O crime contra Marielle desenreda o longo
fio que liga o Golpe de 1964 ao crime organizado no Brasil
Desde que a Polícia
Federal divulgou o relatório final da investigação apontando os irmãos Domingos
e Chiquinho Brazão, bem como o delegado Rivaldo Barbosa, responsável pelas
investigações iniciais, com mandantes e artífice do crime, há uma sensação de justiçamento.
Mas o caso é mais complexo.
“O caso Marielle é um
ponto, uma batalha vencida no meio de uma guerra gigantesca, onde há inúmeros
casos de disputas, assassinatos, homicídios, atuação miliciana brutal,
violenta, desaparecimento forçado”, pondera o professor e pesquisador da UFRJ,
José Cláudio Alves. “O grande problema não é o caso da Marielle em si, é todo o
resto que está para além do caso Marielle e que, se ficarmos agora conversando
sobre o caso, não vamos pensar e refletir sobre todo o resto que existe”,
complementa.
Quando olhamos o caso
em perspectiva com a Intervenção Federal, em que o general Braga Netto assumiu
a segurança pública do Rio de Janeiro e nomeou um dos artífices do assassinato
da ex-vereadora carioca e seu motorista, recordamo-nos de histórias perversas
do regime militar e dos esquadrões da morte.
A revelação dos nomes
dos artífices do crime contra a vereadora carioca e seu motorista ocorre
aproximadamente uma semana antes da data que completa 60 anos do Golpe
Civil-Militar de 1964. O assassinato ocorreu sob Intervenção Federal na
segurança pública do Rio de Janeiro, sob o comando do general Braga Netto. Mas
a escolha do governo federal diante desse contexto, ao invés de encarar a
ferida aberta da ditadura no Brasil, foi a de colocar panos quentes.
“A tutela militar
sobre o governo civil permanece, não se iludam. Solicitar aos ministérios todos
a não memória, a não recordação, a não lembrança dos 60 anos do Golpe Militar,
em mensagem enviada pelo atual Presidente da República, revela muito essa subjugação
do poder civil atual à tutela militar no Brasil”, critica o pesquisador. “Como
estudo grupos de extermínio, sei que eles foram criados na ditadura militar a
partir do Golpe Empresarial-Militar de 1964, sei muito bem que milicos e
milícias estabelecem uma relação muito forte entre si, de modo que a relação
entre a canalha assassina e os nobres generais é algo antiquíssimo”,
acrescenta.
<<<<
Confira a entrevista.
• Mais de seis anos depois, completados em
14 de março, o caso Marielle tem um novo e, por que não, surpreendente
capítulo: foram presos os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão, conselheiro do
Tribunal de Contas do RJ e deputado federal, respectivamente, bem como o
delegado da Polícia Civil Rivaldo Barbosa. Quem são esses personagens no
contexto da política fluminense?
José Cláudio Alves –
Domingos Brazão foi citado na CPI das Milícias em 2008, foi umas das pessoas
apresentadas como parte daquela estrutura naquele momento. Chiquinho Brazão faz
parte da família – chamada clã Brazão. Eles têm um histórico longo de poder, de
disputa por terras e homicídios na região da Zona Oeste, mais especificamente
próximo a Jacarepaguá. Os Brazão consolidaram uma estrutura de poder que
envolve a atuação de grupos armados naquela região e que está relacionado
também aos projetos milicianos. Eles, em si, não são os que operam no chão da
rua nessa estrutura miliciana, mas se servem dessa estrutura e, de certa forma,
estabelecem uma relação muito forte com ela controlando a movimentação.
A entrada e o controle
do território, da ocupação urbana nessa área de Jacarepaguá, nesse trecho da
Zona Oeste do Rio de Janeiro e de várias comunidades, é o ponto chave para a
construção de estrutura de poder miliciano.
