terça-feira, 2 de abril de 2024

LIBERDADE: Um viva para a democracia

O golpe militar de 1964, que resultou em 21 anos de ditadura no Brasil, completa seis décadas neste domingo. É uma data que jamais deve ser esquecida pela população, para que nunca mais se repita. Não há valor maior para uma sociedade do que a democracia. É esse sistema político que vem sendo tão questionado mundo afora que assegura os direitos individuais, a liberdade de expressão e as escolhas de cada um. Cabe ao Estado criar todas as condições para o pleno funcionamento das garantias constitucionais, não limitá-las.

O Brasil esteve muito próximo do retrocesso, como explicitou o fatídico 8 de janeiro de 2023. Tentou-se, naquele dia, romper o Estado Democrático de Direito, com o ataque ao coração da República. Por muito pouco, um golpe não derrubou um governo eleito pela maioria dos brasileiros. Felizmente, a sociedade que preza pelas liberdades e dá o valor exato à democracia reagiu à altura e o país não sucumbiu. A resiliência das instituições permitiu que hoje se possa, mais uma vez, dar um viva à democracia.

Há, no entanto, razões de sobra para preocupação. Num mundo extremamente conturbado, é cada vez menor o número de países em que impera a democracia. As ditaduras escancaradas e as autocracias disfarçadas são maioria, sinal gravíssimo de que as lideranças que defendem as liberdades já não conseguem convencer o grosso da população dos benefícios de um regime que, mesmo imperfeito, é o que melhor protege os direitos dos cidadãos.

A batalha está sendo perdida para a desinformação, praga disseminada tanto pela extrema esquerda quanto pela ultradireita. Há um movimento deliberado no sentido de minar os pilares da democracia. Os extremistas têm se aproveitado do ressentimento provocado pela globalização. Camadas da sociedade, sobretudo a de classe média, se veem relegadas pelo Estado e vítimas das instituições democráticas.

Não por acaso, tornam-se presas fáceis do populismo. Acreditam que a política tradicional é culpada por todas as mazelas que atingiram suas vidas. Embarcam no discurso fácil e palatável de autocratas, normalizando o extremismo que ataca os direitos de minorias, aqueles que pensam diferente e a separação dos Poderes. Muitos dos defensores desse modelo antidemocrático se travestem de políticos de centro para ludibriar segmentos expressivos da sociedade, inclusive, tendo como arma a religião.

Exemplos não faltam à esquerda e à direita de ditaduras e autocracias. E é preciso nominá-las pelo que são, ainda que algumas tenham a desfaçatez de realizar eleições como se democracia fossem. Os brasileiros devem se mirar nesses casos para que jamais percam o direito ao voto livre. O poder de escolha é fundamental para um regime democrático forte. A história está aí para comprovar que, todas as vezes em que a sociedade abriu brecha para o autoritarismo, as liberdades ruíram, com o massacre dos divergentes. Não se pode esquecer a história, especialmente quando ainda há feridas abertas, como no Brasil. Há mais de 200 desaparecidos da sangrenta ditadura, cujas famílias ainda esperam pela reparação do Estado.

Certos militares continuam a ser uma sombra para a democracia, como se viu recentemente, em que muitos flertaram com a tentativa de um golpe de Estado. As instituições têm sido alvos de constantes e consistentes ataques de fake news. Os jovens, em boa parcela, simplesmente ignoram o passado e se deixam pautar pela desesperança. São fatos que precisam ser enfrentados e superados, mas com ações e argumentos consistentes e que reforcem o Estado Democrático de Direito.

O Brasil tem todas as condições de fortalecer a democracia, e deve fazê-lo com urgência e veemência, sem complacência com aqueles que propagam ideias nocivas no campo dos direitos civis e sociais. A sociedade não pode fraquejar frente a uma minoria saudosista que idealiza um passado que não existiu, de bonança e avanços. Em ditaduras e autocracias, as benesses se restringem a grupos específicos, aos vassalos do poder. É na democracia que a voz do povo se faz ouvir. Portanto, ditadura nunca mais. Um viva à democracia.

 

       Golpe Militar empurrou o país para 21 anos de prisões e mortes

 

A ditadura instaurada no Brasil em 1964 completou 60 anos. O golpe dos militares jogou o país num período de 21 anos de violações, arbitrariedades e restrições às liberdades. Opositores do regime foram presos, torturados e mortos. O Congresso Nacional foi fechado, e a imprensa, censurada. Peças de teatro e canções de artistas eram submetidas aos censores, que faziam cortes nesses conteúdos.

Foram várias as razões que levaram à queda do então presidente João Goulart, da "ameaça comunista" e o receio da implantação das chamadas reformas de base ao apoio do governo dos Estados Unidos. Contra Jango, pesou também a adesão de setores da sociedade, como empresários, classe média e até mesmo parte da imprensa. A instabilidade política no país começou três anos antes, com a renúncia de Jânio Quadros, em 1961.

A ditadura passou por fases distintas. O governo militar não deveria ter se prolongado tanto tempo, se acreditava. Os generais foram se afeiçoando ao poder e usaram a força para conter os descontentes. No fim da década, em dezembro de 1968, o presidente Costa e Silva assinava o Ato Institucional número 5, o AI-5, que endureceu o regime. O ato foi batizado de golpe dentro do golpe. Teve início uma era de terror de Estado. Mandatos de parlamentares foram cassados, a garantia do habeas corpus, suspensa.

Doi-Codi

O país passou a viver com marchas e passeatas de protestos e também de prisões e mortes de estudantes e opositores do governo ditatorial. O Brasil ganhou um Serviço Nacional de Informações (SNI), que passou a monitorar e a investigar as pessoas, se tornando um braço de apoio aos centros de prisão e tortura, como os Doi-Codi (Departamento de Operações de Informação do Centro de Operações de Defesa Interna).

A distensão da ditadura só chegou no fim da década de 1970. A sequência de prisões arbitrárias e de assassinatos de civis, casos do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho, respectivamente em 1975 e 1976, estremeceu o regime, incomodou parte dos militares e gerou insatisfação na sociedade, que passou a ter algum conhecimento do que ocorria nos porões da ditadura. O país passou a viver o período da abertura lenta e gradual, ensaiando o fim do ciclo dos militares.

Em 1979, o país aprovou sua Lei de Anistia, que, se por um lado permitiu a volta dos brasileiros que viviam no exílio, casos de Leonel Brizola e Miguel Arraes, por outro houve o entendimento de que os militares responsáveis pelas atrocidades, como tortura, desaparecimento e até incineração de corpos, jamais seriam julgados. Essa compreensão foi se alterando com o tempo, e a Justiça reconheceu oficialmente como torturador, por exemplo, o coronel Carlos Brilhante Ustra, que comandou o temido Doi-Codi de São Paulo.

Política de Estado

Instalada no governo de Dilma Rousseff, ex-militante de um grupo de esquerda, a Comissão Nacional da Verdade encerrou seus trabalhos em 2014 e reconheceu que 434 pessoas foram mortas e desaparecidas pelo Estado naqueles 21 anos de ditadura. Mais de 300 pessoas, entre militares, agentes do Estado e até mesmo ex-presidentes da República foram responsabilizadas por essas ações ocorridas no período que compreendeu a investigação.

O relatório da comissão apontou ainda que as violações registradas foram resultantes "de ação generalizada e sistemática do Estado brasileiro" e que a repressão ocorrida durante a ditadura foi usada como política de Estado "concebida e implementada a partir de decisões emanadas da Presidência da República e dos ministérios militares".

Na sequência dos anos, os brasileiros foram às ruas pedir "diretas já", que foi derrotada no Congresso Nacional, assistiu a Tancredo Neves ser eleito indiretamente, mas ele morreu antes de assumir, e a Nova República foi inaugurada com José Sarney na presidência. Somente em 1989 ocorreu a primeira eleição direta depois de mais de duas décadas. Fernando Collor foi o eleito.

 

       Por quem os sinos dobraram neste 31 de março

 

É preciso fugir ao senso comum e ao passado imaginário para ter um novo olhar sobre o dia 31 de março de 1964. O regime militar que ali se instalou somente se encerrou com a eleição de Tancredo Neves, em 1985, e a bem-sucedida transição à democracia presidida por José Sarney, cujo coroamento foi a promulgação da Constituição de 1988. Desde então, temos uma democracia representativa de massas, de caráter social-liberal. Não é pouca coisa a preservar.

