Na Guatemala, indígenas barram movimento
golpista enquanto lutam por reparação
Em fevereiro, um
julgamento histórico ocorreu na Guatemala, país da América Central onde cerca de 44% dos quase 15 milhões de habitantes se identificam como
indígenas. Um tribunal na capital condenou a
sete anos e dez meses de prisão seis militares envolvidos no massacre de cinco
civis indígenas da etnia maia k’iche, alvejados em 2012 enquanto protestavam
por melhorias sociais em uma rodovia, na região oeste do país.
A condenação simbólica
marca a disputa dos indígenas contra a impunidade do Estado em uma série de
violações que, no seu auge, ficaram conhecidas como o “Holocausto Silencioso”.
O termo é usado para descrever a matança de civis, em sua maioria indígenas Maias,
durante a violenta Guerra Civil do país ocorrida entre 1960 e 1996.
As condenações,
contudo, também foram percebidas como uma derrota para o movimento indígena.
Isso porque os juízes absolveram, no mesmo julgamento, um coronel e um soldado
que respondiam por crimes de “execução extrajudicial”. O delito pode gerar
penas de até 30 anos de prisão, segundo o Código Penal
da Guatemala.
Em anos anteriores, o
alto militar absolvido, Juan Chiroy, chegou a ser formalmente responsabilizado
pelo Ministério Público do país por ordenar que agentes disparassem contra os
manifestantes. A decisão de fevereiro é vista como uma reviravolta judicial, já
que o tribunal entendeu que não há provas suficientes para condenar o coronel.
“É uma forma de
racismo”, descreveu Edin Rafael Tzul, presidente dos 48 Cantões de Totonicapán,
influente entidade de quase 500 anos que integra comunidades k’iche e conta com
representantes em diferentes níveis distritais e municipais da região.
Mesmo com esse longo
histórico de violência sofrida, como em países latino-americanos como a Bolívia e
o Equador, a
Guatemala vê organizações originárias como os “48 Cantões” exercerem um papel
de destaque em diferentes acontecimentos da vida política.
Um dos exemplos mais
importantes aconteceu em 2023, quando, sob a liderança do grupo de Totonicapán,
diferentes entidades originárias tomaram as ruas da capital para protestar a
favor de Bernardo Arévalo, o atual presidente de centro-esquerda do país e dono
de uma agenda que promete a inclusão de grupos marginalizados.
Empossado no cargo em
14 de janeiro deste ano, Arévalo passou todos os meses de transição desde sua
vitória no segundo turno, em agosto passado, sob forte ameaça: seu partido, o
progressista Semilla, chegou a ser suspenso após acusações não comprovadas de
ter cometido irregularidades de registro eleitoral. Todas essas ações, criticadas por juristas e por diferentes entidades internacionais, foram movidas
pelo Ministério Público da Guatemala.
Esse mesmo MP, cuja
alta cúpula é vista como aliada a
setores políticos da direita, é alvo de críticas desde antes da vitória de
Arévalo: em 2021, o órgão já era citado entre “atores corruptos e
antidemocráticos”, conforme consta em relatórios de 2021 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH).
Arévalo, ao lado da
Organização dos Estados Americanos (OEA), sempre classificou as manobras contra
si de “uma tentativa de golpe de Estado”, enquanto as organizações
indígenas prometiam que
ocupariam as ruas até que a cerimônia de posse fosse realizada, e que o novo
governo de esquerda iniciasse sua gestão.
Apesar das pressões
vindas de diversos setores civis e políticos de dentro e fora da Guatemala, a
procuradora-geral Consuelo Porras – considerada por analistas o
pivô da crise judicial e alvo de sanções internacionais por liderar ações que “minam a democracia e o Estado de
direito” – nega todas
as acusações. Segundo a procuradora, as investigações contra o Semilla de
Arévalo ocorrem dentro da legalidade e todas as denúncias contra sua gestão à
frente do Ministério Público são fruto de “campanhas de desprestígio e
desinformação”. Ela tomou posse como procuradora geral em 2018.
·
O caminho do holocausto indígena na
Guatemala
Muito antes do
julgamento recente, o processo político que faria eclodir o genocídio de
indígenas na Guatemala, especialmente entre 1981 e 1983, não se limita ao
início do conflito civil, datado, oficialmente, a partir da década de
1960.
“De meados do século
16 até 1944, a população indígena foi forçada a trabalhar gratuitamente em
infraestruturas públicas e em fazendas privadas de café. Dentro das fazendas,
esses grupos viviam sob as regras locais, e não as estatais, com episódios
frequentes de violência, estupro de mulheres, entre outros elementos”, descreve
o historiador guatemalteco Rodrigo Véliz Estrada, que estuda a dinâmica do
autoritarismo centro-americano e é pesquisador do tema na Universidade Livre de
Berlim.
Ele entende que a
violência histórica é “parte do processo de invasão espanhola” nas Américas,
iniciado no final do século 15, e que submeteu o território maia ao domínio
colonial até 1821, quando os atuais países latino-americanos começaram a
conquistar a independência. Apesar de se tornar uma nação soberana e livre da
Espanha desde aquele período, a Guatemala viu a lógica de dominação e violência
se transferir aos círculos de poder econômico durante todo o século 20.
O ano de 1944, citado
por Estrada, é considerado um ponto de virada na história da Guatemala, e seria
futuramente usado como o pretexto para o aumento da repressão
a grupos étnicos originários. Foi nesse ano que se iniciou a chamada “Revolução
de Outubro”, um movimento cívico-militar que reuniu demandas de diversos grupos
sociais, movimentos de trabalhadores e militares com visão reformista para
derrubar o governo golpista do general conservador e pró-EUA Federico Ponce
Vaides.