A partir da ocupação humana do território é possível conseguir várias
movimentações econômicas importantes, como: construção civil, eletricidade,
distribuição de água e gás, gato-net, transporte clandestino, cobrança de taxa
de segurança para comerciantes e empresários etc. Com isso, descortina-se um
leque de possibilidades quase que infinitas, porque é uma urbanização
controlada pela estrutura miliciana que vai se desdobrar ali pela crescente
participação da população que não tem para onde ir, a não ser participar dessa
estrutura como um todo, que é uma estrutura controlada – com um controle
praticamente totalitário dessas dimensões. O clã Brazão se especializou e
sempre foi muito forte nisso. E, foram denunciados, dez anos antes do
assassinato da Marielle.
<<<< CPI
das milícias
Nos dez anos que se
seguiram após a CPI das Milícias, desde 2008, quando ela foi criada, e onde
Marielle participou, porque era assessora do gabinete do Marcelo Freixo do
PSOL, que era relator da CPI, nem Marielle e nem as lideranças do PSOL
perceberam de fato o risco de disputar com esse clã e simplesmente foram
atingidos por isso. Porque disputar interesses com esse grupo, em especial na
questão do acesso à terra, apoiar como a Marielle fez para ocupar esses
terrenos e entrar nessas áreas onde eles tinham interesse de controlar era uma
ação política que representaria uma disputa com esse clã, que já tinha um
histórico de confrontos armados e de morte de pessoas ali naquela região.
• No mandato de prisão expedido pelo STF,
um dos suspeitos presos é, nada menos, que Rivaldo Barbosa, o delegado que foi
nomeado ao comando da Polícia Civil do Rio de Janeiro dez dias antes do
assassinato de Marielle. Ele é acusado de planejar a execução. O que isso
revela sobre a relação das milícias cariocas com a polícia?
José Cláudio Alves –
Rivaldo Barbosa, delegado, e o Giniton Lages, outro delegado envolvido no caso,
aparecem juntos com mais uma advogada e com mais um membro da Delegacia de
Homicídios no processo. Eles montaram um grande esquema de acobertamento de crimes,
de proteção a assassinos, um esquema por dentro da estrutura policial, que é
muito mais comum do que imaginamos. Isso aparece no caso Marielle porque
tiveram que trazer à tona em função das implicações do caso, da forma como se
desdobrou, da importância, da repercussão e da dimensão do atual governo, que
assume essa bandeira como uma questão de honra. Essa participação da estrutura
da Polícia Civil em apurações de crimes no Rio de Janeiro, na Baixada
Fluminense, é muito comum e com a atuação de proteção para aqueles que são
envolvidos com as estruturas milicianas. De uma forma direta – eles próprios
são milicianos – ou de uma forma indireta – o caso dos Brazão –, que é quando
eles se beneficiam, estabelecem uma relação e uma parceria com a estrutura miliciana
e se servem de todos os tipos de serviços dela para poder obter ganhos, para
montar a estrutura de poder. É muito comum no Rio de Janeiro e não tenho
nenhuma dúvida que é uma estrutura que funciona no país como um todo.
>>> Modelo de
ação miliciana
Se formos para o
Norte, Nordeste e Centro-Oeste, teríamos que identificar os grupos econômicos
dominantes nessas regiões, a estrutura de grupos de extermínio, jagunços,
estruturas de controle territorial, confrontos e controle armado dentro de
territórios, e detectar a participação da estrutura policial em tudo isso. Se
formos analisar, observaremos essa estrutura em vários confrontos e conflitos.
Talvez não com as mesmas especificidades do Rio de Janeiro, com a estrutura
miliciana e política carioca, mas com outras especificidades; esse é o grande
modelo. A Segurança Pública, como uma dimensão do Estado, acaba se
transformando em uma hipertrofia de poderes, de presença e de controle em todas
essas dimensões de conflitos dentro dos territórios por “n” interesses:
agronegócio, mineradoras, empreiteiras, grilagem de terras, desmatamento e
todos os coronéis que controlam eleitoralmente e politicamente diversas
regiões. Essa é uma dinâmica nacional, não só do Rio de Janeiro.
>>> Estrutura
miliciana
A estrutura miliciana
tem essa grande vantagem de estar inserida na estrutura do Estado de forma
decisiva, como foi o caso Marielle. O fato de ter delegados da estrutura
policial em si mesmo, envolvidos em toda essa construção da trama, revela a
capacidade que a milícia tem de se proteger, se perpetuar e de obter
informações privilegiadas. Além disso, ganhos a partir da sua inserção dentro
do Estado. Portanto, é o próprio Estado, não há estrutura diferente da milícia
em relação ao Estado. É quando o Estado se estabelece de forma a obter ganhos a
partir de grupos armados que estão inseridos dentro e fora sua estrutura, mas
também, claro, mergulhados dentro das estruturas econômica e política. Sem o
apoio financeiro desses vários negócios, sem suporte político e a proteção que
a polícia vai obter junto a grupos políticos, com nomeações – veja que o
próprio Rivaldo Barbosa é nomeado dez dias antes do assassinato da Marielle
pelo General Walter Braga Netto, responsável pela intervenção federal. Todas
essas costuras se dão dentro do Estado a partir dos interesses desses grupos
que se protegem e avançam muito bem. O caso Marielle não deu certo porque
ganhou muita visibilidade, se tornou uma bandeira de movimentos sociais, ganhou
uma dimensão internacional e uma repercussão que talvez não tenham previsto. Ou
talvez eles também contassem com a manutenção da estrutura política que deu
origem à intervenção – a continuação foi Bolsonaro em relação à intervenção que
era na época do Temer – e eles contavam com a continuidade desse projeto
político onde o Braga Netto estava inserido como Chefe da Casa Civil, Ministro
da Defesa e depois como candidato à vice na chapa da reeleição do Bolsonaro.
>>> A eleição
que mudou os rumos da investigação
Era uma estrutura que
se pensava continuar e não foi. Talvez nesse ponto se deu a inflexão que
permitiu chegar a esse resultado. Eles acreditavam que seria possível continuar
– e era possível sim. Quando vemos as eleições e a diferença tão pequena, as tentativas
de golpe de 8 de janeiro de 2023, percebemos que está tudo encadeado. O que
estamos vivendo hoje com a descoberta de todos esses acusados, autores em
termos do crime – mandantes –, poderia ter acontecido. Se a vitória não fosse
do Lula, se o 8 de janeiro tivesse sido bem-sucedido como golpe, poderíamos
hoje ter outro desfecho ou não ter desfecho algum, continuar nessa nuvem
embaralhada de esquecimento, ausência total de informações e ocultação desses
crimes todos.
• O que se sabe até o momento, segundo as
investigações divulgadas, é que os mandantes do crime são Domingos e Chiquinho
Brazão. O senhor acredita que as investigações podem trazer outros nomes à
baila?
José Cláudio Alves –
Não acredito que essa investigação traga muito mais. Quando olhamos o relatório
final, ele foi muito bem elaborado. A questão é essa a meu ver. O caso Marielle
é um ponto dentro de um cenário muito maior e muito mais complexo. Muitas vezes
se alimenta, em relação ao caso Marielle, uma ideia de que agora se colocou fim
ao esquema das milícias; cria-se um pouco essa expectativa. Talvez pelo
desespero nosso, por todo esse sofrimento que essa estrutura produz e pela
convivência com esse sofrimento, que nos fazem ter essas percepções. A dimensão
real é outra: o caso Marielle é um ponto, uma batalha vencida no meio de uma
guerra gigantesca, onde há inúmeros casos de disputas, assassinatos,
homicídios, atuação miliciana brutal, violenta, desaparecimento forçado – que é
o que venho investigando recentemente como uma prática que está se disseminando
entre as estruturas de grupos armados, mas principalmente a partir das milícias
que têm a proteção e a atuação direta da estrutura estatal. Ou seja, não estou tão interessado
especificamente no caso Marielle, que é um caso bem-sucedido: temos que
comemorar enquanto for possível.
>>> Marielle:
ponta do iceberg
O mais importante
seria ter uma dimensão mais ampla desse imenso iceberg, pois pegamos a pontinha
dele e precisamos aprofundar. Mas há vontade política para isso? Eu não vejo. É
um ano eleitoral decisivo. Toda essa estrutura que foi montada na estrutura do
estado do Rio de Janeiro – estou falando de estruturas pesadas – de deputados
estaduais na ALERJ, com quem o governo do estado permanentemente faz negócios e
acordos. Vamos lembrar que o atual Secretário de Polícia Civil do estado do Rio
de Janeiro foi indicado pelo governador a partir das pressões feitas pela
Assembleia Legislativa, que alterou a Lei Orgânica das Polícias Civis do RJ
para indicar o nome que eles queriam, por conta dos interesses envolvidos com
esse nome. O Marcus Amim não tinha 15 anos de Delegado, como era previsto na
Lei Orgânica da Polícia Civil exigia para ocupar cargos hierarquicamente
superiores dentro da estrutura de Segurança Pública. A alteração foi feita
porque esse homem foi indicado por Marcio Canella, um Deputado Estadual vinculado
a Belford Roxo, que obteve metade da votação da cidade de Belford Roxo – que
tem cerca de 500 mil habitantes – com a maior votação para Deputado Estadual.
Como ele conseguiu isso? Algo muito próximo da estrutura política miliciana e
do cara que hoje disputa a cidade com ele, que é o Wagner Carneiro [Waguinho],
marido da Daniela Carneiro que foi, no começo do governo Lula, a Ministra do
Turismo. Para quem o senhor Marcelo Freixo, paladino contra as milícias,
trabalhou felizmente, com muita alegria e prazer, para ela.
A estrutura do
Waguinho é semelhante à do Marcio Canella, ou seja, colada, vinculada e
estreitamente próxima à estrutura miliciana. Tem farto material de mídia sobre
isso, com vários casos na cidade relatando essas dimensões, É disso que se
trata.
A estrutura de poder
está toda se movimentando para as eleições desse ano. O caso Marielle é
resolvido no início do ano, sem que isso traga qualquer desdobramento para as
outras dimensões dessa estrutura miliciana daqui para frente. Nós vamos
comemorar – é muito bom ter essa notícia, é uma contradição, pois ficamos
felizes com tudo isso –, mas, por outro lado, olhamos para essa questão e
percebemos que não será resolvido. Não há interesse em tocar nisso, porque tem
muita coisa envolvida, muitos jogos de poder e grana, muitas relações com a
política, com as quais o governo Federal e o Congresso lidam. O governo atual
não quer confrontar com a estrutura de poder do governo do estado, da estrutura
política no Rio de Janeiro, que passa pela Assembleia Legislativa, vereadores e
prefeitos do estado como um todo. Uma estrutura muito comprometida com o
controle territorial, compra de votos, exclusividade de campanhas e acordos com
estruturas muito mais fortes e poderosas. Não se quer tocar nisso e estamos
diante de uma limitação.
>>>>
Baixada Santista
Se olharmos para a
atuação do Ministério dos Direitos Humanos na Baixada Santista com relação à
Operação Escudo, tanto na primeira fase de 40 dias, onde foram mortas 28
pessoas a partir da operação policial, como na segunda fase, que já matou algo
semelhante à primeira fase, e não há sequer uma comissão de peritos feita por
esse Ministério dos Direitos Humanos para apurar a situação das mortes ou o
desejo de descobrir que tipos de mortes são essas. Se nem isso se faz num caso
tão brutal e absurdo quanto esse, porque não se quer disputar, tocar e
confrontar a estrutura de poder e polícia do Tarcísio de Freitas em São Paulo,
por conta dos interesses no Congresso Nacional, percebemos que não temos
grandes avanços e estamos enredados em algo sem solução. O interesse maior do
governo é fazer acordos para sobreviver, para aprovar seus projetos e com esses
projetos procurar angariar apoios políticos para o futuro. Não estão
interessados em alterar essa estrutura. Tanto é que a primeira chance que teve
de se conectar com essa estrutura, que foi o caso da Ministra do Turismo,
Daniele Carneiro, isso ficou muito evidente: era uma retribuição de campanha
exatamente com esses grupos. O que deixa nítido que não há interesse de mudar
isso e que esse é o grande problema.
