a interrupção do julgamento deu tempo ao Parlamento
para discutir o assunto.
"Como o Congresso Nacional está em pé de guerra com o STF
neste caso, dar tempo ao Legislativo para decidir sobre o tema é uma forma de
lidar com ele de forma mais cuidadosa", diz o cientista político Cláudio
Couto, professor da FGV.
Já os juristas Wallace Corbo e Santos Junior afirmam que existem
motivos jurídicos plausíveis para um pedido de vista, mesmo no caso de um
julgamento que tramita há bastante tempo.
"O pedido de vista serve tanto para o aprofundamento sobre
a matéria quanto para revisão das posições já colocadas", afirma Corbo.
No entanto, diz ele, o pedido também tem sido usado como forma
de interferir na agenda do STF.
"Como hoje em dia há prazo definido para devolver os autos
após o pedido, essa última possibilidade fica um pouco mais restrita, mas não
deixa de ser possível. Aí pode sim haver um componente político no
pedido."
·
Costura política
Na avaliação de Cláudio Couto, essa tensão entre os poderes faz
parte de um processo que vem sendo descrito pela ciência política como "politização da Justiça" ou "judicialização da
política".
Nessa dinâmica, ele explica, a crítica é de que o Judiciário
estaria utilizando seus poderes para legislar no lugar do Parlamento.
"Há algum tempo, há uma discussão intensa sobre se o STF
vem ou não invadindo a competência do poder Legislativo", diz Couto.
"Em temas menos polêmicos, talvez a reação à atuação no
Congresso fosse outra. Como este assunto é considerado um tabu na sociedade
brasileira e muito instrumentalizado politicamente, era de se supor que
houvesse uma reação como essa."
As tensões entre o STF e o Congresso também foram responsáveis
por uma série de pedidos de impeachment de ministros do STF, projetos de lei e
PECs com o objetivo de limitar os poderes do Supremo – especialmente em relação
ao alcance de investigações contra parlamentares e ao poder de decisões
individuais.
Segundo Couto, reações como essa já haviam ocorrido em outros
episódios, como no caso do marco temporal para a demarcação de terras indígenas.
Em setembro de 2023, o STF rejeitou a tese de que demarcações de
terras indígenas só poderiam ser feitas em áreas ocupadas por povos originários
em outubro de 1988.
Como reação, a bancada ruralista acelerou a votação de um
projeto de lei que previa o estabelecimento do marco temporal, contrariando o
STF.
Parte do projeto foi vetada pelo presidente Lula, mas o veto foi
posteriormente derrubado pelo Congresso, em uma demonstração de força dos
ruralistas.
Couto avalia que a reação do Congresso em torno do julgamento
sobre a descriminalização do porte de maconha já era prevista pelo ministro
Luís Roberto Barroso, atual presidente do STF e a quem cabe a prerrogativa de
definir as pautas que serão votadas em plenário.
Em março, o ministro se reuniu com integrantes da bancada
evangélica no Congresso Nacional antes de uma das sessões de julgamento do
caso.
Para Couto, o encontro teve o objetivo de evitar um movimento
semelhante ao que ocorreu no caso do marco temporal.
O cientista político avalia que o fato de Barroso ter recorrido
aos parlamentares mostra que o tema é tão sensível que demandou uma espécie de
"articulação política" com o Congresso.
"Quando um ministro vai aos parlamentares dialogar sobre um
julgamento, isso pode, por um lado, fomentar as críticas de que o Supremo não é
técnico, mas político", diz Couto.
"Por outro lado, não admitir isso seria tapar o sol com a
peneira. Há um caráter intrinsecamente político nas decisões do Supremo. Essa é
a realidade, e Barroso lidou com ela."
Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, Barroso disse aos
parlamentares que o julgamento não se dedicaria a liberar o uso de drogas no
Brasil, mas a estabelecer limites a partir dos quais deveria ser feita a
distinção entre usuário e traficante de drogas.
"Se um garoto branco, rico e da zona sul do Rio é pego com
25 gramas de maconha, ele é classificado como usuário e é liberado", disse
o ministro segundo o jornal.
"No entanto, se a mesma quantidade é encontrada com um
garoto preto, pobre e da periferia, ele é classificado como traficante e é
preso. Isso que temos que combater."
O deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que é membro da
bancada evangélica e contra a descriminalização, diz que o argumento de Barroso
não convenceu.
"O ministro disse aos parlamentares que o Supremo não iria
deliberar sobre a descriminalização, mas, na prática, é isso que está em jogo,
sim", diz Cavalcante à BBC News Brasil.
"Se estabelecermos uma quantidade permitida para o porte, o
que o tráfico fará é usar mais gente transportando esse limite para não ter
problemas com a Justiça. Isso é óbvio."
Para o deputado, o STF não deveria interferir neste assunto.
"O STF não pode liberar as drogas com uma canetada. Este é
um assunto que cabe ao Parlamento decidir", afirma o deputado.
O deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ), que é a favor da
descriminalização das drogas, diz reconhecer a força política da bancada
evangélica no Congresso.
"Eles têm uma força numérica inegável. Têm uma capacidade
de ação que não podemos ignorar. O que nos causa surpresa é a atuação do
presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que sempre se posicionou de forma muito
sóbria em todos os debates relevantes", diz o parlamentar.
"O debate está aí e precisa ser feito. Não podemos mais
continuar com a mesma política que leva ao encarceramento de jovens em todo o
Brasil. Precisamos debater o assunto sem hipocrisia."
Na semana passada, Pacheco justificou seu apoio à tramitação da
PEC.
“O que nos motivou como reação principal foi uma declaração de
inconstitucionalidade [sobre o porte para consumo de drogas] que vai significar
sim, na prática e juridicamente, a descriminalização da conduta. Era algo que
nós não podíamos concordar porque cabe ao Parlamento decidir se algo deve ser
crime ou não", disse o senador.
Fonte: BBC News Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário