quarta-feira, 3 de abril de 2024

Maria Rosária Fabris: Caminhos de memória

A cidade em que moro, guarda a lembrança de anos nefastos em muitos de seus recantos. Além do Elevado Presidente João Goulart, o popular Minhocão, o qual, ao ser inaugurado, em 1971, se denominava Elevado Presidente Costa e Silva, há outros que integram o programa “Ruas de Memória”, lançado pela prefeitura de São Paulo em 13 de agosto de 2015, a fim de rebatizar logradouros que homenageiam atores e apoiadores do regime militar, como as praças Humberto Reis Costa (Sapopemba) e Luís Eulálio Bueno Vidigal (Vila Nova Conceição); as avenidas Fuad Luftalla (Freguesia do Ó), Luiz Dumont Villares (Parada Inglesa) e Nadir Dias Figueiredo (Vila Guilherme); as ruas Dr. José Bento Ribeiro Dantas (Nova Piraju), Dr. Paulo Assis Ribeiro (Cangaíba), Henning Boilesen (Jaguaré) e Rui Gomes de Almeida (Penha); a travessa Dr. Trajano Pupo Netto (Lauzane Paulista) e a Escola Estadual Engenheiro Octávio Marcondes Ferraz (Artur Alvim).[1] Uma vez que o programa não foi levado adiante, seria mais apropriado chamar esses espaços “Ruas da ditadura”, como faz Joana Monteleone no texto dedicado ao tema.

Há ainda outros lugares que guardam uma memória funesta, dentre os quais o atual 36º Distrito Policial, à rua Tutóia, 921, no Paraíso, outrora sede do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações-Centro de Operações de Defesa Interna), um dos maiores centros de tortura do regime militar brasileiro, em cujo jardim o artista Fernando Piola plantou “clandestinamente”, durante quase dois anos, folhagens vermelhas para simbolizar o sangue ali derramado (Operação Tutoia, agosto de 2007-maio de 2009); o Presídio Tiradentes, no número 451 da avenida homônima, na Luz, do qual sobrou apenas o portal de pedra; e, no mesmo bairro, a antiga sede do DEOPS (Departamento Estadual de Ordem Política e Social), hoje ocupado parcialmente pelo Memorial da Resistência, o qual, dentre outras atividades, se dedica a recolher testemunhos sobre um dos momentos mais truculentos do país, a pesquisar e preservar os logradouros da repressão política, a realizar exposições sobre os conturbados anos da ditadura militar no Brasil e nos demais países da América Latina que passaram pela mesma experiência.

Foi no Memorial da Resistência que entrei em contato com as obras de artistas argentinos, brasileiros e chilenos, principalmente, em mostras que dialogavam com as que pude ver em outras instituições – como o Arquivo Público do Estado de São Paulo, o Centro Cultural Banco do Brasil, o Centro Universitário Maria Antônia e a Pinacoteca de São Paulo –, um diálogo sobre o qual já tive ocasião de escrever alguns textos.[2]

Em que pese o impacto causado por todas as exposições, 119, de Cristian Kirby – realizada no Memorial da Resistência entre 18 de outubro de 2014 e 18 de março de 2015 –, foi a que mais despertou minha atenção, embora tenha como pano de fundo a capital de um país que, todavia, não conheço. 119 (2013-2014), em seu formato paulistano, era constituída de 120 retratos de arquivo (um deles duplo) de presos políticos desaparecidos durante a ditadura chilena, um painel com fichas dos detidos e pastas que compõem o “Dossier – Caso de los 119”, colocadas numa mesa à disposição do público, numa nítida referência a arquivos policiais, mas com uma intenção oposta.

Havia ainda um vídeo produzido pela OPAL Prensa, que trazia em seu título o nome atribuído à ação repressora do governo chileno: Familiares de 119 detenidos y desaparecidos exigen justicia a 39 años de la Operación Colombo (Familiares de 119 detidos e desaparecidos exigem justiça pelos 39 anos da Operação Colombo, 2005).

O acontecimento ao qual se refere o vídeo é uma articulação entre o governo local e a Operação Condor. Forjando falsas notícias sobre a eliminação recíproca entre dissidentes, por meio da imprensa ligada aos órgãos oficiais, com o intuito de desqualificar as organizações opositoras, a Operação Colombo culminou na divulgação de uma lista de 119 desaparecidos, que foi publicada também no Brasil (em parte, com a divulgação de 59 nomes) e na Argentina (outra parte, com mais 60 nomes), em periódicos que circularam apenas na ocasião: o jornal curitibano Novo O dia (“Terroristas chilenos no interior da Argentina”, 25 de junho de 1975) e a revista bonaerense Lea (“Os que se calaram para sempre”, 15 de julho). Em seguida, a notícia repercutiu em dois diários chilenos: La Segunda (“Feroz expurgo entre marxistas chilenos”, 18 de julho; “Exterminados como ratos”, 24 de julho) e El Mercurio (“Identificados 60 miristas assassinados”, 23 de julho; “Investigação da Agência Latin sobre 119 miristas”, 9 de agosto),[3] ambos do Grupo El Mercurio.

A escolha da Argentina para divulgar uma das listas pode ter sido determinada pelo fato de Buenos Aires ser a sede operacional da Operação Condor, aliança entre os governos militares do Cone Sul, que se tornou oficial numa reunião realizada em Santiago em fins de 1975, mas já articulada dois anos antes. Integrada pelo Brasil, pelo Chile, pela Argentina, pela Bolívia, pelo Paraguai e pelo Uruguai, a Operação Condor atuou nas décadas de 1970 e 1980, com o aval dos Estados Unidos até 1977, na troca de informações entre os serviços de inteligência e no planejamento de ações de repressão à subversão. No caso do Brasil, é interessante lembrar que, além de participar da operação, a ditadura se preocupou com a situação chilena já antes do candidato da Unidade Popular ser eleito presidente (1970), como atesta ata da reunião de 24 de outubro de 1966 do Conselho de Segurança Nacional.

Alarmado com uma provável guinada à esquerda do Chile, o governo brasileiro manifestou sua disposição a colaborar num golpe de Estado para impedir o avanço do Socialismo e, ao que tudo indica, durante o mandato de Salvador Allende, financiou políticos da oposição. Quanto ao Grupo El Mercurio, é notório que este recebeu dinheiro da CIA (Serviço de Inteligência dos Estados Unidos) para fazer propaganda contra o governo de Salvador Allende.[4]

Apropriando-se de imagens de arquivo dessas 119 pessoas desaparecidas, as mesmas que os familiares carregam em suas reivindicações pelo esclarecimento dos sequestros, Kirby as imprimiu, mediante emulsão fotossensível, sobre folhas do mapa de Santiago e do índice de suas ruas. Cada retrato é acompanhado de uma etiqueta com nome completo, data de nascimento e de morte, ocupação, dados familiares, militância e local da detenção (domicílio ou logradouro público).

Como o próprio artista explicou, no site do Núcleo Memória: “O projeto começou em 2011, com uma proposta de documentação de lugares da cidade (residência e via pública) onde foram sequestrados cada um dos 119 presos desaparecidos. Conceber o projeto a partir do reconhecimento da história no espaço público significou assumir uma linguagem fotográfica a partir de sua condição ontológica de documentação, excluindo de minha proposta incorporar elementos teóricos e pseudopoéticos comuns à fotografia como a preocupação com o contraste, a luz, a composição e o enquadramento. Essas fotografias não buscavam a beleza e sim traduzir uma experiência chamada: Os caminhos da morte. E entender a cidade e o espaço público como espaços da memória. Na segunda etapa do projeto, que começou em 2013, os negativos dos retratos são utilizados como traços de luz, como pegadas de suas existências justapostas sobre o plano e índice de ruas da cidade (Santiago), que representa o território como experiência do político e como suporte de construção do ser social”.

Ao apontar que o projeto foi iniciado em 2011, Kirby está se referindo também à série anterior, Lugares de desaparición (2012), na qual apresentou os espaços urbanos em que alguns desaparecidos foram sequestrados, a fim de tornar a abrir uma ferida e fazer ressurgir, na memória coletiva da cidade atual, aqueles momentos trágicos que o governo de transição democrática (1989-1999), embora sem negá-los, havia reduzido a uma lembrança anódina.

Se, como vimos, para Kirby, na primeira série, a fotografia teve uma função documental, em sua tentativa de “traduzir uma experiência chamada: Os caminhos da morte”, em 119, a sobreposição dos rostos a fragmentos de mapas e a listas de ruas transforma a cidade como um todo não apenas no cenário da ação repressora do Estado, mas também num lugar de memória, naquela malha urbana na qual essas pessoas viveram, transitaram e à qual são devolvidas, voltando a inserir-se nela. É uma forma de reafirmar a presença desses seres na história do próprio país.

Tornar presentes pessoas ausentadas de uma Santiago ainda traumatizada pelo banho de sangue promovido pelo poder opressor havia sido também o objetivo de Luz Donoso em Acción de apoyo en un sistema comercial (1979), ao exibir, em telas de televisores à venda, expostos na vitrine de um magazine do Paseo Ahumada, as imagens de desaparecidos políticos. Imagens com as quais o público já havia se deparado em Huincha sin fin, no ano anterior, em que longas tiras de papel reproduziam, em xerox,[5] fotos de detidos-desaparecidos, de manifestações reivindicatórias e de ações repressoras da polícia que agitaram as ruas da cidade, artigos de jornais, folhetos, panfletos e outros escritos contra a ditadura, a fatídica pergunta “¿Dónde están?” e o título da obra seguido da frase “hasta que nos digan dónde están”.