O grande problema não
é o caso da Marielle em si, é todo o resto que está para além do caso Marielle
e que, se ficarmos agora conversando sobre o caso, não vamos pensar e refletir
sobre todo o resto que existe. Existe uma expressão, Limited hangout, ou seja,
cria-se um fato, um evento e ele é limitante; ele parece uma solução, mas é
apenas uma aparência, um ponto que segue a sua frente para desviar
absolutamente a atenção, e não somos capazes de seguir adiante e perceber o
cenário e o tabuleiro como um todo. É isso que o caso Marielle há muito tempo
já se transformou.
• Marcelo Freixo, político responsável por
levar adiante a CPI das Milícias do Rio de Janeiro em 2008, contou em diversas
entrevistas que poucas horas depois do assassinato de Marielle Franco e
Anderson Gomes, na mesma noite do crime, ele recebeu mensagens falsas no
celular associando Mariele a Marcinho VP. Diante deste fato e do que se sabe
até agora é possível que o “gabinete do ódio” tenha coparticipado do crime,
nesta função de tentar criar uma imagem pública desfavorável à Marielle?
José Cláudio Alves –
As imbricações entre o que você chama de “gabinete do ódio” ou as movimentações
da extrema direita ou Bolsonarismo, seja lá qual for o nome, com a estrutura
miliciana, é uma relação diversa, múltipla e complexa. Não se estabelecem apenas
em um nível, uma escala, são múltiplas escalas. Estamos falando em uma escala
mais específica em relação à morte da Marielle, uma divulgação de fake news – é
uma prática e eles farão isso com tudo que possam fazer, porque faz parte da
construção de um ideário da extrema direita. Não fica limitado somente a isso.
Tem os apoios eleitorais, de bandeiras políticas, de sustentação de projetos e
propostas no território, a convivência direta com a estrutura miliciana, a
conexão da estrutura miliciana com outras estruturas sociais – a mais
reconhecida e importante é a estrutura das igrejas evangélicas. Há um leque de
possibilidades entre a extrema direita, suas práticas – o gabinete do ódio é
apenas uma delas – e uma miríade de relacionamentos, comportamentos, ações
políticas e práticas – econômicas, políticas e de ocupação territorial – que
estão no território.
<<<< Crime
na era da pós-verdade
Estamos olhando essas
acusações desse caso de que Marielle tinha relações com o Marcinho VP é apenas
uma dessas dimensões de fake news. Existem muitas outras que são muito
sofisticadas. Sofisticadas no sentido que vão disseminar um conjunto de
informações que vão embaralhar tudo e as pessoas não têm mais noção absoluta de
nada. A ausência de uma referência do que seria verdadeiro não existe mais,
estamos na fase da pós-verdade. Tudo depende das conexões que temos com grupos
de informações, podemos chamar de bolhas, mas são esses grupos de
relacionamento por redes sociais e estruturas de informação altamente abertas e
incontroláveis (e, por outro lado, controláveis pelos grupos em si) que vão
disseminar essas informações. É isso o que hoje nos rege e não há muito como
escapar de todo esse jogo.
O caso Marielle foi
inserido nesse jogo e continuará sendo. As versões todas que estão vindo à
baila a partir desse processo serão todas reconfiguradas e trabalhadas de forma
falsificada para manter esses vínculos da Marielle com o crime organizado, com tudo
aquilo que eles odeiam – identidade sexual, étnica e as dimensões políticas que
ela defendia serão demonizadas, com certeza, por esses grupos. A Marielle
continuará como uma espécie de bête noire (besta) da esquerda que agora é
utilizada para atingir pessoas de bem-fazeres, os “homens de bem”, os Brazão,
que tanto bem fazem às comunidades que eles estão. Com certeza tudo isso será
usado dessa maneira; não se iluda. Hoje em dia não tem mais nada que não seja
disputado dessa forma e isso está colocado.
