Luiz Marques: Negacionismo, barricada da
barbárie
A persistência na
adesão ao que se convencionou denominar bolsonarismo desafia o entendimento
racional. Os indicadores com a reimplantação de programas sociais no país
apontam a melhoria na qualidade de vida das pessoas. Mas beneficiário não é
igual a empoderado para o tempo futuro. Em simultâneo, a extrema direita logra
estimular o fanatismo de militantes cujo empoderamento advém de mobilizações
que rastreiam o porvir. Nossas teses se concentram no cérebro, e não no
coração:
- (a) A crise da democracia deve-se às promessas não
cumpridas nos 40 anos de dominação do neoliberalismo, com restrição dos
direitos. Além de um modelo econômico e social, tal regime tornou-se A
nova razão do mundo, para evocar o instigante livro de Pierre Dardot e
Christian Laval;
- (b) O ressentimento em face do sistema meritocrático produz
vencedores arrogantes, de um lado, e uma maioria de perdedores ressentidos
e raivosos, de outro, alerta Michael J. Sandel, em A tirania do
mérito. Muitos desdobraram explicações interessantes a partir desses
dois pontos de partida.
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Labirinto do negacionismo
Há aspectos ainda
pouco explorados sobre os motivos da lealdade de multidões a quem se serve
delas como uma massa de manobra, em plena sociedade do conhecimento, da
hiperinformação e das taxas crescentes do nível de escolarização e intelecção.
No negacionismo, em múltiplas inflexões, encontra-se a chave do enigma para os
acontecimentos do fatídico 8 de janeiro, e o ódio destilado.
O conceito de
negacionismo não se resume à rejeição das vacinas. A crise da democracia possui
uma dimensão com raízes fundas na vida social: “A desconfiança com relação às
instituições e aos procedimentos que não se adéquam à ideologia extremista. Os
novos populistas minam a crença na ciência, na discussão pública baseada em
fatos; minam a confiança em tudo que não reforce os seus preconceitos.
Pretendem substituir universidades, especialistas e imprensa livre pelos
escritórios de ódio”, escreve Celso Rocha de Barros, na apresentação do Dicionário
dos negacionismos no Brasil, organizado por José Szwako e José Luiz Ratton.
O negacionismo é a barricada-mor da barbárie.
O “anjo do progresso”
de Paul Klee, interpretado por Walter Benjamin, no caso, ajuda a desvendar o
mistério. O anjo é empurrado para a frente e avança com a cabeça voltada para
trás. O que vê? Os escombros do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do
Supremo Tribunal Federal (STF). Os ataques miram os poderes do establishment em
uma versão politicista dos inimigos. Deixam de fora as forças socioeconômicas
hegemônicas; ontem, os colonizadores no extrativismo e, hoje, a aliança do
agronegócio com o rentismo financeiro. Todos sempre de costas para o mercado
interno.
É evidente a
demonstração de desprezo das classes dirigentes com a sorte dos povos
originários e os escravizados, os trabalhadores precarizados e os setores das
classes médias que perdem empregos e esperança com a tecnologia aplicada à
inteligência artificial. Como na história de Alice no país das
maravilhas, quando o Rei Vermelho pergunta para Alice o que está vendo, ela
responde: “Nada”. Impressionado, o rei comenta: “Mas que olhos ótimos você
tem”. Se perguntasse aos protagonistas do vandalismo antidemocrático a resposta
seria: “Tudo”. E a majestade diria: “Pobres coitados”, na paráfrase de
indiferença de Jair Bolsonaro para a tropa de choque abandonada, sem nenhum
gesto de solidariedade ou recurso no Pix à defesa da malta, na Justiça. A famiglia acima
da República.
·
Entre a opinião e os
valores
A mídia corporativa
tem por missão desconsiderar os destroços deixados em cada conjuntura, com o
otimismo de Pangloss. Os negacionistas elidem a história. Não se trata de um
fenômeno individual, mas social. O importante é a pertença ao grupo para não se
sentir à parte do movimento contrário às lutas igualitárias, na modernidade.
Daí a assunção midiática da democracia de opinião, em oposição à concepção
descrita por Claude Lefort, em A invenção democrática, sobre “a
democracia como um processo cumulativo de valores civilizatórios”, que não dá
ré. A resiliência mostra que os oprimidos nunca esquecem os crimes hediondos
infligidos pelos opressores. A memória se nutre das ruínas.
O jogo de opiniões
descoladas da civilização nasce na grande imprensa. Então o debate era se a
manipulação ocorria na divulgação de desinformações ou na omissão de
informações, ao noticiar ou não uma greve ou um protesto. Os “fatos
alternativos” engatinharam, décadas antes de a post-truth virar
um salvo-conduto para justificar os golpes, a título de impeachment.
Se a ditadura civil-militar ceifa a opinião pública, a extrema direita confere
às narrativas um selo de autenticidade à hipocrisia. Cognitivamente iguala o
sábio ao palhaço sociopata, 40 dias de Jesus no deserto à goiabeira.
Na tradição clássica
da democracia, herdada da Revolução Francesa, o exercício da cidadania para a
avaliação e o controle dos governantes passa pelo acesso às informações, a fim
de elaborar um juízo com fundamento. Na pós-verdade, as emoções se sobrepõem
aos fatos. As fake news colonizam a esfera pública. Não vale o
argumento da autoridade, nem a autoridade do argumento. A nova ágora é
a revanche tardia do obscurantismo frente ao Iluminismo. A dúvida acerca dos
ideais da sociedade (Marx), dos valores judaico-cristãos (Nietzsche) e do que
indivíduos pensam de si mesmos (Freud) é trocada pelo beco das certezas em
bolhas autoritárias e totalitárias – los vientres de sus madres.
Brutos, que só amam
nos filmes como revelam os feminicídios, se arvoram a ilegítima prerrogativa de
resgatar os princípios ultrapassados, historicamente, qual o supremacismo de
raça, de gênero, a homofobia e a transfobia. Os ignorantes perdem a vergonha da
ignorância, e isso é grave. Para os sociólogos, a vergonha é um fator de coesão
e valorização da honestidade. Sem o imperativo moral disciplinador, os
comportamentos ficam à deriva. Vide aqueles desembargadores esgrimistas das
angústias de machos, no julgamento da menina “sonsa”. Negaram instrumentos
atuais para inibir o assédio sexual. Zombaram da linguagem, como se os humanos
não fossem seres linguísticos. Se a palavra cura, também pode ferir e humilhar
e matar. Prevaleceu a cosmogonia machista, no tribunal.
·
O aceno ao Estado de
exceção
A noção bourdieusiana
de “violência simbólica” (dissimulada, por definição) permite compreender a
profusão de escolas cívico-militares erguidas para, com o aval da educação,
disseminar as Forças Armadas na condição de tertium ou logos da
nação brasileira, no último quadriênio. Teoricamente a iniciativa naturaliza o
aceite da ordem existente e contempla a conversão do poder instalado em um
capital social e símbolo. Acusar o mentor da ideia indigesta de idiota compensa
a apatia política da pequena burguesia que dorme com a consciência em paz,
refazendo a subordinação pela manhã.
A polarização dos
homens de bem contra o comunismo também é ardilosa. “Tanto nossa percepção
sensorial como os processos de pensamento que usamos para organizar o mundo à
nossa volta são restringidos por uma visão polarizada da realidade, que se
baseia em opostos como dia-noite, frio-quente, macho-fêmea, etc”, salienta
Marcelo Gleiser, em A dança do universo. O bolsonarismo transforma
a desvalia pessoal em virtude, e os contrastes reais ou imaginários em
vingança. Supre a dificuldade política da síntese superior para superar
dicotomias, com o aceno ao Estado de exceção.
A extrema direita
reforça as hierarquias e abjura o conhecimento, pelo germe de subversão no ato
de conhecer. Sua zona de conforto são os preconceitos, o que estreita os laços
no conservadorismo. Já as discriminações em sua representação da sociedade fazem
coro ao neoliberalismo, na tríade.
A legitimação da
realidade paralela (negacionismo) é garantida no ativismo das redes sociais,
nos quais o democratismo dá voz ao nonsense e ao sentimento de
importância dos que, pisados pelos de cima, desejam pisar nos de baixo. Esse
moedor de carne funciona como um gerador de energia no paramento verde-amarelo,
com sangue nos olhos. – “Eles passarão, eu passarinho”, depõe o poeta.
Ø
STF tem maioria contra ‘intervenção’ das
Forças Armadas
Os ministros André
Mendonça e Luiz Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), votaram nesta
segunda-feira (1º) contra a possibilidade de “intervenção constitucional” das
Forças Armadas. Eles acompanharam o voto do relator, Luiz Fux, e de outros dois
ministros que também já se manifestaram contra a interpretação golpista do
artigo 142 da Constituição. Mais tarde, o ministro Gilmar Mendes também votou
contra, formando maioria na Corte para enterrar a de vez a tese do “Poder
Militar”.
“Diante de tudo o que
temos observado nesses últimos anos, todavia, faz-se necessária a intervenção
do Supremo Tribunal Federal para reafirmar o que deveria ser óbvio: o silogismo
de que a nossa Constituição não admite soluções de força”, disse Gilmar no
voto.
Até o momento, nenhum
magistrado votou a favor dessa concepção, popular entre os círculos
bolsonaristas. O julgamento, em plenário virtual, vai até a próxima
segunda-feira (8). Ainda faltam apresentar seus votos os ministros Cármen
Lúcia, Dias Toffoli, Alexandre de Moraes, Nunes Marques e Cristiano Zanin.
O julgamento é
resultado da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.457, que o PDT
apresentou em 2020, questionando a aplicação do dispositivo. O partido
questiona a interpretação por juristas de viés “reacionário” e “setores da
caserna” que consideram que os militares seriam uma espécie de “poder
moderador”.
Nesse sentido, as
Forças Armadas poderiam supostamente agir para arbitrar eventuais choques entre
os três poderes da República – Executivo, Legislativo e Judiciário. Além da
defesa do país, o artigo dispõe que as Forças Armadas destinam-se também “à
garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da
lei e da ordem”.
·
Sem moderação de
conflitos
Como relator, Fux
afirmou que a Constituição não autoriza o presidente da República a recorrer às
Forças Armadas contra os demais poderes. Assim, ressaltou também que o texto
constitucional não concede aos militares a atribuição de moderadores de eventuais
conflitos entre os três poderes.
“Qualquer instituição
que pretenda tomar o poder, seja qual for a intenção declarada, fora da
democracia representativa ou mediante seu gradual desfazimento interno, age
contra o texto e o espírito da Constituição”, disse Fux. Ele apresentou seu
voto na última sexta-feira (29). Na sequência, Barroso acompanhou o voto do
relator.
·
Delirante construção
teórica
O ministro Flávio Dino
apresentou seu voto, no mesmo dia em que o golpe de 1964 completou
seis décadas. Do mesmo modo, ele considerou um resquício do regime militar a
demora em se debruçar sobre os limites constitucionais da atuação das Forças
Armadas. Nesse sentido, ele reiterou que os militares devem ser submetidos ao
poder civil, rechaçando a existência de um “Poder Moderador”.
“Eventos recentes
revelaram que ‘juristas’ chegaram a escrever proposições atinentes a um suposto
‘Poder Moderador’, que na delirante construção teórica seria encarnado pelas
Forças Armadas”, sustentou Dino. “Tais fatos, lamentavelmente, mostram a oportunidade
de o STF repisar conceitos basilares plasmados na Constituição vigente –
filiada ao rol das que consagram a democracia como um valor indeclinável e
condição de possibilidade à concretização dos direitos fundamentais dos
cidadãos e cidadãs”, acrescentou.
Fonte: Terapia
Política/RBA
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