Em quíchua, huincha designa uma fita estreita e comprida, de material flexível; portanto, o termo escolhido pela artista está em consonância com o suporte empregado, no qual as tiras vão se adicionando umas às outras, constituindo um arquivo em construção, a ser constantemente completado à medida que mais casos sejam elucidados.

O ato de somar guia também a ação artística registrada em vídeo, Una milla de cruces sobre el pavimento (1979), de Lotty Rosenfeld. Nela, a artista intervém no calçamento da Avenida Manquehue (no trecho compreendido, significativamente, entre as avenidas Los Militares e Presidente Kennedy), ao colar tiras brancas sobre as listras que separam as pistas, formando um novo signo, que pode simbolizar tanto uma cruz, como indica a denominação da obra, quanto o sinal de adição, isto é, um gesto somando-se a outro infinitamente, como sugere a profundidade de campo das tomadas associada ao termo “milha” do título, que remete a “milhares”, ou seja, a um conjunto de cruzes inconmensurável.

Ao interferir na sinalização, portanto numa convenção social, a via-crúcis de Lotty Rosenfeld cria um estranhamento, o qual, aliado à paisagem deserta e ao gesto isolado da artista, provoca uma sensação de ausência, ou antes, de ausências a serem resgatadas pela sociedade. Nas palavras de Andrea Giunta: “A artista – uma mulher sozinha na estrada – é quem repete a ação. Ela reinstaura e ativa ideias de rito e sacrifício. A exposição de seu corpo isolado em uma ação na rua sugere uma constante ameaça de perigo. Dessa forma, Lotty Rosenfeld tenta induzir um sentido de desconcerto, que desastabiliza a normalidade imposta pelo poder repressivo e assume a tarefa de subverter signos que são fundamentais para uma reflexão sobre a cidade, a arte e a política”.

Alfredo Jaar também alterou a paisagem urbana com a intervenção Estudios sobre la felicidad (1979-1981), na qual espalhou por Santiago inúmeros painéis com a pergunta “¿Es usted feliz?”. Seu gesto foi retomado por Janet Toro em mais uma encenação ao ar livre, Dos preguntas (1986)[6], registrada em oitos fotografias em preto e branco. Segurando pequenos cartazes que indagavam “¿porqué estás triste?” e “¿porqué no sonríes?”, a artista e Claudia Whinter circularam pelo Paseo Ahumada, onde contaram com a adesão de um grande público, mas a polícia logo dispersou os transeuntes.

Tratava-se, nos dois casos, de perguntas aparentemente singelas, pois inquiriam os chilenos sobre suas emoções, perguntas que não exigiam necessariamente respostas imediatas, cujo propósito era antes o de insinuar uma inquietude sorrateira, que vinha pôr em xeque o estado de satisfação geral que o governo propagandeava. O mal-estar que se instaurava nas fotos da série Los dormidos (1979), de Paz Errázuriz, também corroborava essa fissura entre a realidade e o apregoado pelo sistema: pessoas do povo, paupérrimas, entregues à própria sorte e dominadas pela apatia.[7]

Os logradouros públicos de Santiago foram o cenário de outros trabalhos da fotógrafa, como o registro da reunião de mulheres em 8 de março de 1985, Marcha del Día Internacional de la Mujer, manifestação que interrompeu o trânsito e que a polícia reprimiu com jatos de água, clicada do topo de um prédio do centro. E, ainda, nas fotos da série Protestas (1988), nas quais Paz Errázuriz retratou os dois lados do enfrentamento entre forças da ordem e integrantes de Mujeres por la Vida. Surgido em novembro de 1983, este grupo caracterizou-se por grandes mobilizações – como a do Paseo Ahumada, gravada por Tatiana Gaviola no vídeo No me olvides (1h03’)[8], em 1988 – e ações relâmpago – como a registrada em fotos por Kena Lorenzini, também em 1988 –, que indagavam o paradeiro dos detidos-desaparecidos e clamavam pela restauração da democracia.[9]

Intervenções como Acción de apoyo en un sistema comercial, Una milla de cruces sobre el pavimento, Estudios sobre la felicidadDos preguntas (1986) e as manifestações do grupo Mujeres por la Vida trasformaram o espaço público num território de constante conflito, não apenas por atropelar o discurso oficial e atravessar os tradicionais locais expositivos, mas por fazer das ruas o lugar ideal onde debater questões de interesse coletivo, como atestou Iria Candela.