• Voltando a Rivaldo Barbosa, o delegado.
Antes de sua nomeação pelo general de Exército Richard Nunes, então secretário
de Segurança Pública do interventor, o general Braga Neto, o setor de
inteligência do Exército recomendou a não nomeação de Barbosa. Em vão, Barbosa
foi nomeado à revelia da recomendação técnica. O que esse gesto indica?
José Cláudio Alves –
Essa questão da nomeação do Rivaldo Barbosa pela estrutura de Intervenção
Federal, especialmente no que toca às recomendações de que ele não deveria ser
nomeado, é uma questão que quem vai investigar? Como essas coisas vão avançar?
A gente sabe que o Braga Netto estava envolvido com a tentativa de golpe, no
dia 8 de janeiro de 2023. Na verdade, existe um monte de pontos soltos que
poderiam ser aprofundados em diversas direções para se compreender outras
dinâmicas desse crime como um todo. Não sei se isso será feito e me parece que
não há interesse sobre isso. O Rivaldo Barbosa deve ficar como a personificação
desse crime na estrutura policial toda comprometida com a milícia. Nós temos
muitas dimensões que poderíamos avançar, mas a investigação ficará limitada ao
que o processo está trazendo em seu relatório final. Para avançar além disso,
identificar como tudo foi sendo montado, seria necessária vontade política para
avançar e apurar mais. Não sei se há essa vontade, por vários fatores. Um deles
mencionei, que é o fato de o comandante desse processo todo, general Braga
Netto, estar arrolado em outro processo.
Veja que o governo
está rebaixado à estrutura de poder militar. A tutela militar sobre o governo
civil permanece, não se iludam. Solicitar aos ministérios todos a não memória,
a não recordação, não lembrança dos 60 anos do Golpe Militar, em mensagem enviada
pelo atual Presidente da República, revela muito essa subjugação do poder civil
atual à tutela militar no Brasil. Ao meu ver, não avançar nas investigações
contra o Braga Netto, para além da investigação do 8 de janeiro, revela esse
desejo de, precisamente, não investigar e um interesse de acomodar, conciliar
tudo. O governo acha que resolve as coisas dessa forma. Quando essa estrutura,
hoje protegida e acobertada, resolver se manifestar com um projeto político,
tendo Bolsonaro ou não à frente, aí as pessoas vão se perguntar “por que isso
está acontecendo?”. As pessoas ficam atordoadas e ninguém sabe o que está
acontecendo (sic). Isso é uma escolha e tem a ver com um projeto, com o
lulismo. Alguém pode argumentar “vai ter presos no 8 de janeiro”. Sim, eu espero
também. E o que isso significa no conjunto como um todo? Não sei se significa
muita coisa. Eles vão voltar depois? Sim, vão voltar com um projeto. Por que
não se reinstala a comissão de mortos e desaparecidos na ditadura militar, tal
como Lula prometeu na campanha e agora ninguém mais toca nisso? Por que a
Comissão da Verdade não vem trazer à tona todos os crimes praticados por esses
milicos que estão aqui no Brasil? Tudo isso está sendo acobertado e é uma
escolha, uma opção política, e ela terá consequências. Lembrem-se que Trump
está voltando nos EUA e com muita força. Esse será o cenário para frente.
• Conhecendo o Rio de Janeiro como senhor
conhece, pode-se considerar crível que a motivação do assassinato da
ex-vereadora tenha sido em função de uma disputa de terrenos que envolvia
interesses da milícia e grilagem?