Durante toda a década
seguinte, os chamados anos de “primavera” deram abertura para a criação de uma
série de bases democráticas inéditas na Guatemala – entre os exemplos mais
famosos estão a realização de eleições livres, avanços trabalhistas e até leis de reforma agrária que
redistribuíram terras entre as classes mais desfavorecidas.
“A Revolução de
Outubro foi uma resposta aos governos oligárquicos que estiveram no poder desde
o final do século 19”, ressalta Estrada.
Essa etapa de
progresso, no entanto, foi interrompida abruptamente pelo golpe de Estado de
1954, contra o então presidente Jacobo Árbenz, um militar reformista e o
segundo de uma curta leva de presidentes progressistas. Segundo documentos desclassificados da
CIA, o serviço de inteligência estadunidense, e informações disponíveis nos portais do Departamento de Estado dos EUA,
o levante conservador contou com apoio bélico, estratégico e logístico do
governo norte-americano.
O golpe também teve
amparo financeiro da United Fruit Company, atual Chiquita Brands, companhia dos
EUA que monopolizou a produção de frutas nas Américas naquele período – e
ajudou a instalar governos de direita que não prejudicassem seus negócios com
obrigações fiscais ou trabalhistas.
Ditadura levou a cabo
matança de indígenas
No pós-golpe, o
assassinato de indígenas correu indiscriminado. Em alguns casos, eles foram
“confundidos” com guerrilheiros e dizimados por esquadrões da morte, formados
por militares de extrema-direita. Embora alguns deles efetivamente tenham
pegado em armas na época, milhares de outros se converteram em alvo de uma
sistemática limpeza étnica, sob a acusação de estarem colaborando com os
movimentos armados de viés socialista.
O ponto crítico da
brutalidade aconteceu no início dos anos 1980, tempo em que governou o ditador
Efraín Ríos Montt.
O general Montt foi
alvo de repúdio internacional por suas ações: ele chegou a ser acusado e até
mesmo condenado em 2013 por crime de genocídio, fato inédito para um governante
na América Central e celebrado por organizações internacionais como a Human Rights Watch (HRW) como um marco legal.
Contudo, repetindo um
histórico de impunidade de ditadores latino-americanos, o militar viu sua
sentença ser anulada pela
Corte Constitucional (CC) do país em 20 de maio de 2013, apenas dez dias depois
de ser proferida.
Já em 2015, os
tribunais decidiram que o autocrata deveria passar por um novo julgamento,
enquanto a defesa argumentava que o réu não tinha condições de enfrentar o
processo por sofrer de demência senil – alegação usada durante os processos
contra o ditador chileno Augusto Pinochet, que foi apelidada de “síndrome de
Pinochet”.
O general guatemalteco
morreria impune aos 91 anos, em 2018.
Conforme consta na
sentença proferida em 2013, uma estimativa levada em conta por entidades
globais como a ONU e
a Anistia Internacional, nos anos sob o ditador Ríos Montt (1982-1983), mais de 1,7 mil
indígenas maias da comunidade de Ixil, que dentro do território guatemalteco se
estende majoritariamente pelo departamento de Quiché, perto da divisa com o
México, foram trucidados por forças da ultradireita.
O pretexto para os
governos militares era que a área montanhosa serviria de base para a operação
de movimentos guerrilheiros, dando ao Exército e a milícias pagas por grandes
proprietários de terra a desculpa para agir com o máximo de violência, conforme
ficou estabelecido pela verdade histórica e em relatórios e investigações sobre
a Guerra Civil.
“Pode-se argumentar
que esta mudança na forma de repressão contra a população indígena teve caráter
racista e de genocídio étnico”, explica o pesquisador. Durante toda a Guerra
Civil, dados da Comissão para o Esclarecimento Histórico (CEH), que atuou no papel
de comissão da verdade sob supervisão da ONU, estimam que mais de 200 mil
civis, em sua larga maioria pessoas de etnias originárias, foram mortos,
torturados e desaparecidos por forças do Estado. Em resposta ao ‘Holocausto
Silencioso’, a CEH publicou um relatório em
1999 revelando que o Estado guatemalteco foi responsável por 626 massacres
contra civis durante o quase 4o anos de conflito.
Em 1992, Rigoberta
Menchú, uma liderança indígena quiché que se destacou na defesa dos direitos
humanos de seu povo, chegou a ganhar o Nobel da Paz. Menchú, de enorme
reconhecimento internacional, até tentou chegar à Presidência duas vezes, em
2007 e 2011, sequer atingindo 4% dos votos em todo o país.
O ciclo de governos de
direita só seria interrompido em 2023, com a eleição de Arévalo, apoiado por
Menchú.
A jornada do novo
mandatário até a posse em janeiro também conta com um paralelo histórico: o
atual presidente é filho de Juan José Arévalo, o primeiro da dupla de
governantes reformistas a chefiar a Guatemala durante a “Revolução de Outubro”.
Como Árbenz, após o golpe de 1954, Arévalo ‘pai’ também acabou no exílio – por
essa razão, Arévalo, o filho, nasceu no Uruguai.
Para Menchú, que classificou de “histórico” o
novo ciclo político, a chegada do governo Arévalo pode abrir espaço para novas
pautas e maior participação para grupos originários, algo que pouco se viu
apesar do papel dessas entidades ao longo da história.
Fonte: Por Lucas
Berti, da Agencia Pública
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