Neste sentido, outra ação urbana que merece ser destacada é Refundación de la Universidad de Chile, levada a cabo no campus Juán Gómez Millas por Las Yeguas del Apocalipsis, durante uma ocupação estudantil da Faculdade de Artes (1988). Nela, Pedro Lemebel e Francisco Casas, montados em pêlo numa égua, numa alusão a Lady Godiva, entraram no campus pela Rua Las Encinas, na companhia das poetisas Carmen Berenguer, Carolina Jerez e Nadia Prado. Na performance, de um lado, emulavam a estátua equestre que, na Praça das Armas, imortalizava Pedro de Valdivia, fundador de Santiago; de outro, emprestavam à figura do conquistador uma conotação erótica, ao contrapor à virilidade militaresca a homossexualidade masculina[10], com o objetivo de promover o ingresso das minorias na universidade.[11]

A reflexão sobre os logradouros públicos sequestados pelo golpe militar é também o tema de La persistencia de la memoria (2014), em que Andrés Cruzat interveio sobre imagens em preto e branco tiradas no calor da hora por fotógrafos chilenos – como Horacio Villalobos e Juan Enrique Lira (de El Mercurio) – e estrangeiros (dentre outros, Chas Gerretsen, Koen Wessing e David Burnett), inserindo-as em tomadas atuais em cores, para compor fotomontagens[12] nas quais o passado irrompe num presente em que as pessoas não estão muito interessadas em viver à sombra dos acontecimentos de setembro de 1973.

A concepção de fotomontagem de Cruzat tem como ponto de referência as refotografias computadorizadas do russo Serguei Larenkov (2009-2010), em que o ângulo da tomada atual recria a posição da câmara das imagens originais tiradas em várias cidades europeias durante a Segunda Guerra Mundial.[13]

Assim, em La persistencia de la memoria, Salvador Allende (em seu último registro fotográfico em vida), na sacada do Palacio de la Moneda, é observado por algumas pessoas inscritas num círculo luminoso, enquanto outras não prestam atenção ao que está acontecendo. Uma família, ao passar pelo número 80 da Rua Morandé, permanece de todo alheia ao trabalho de bombeiros e militares para retirarem, por uma porta lateral da sede do governo, o cadáver do presidente.

Funcionários fiéis a Salvador Allende até o fim são presos diante da indiferença de transeuntes. Mães e crianças caminham despreocupadas num cenário de batalha, sob a mira de um fuzil. Numa avenida movimentada, uma moça está sendo revistada por um militar, sem que ninguém se dê conta disso. A Junta Militar, com Augusto Pinochet em primeiro plano, surge no interior da Igreja da Gratidão Nacional, onde, em 19 de setembro de 1979, foi celebrada uma missa de ação de graças.

Por meio desse contraste inquietante, Cruzat propõe uma reflexão sobre a aparente normalidade do presente e o clima ameaçador de um passado recente, ou seja, sobre a relação entre as marcas da memória e o Chile atual. Ao intervir em imagens de outrora, o artista injeta-lhes um sentido particular, pois seu gesto permite contextualizar de novo uma experiência histórica coletiva.

É o mesmo gesto de Alfredo Jaar no vídeo 11 septiembre 2013 (1h55”), em que, depois da tomada histórica do Palacio de La Moneda em chamas (uma imagem que perdeu seu significado original de tão utilizada que foi nas comemorações de 2013), faz “surgir” dos escombros o aspecto atual do edifício. Tendo instalado uma câmera fixa num prédio situado no lado leste da Praça da Constituição, passa a captar a sede do governo, entre 11h45 e 12h45, ou seja, meia hora antes e meia hora depois do bombardeio de 1973, iniciado às 12h15. Transmitidas para uma sala e o site do Museu da Solidariedade Salvador Allende, as imagens silenciosas provocam uma espécie de suspensão temporal[14], pois os espectadores podem ter a impressão de que o ataque não aconteceu ou criar imediatamente um contraponto entre a tragédia do passado e sua remoção no presente[15].

Os trabalhos de todos os artistas citados neste texto são importantes pelo empenho com que se posicionaram contra a tentativa de desmemória engendrada em seu país, mas dentre eles acabei destacando os de Cristian Kirby e André Cruzat que não foram realizados em espaços públicos, mas os tiveram como tema. Se o primeiro devolveu ao cenário urbano rostos que se queriam apagar, o segundo inseriu no presente figuras vindas do passado, permitindo-lhes pisar novamente nas ruas de Santiago, não como sombras, mas como presenças ainda palpitantes de vida. Ao entrelaçarem camadas temporais para fazer ressurgir, dessa espécie de palimpsesto constituído por suas obras, corpos arrastados pelo turbilhão da História, os dois artistas transformaram os “caminhos da morte” da ditadura em ruas de memória.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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