José Cláudio Alves – A
motivação imediata, a questão dos terrenos, é apenas a porta de entrada de
tudo. É preciso compreender que a ocupação urbana desses territórios, cada vez
mais demandada, é uma ocupação que vai representar uma movimentação política muito
importante e significativa de poder em determinada região. A entrada no
território por uma população com dificuldades enormes de sobrevivência, vai
demandar um conjunto de serviços, gás, água, internet, uma miríade de
possibilidade e, dentre elas, a questão do voto, da liderança política, o voto
controlado por grupos políticos que vão liderar essa negociação com outros
partidos políticos. Veja, por que Eduardo Paes, semanas atrás fez um conjunto
de elogios à família Brazão, em Jacarepaguá, citando os patriarcas, elogiando
os mais novos que estão entrando na política, como protetores daquela
comunidade? Por que Marcelo Freixo, hoje no PSB, elogia Eduardo Paes mesmo ele
tendo falado tudo isso dos Brazão? Pasme, eles estavam convidando para ser vice
do Eduardo Paes a Anielle Franco, irmã de Marielle, hoje, no Ministério da
Igualdade Racial. Por que essa costura foi feita pelo PT, PSB, por grupos de
esquerda que deveriam estar pensando de outra maneira? Porque tudo é um arranjo
na estrutura política.
O Washington Quaquá,
presidente do PT no Rio, faz elogios rasgados à participação dos Brazão nas
campanhas em que a sigla está envolvida. André Ceciliano, ex-presidente da
Assembleia Legislativa fluminense, foi quem costurou a indicação do Domingos
Brazão para o Tribunal de Contas do Estado, com um trabalho de convencimento e
votação do nome dele na ALERJ. Todo o leque político do Rio de Janeiro está
comprometido com a estrutura dos Brazão. Representantes que têm muito poder na
cidade, fizeram defesas e estabeleceram relações com os Brazão, o que demonstra
o tamanho disso tudo. Agora vem a acusação formal, todo mundo fica calado,
ninguém toca nisso tudo, quem vai defender esse clã? Agora todo mundo faz igual
tartaruga e coloca a cabeça dentro do casco. Vão esperar passar a turbulência
para depois dizerem “nós lutamos, fizemos isso e aquilo”. Essas coisas se
apagam, as pessoas se esquecem. Por quê?
No lugar dos Brazão
vão entrar outros grupos milicianos, outros grupos de organização do território
que vão receber os votos e as economias movimentadas nesses territórios e tudo
isso vai continuar porque ninguém vai desmontar. Porque ninguém tem interesse
de destruir essa estrutura de poder fabulosa e fascinante que dá muito ganho,
muitos votos e poder. É uma governamentalidade fantástica, Foucault não
imaginou isso. Uma governamentalidade criminal que parte do legal e do ilegal
ao mesmo tempo, onde o Estado cresce nessa articulação, e que permite ganhos
muito maiores.
• A partir da investigação atual da
Polícia Federal há indícios de que havia um esquema estrutural de corrupção na
Delegacia de Homicídios do Rio de Janeiro, conduzida por Rivaldo Barbosa. É
possível que se descubram outros assassinatos associados à milícia que não
foram investigados com o devido cuidado?
José Cláudio Alves –
Como já falei, essa estrutura policial comprometida com estruturas de grupos
armados e criminais é muito antiga. Estudo isso há muito tempo. Ela vem
produzindo casos e mais casos que não são visibilizados como o caso Marielle.
Ou seja, essa estrutura funciona perfeitamente para proteger quem está
vinculado à estrutura miliciana. Nas investigações, nas operações da Polícia
Militar, que é uma outra estrutura, na estrutura da Polícia Civil, do
judiciário, é possível verificar que os estágios probatórios dos milicianos são
bem simples porque não tem como comprovar, porque não tem provas. E por que
isso acontece? Porque não tem provas contra eles. Quando compara a investigação
das milícias e do tráfico não tem como comparar, a diferença é muito grande.
• Com a prisão dos suspeitos pipocaram
notícias de todos os vieses ideológicos. Em uma das versões a família Bolsonaro
estaria aliviada com a revelação dos mandantes do crime, pois estaria afastada
a relação entre o clã Bolsonaro e o assassinato. A esta altura é possível
descartar qualquer envolvimento?
José Cláudio Alves – A
relação do Clã Bolsonaro com o Clã Brazão se dá porque ocupam espaços
políticos, econômicos e sociais em um mesmo território. De modo que eles
convivem e coabitam lugares comuns com trajetórias muito semelhantes à
estrutura de grupos armados ou do Exército ou Miliciano. Como estudo grupos de
extermínio sei que eles foram criados na ditadura militar a partir do Golpe
Empresarial-Militar de 1964, sei muito bem que milicos e milícias estabelecem
uma relação muito forte entre si, de modo que a relação entre a canalha
assassina e os nobres generais é algo antiquíssimo. Assim se deu a “conquista”
do território, o genocídio de negros e o contínuo genocídio contra pretos e
pobres. Essa é a história do país. A relação direta, imediata, entre o Clã
Bolsonaro e o Clã Brazão no caso do assassinato de Marielle não se sustenta em
provas. Não aparece em lugar algum. Se fizeram essas ilações são em termos
imaginativos, é preciso dizer, mas não há nenhuma prova concreta. Se não for
levada adiante a investigação da suposta visita que Bolsonaro recebeu, por
parte do Élcio Queiroz, não é possível afirmar que há uma relação.
• Como todo esse caso ilustra o cenário
atual da violência no Rio de Janeiro e da relação entre o crime e o Estado?
José Cláudio Alves – O
Caso Marielle lança uma luz, em um ponto específico, algo muito pontual e
concreto e serve para mostrar algo que eu sempre abordei e comentei nas minhas
pesquisas: a estrutura de grupos armados e sua estrutura política que cresce e
vai se ampliando. Esse caso revela de modo bem localizado como se processa tudo
isso. Uma das dificuldades de chegar às conclusões do Caso Marielle são todos
os demais que ainda não foram resolvidos. A questão das ocupações territoriais
são, na maioria, todos legalizados, todos autorizados, todos formalmente
constituídos e avançando. O caro Marielle é uma exceção. A morte e o
assassinato são exceções do projeto deles, o que vigora mesmo são as dimensões
legais permitidas pelo judiciário, aprovadas pelo Legislativo e implementadas
pelo Executivo.
<<<< O
caso de Duque de Caxias
Por exemplo, em Duque
de Caxias tem uma área imensa de 3,5 mil hectares de terra, próximo à Rodovia
Washington Luís, na BR-040, chamado Campo do Conva. Essa área fica aos fundos
de dois bairros controlados há mais de 30 anos por milicianos, que vendem nesses
locais terrenos e aterros para construção. Ali se constituíram várias
comunidades. Os bairros se chamam Pilar e São Bento. O ex-prefeito, que quase
foi vice-governador e atualmente Secretário de Transporte do governo Cláudio
Castro, o senhor Washington Reis, encaminhou um projeto para transformação
desses 3,5 mil hectares de terra no Centro de Abastecimento do Rio de Janeiro –
CEARJ, um segundo CEARJ, pois já existe um em Irajá, na capital. Ele quer
transformar 20% da área no CEARJ e os outros 80% seria para projetos
imobiliários. Ou seja, 30 anos de ação miliciana vendendo na região terra da
União como se fossem áreas privadas, com contratos em cartórios, pode, agora,
virar um grande projeto, como o próprio Reis fez na região de Xerém. Inclusive
esse secretário foi condenado pelo STF porque construiu um condomínio na
Reserva Biológica do Tinguá. Só está solto porque tem grana o suficiente para
recorrer na justiça contra a condenação. As dimensões legais são as mais
importantes. Por que todos nós jogamos um holofote sobre o crime, uma dimensão
ilegal, como se ela fosse uma grande questão? Agora devemos ficar felizes e
comemorar que identificaram o caso de Marielle, enquanto todo o resto da boiada
continua passando porque é legalizado? Essa engrenagem funciona e todos esses
interesses vão rodando, porque essa estrutura permanece e não recua nunca.
Fonte: Entrevista José
Cláudio Souza Alves, para IHU e Baleia Comunicação
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