Um velho amigo, o sociólogo Caetano Araújo, consultor do Senado, a propósito da polêmica sobre se o governo Lula deveria comemorar ou não o golpe de 1964, fez uma sensata separação entre a verdade e a Justiça, que não são mesma coisa, embora devam caminhar juntas. É verdade que os órgãos de segurança cometeram crimes hediondos, sobretudo no caso dos desaparecidos, mas a aprovacão da anistia em 1979, que não foi exatamente como os militares queriam, foi o grande pacto entre o governo e a oposição que deu início efetivo à ultrapassagem pacífica do regime autoritário.

Era a justiça possível, como correu em outras transições complexas da época. O Chile até hoje convive com uma constitucionalidade herdada do governo de Augusto Pinochet. O Uruguai promoveu um plebiscito que anistiou os militares. A Argentina puniu seus ditadores, depois do desastre das Malvinas, mas também montoneros e militantes do ERP envolvidos em crimes de sangue. Na África do Sul, sob liderança de Nelson Mandela, a Comissão da Verdade promoveu uma reflexão para que o passado do apartheid não se repetisse, não teve papel criminal.

Seguiram o rastro da Espanha, profundamente dividida desde a década de 1930. Após a morte de Franco, em meio à crise econômica e social, sem a mínima estrutura democrática, com apoio do rei Juan Carlos I, Adolfo Suárez abriu o diálogo entre esquerda, centro e direita. No Palácio la Moncloa, em 1977, em Madri, todos os partidos assinaram um pacto no qual predominava a preocupação econômica, mas que abarcava previdência, trabalho, liberdade, direito, energia, defesa e educação. A Espanha tornou-se uma democracia sólida, que sobreviveu à tentativa de golpe militar de 1981.

Por Quem os Sinos Dobram (Bertrand Brasil), de Ernest Hemingway, que lutou como voluntário nas Brigadas Internacionais, é uma grande histórica de amor, tendo por referência a experiência pessoal do escritor na Guerra Civil Espanhola. Entretanto, narra a extrema violência das tropas de ambos os lados: os nacionalistas, auxiliados pelo governo italiano e nazista alemão, e os republicanos, apoiados pelas brigadas e a União Soviética. O livro é inspirado no poema Meditações, do pastor e poeta John Donne: "Quando morre um homem, morremos todos, pois somos parte da humanidade". Empresta o título à coluna.

Mortos e desaparecidos

Sim, os sinos hoje dobram por 434 mortos e desaparecidos, vítimas do regime militar, a maioria dos quais na tortura ou executados em confrontos simulados com os órgãos de repressão. Mas, também, dobram por 119 mortos por grupos armados que se opuseram à ditadura. E quatro militantes de esquerda que foram executados pelos próprios companheiros. Não eram "cachorros". Qualquer tentativa de ajuste de contas punitivo com esse passado é um equívoco. Isso não significa confinar essa memória ao culto doméstico dos familiares de mortos e desaparecidos.

A radicalização política que antecedeu o golpe de 1964 dividiu profundamente a sociedade, inclusive as classes sociais e as famílias. Nem tudo foi fruto da Guerra Fria. Havia, como há ainda, um ambiente de iniquidade social propício. E, também, uma visão de ambos os lados de que as coisas se resolveriam pela força bruta do Estado e não pela sociedade, por via democrática. A esquerda deveria se perguntar: por que Juscelino Kubitschek e Ulyssses Guimarães apoiaram o golpe? A resposta é simples: foram empurrados para os braços de Carlos Lacerda e Magalhães Pinto, que empunharam a bandeira da democracia contra o radicalismo de esquerda. Os militares deveriam também se perguntar: por que Juscelino e Ulysses passaram à oposição, logo após o golpe de 1964? Outra resposta simples: o regime cancelou as eleiçoes e derivou para uma ditadura sanguinária.

Existe um fio de história que liga os acontecimentos de 1964 aos dias atuais, que passa pelas reformas de base na marra, a luta armada, o voto nulo, o não apoio a Tancredo Neves, a rejeição ao Plano Real e o fracasso do governo Dilma Rousseff: o voluntarismo e a frustração da esquerda porque a queda da ditadura não se confundiu com a revolução.

Outro fio de história liga a frustração dos militares que ingressaram na carreira quando era uma via de ascensão ao poder político, cuja recidiva se deu no governo Bolsonaro, à tentativa de golpe de 8 de janeiro da extrema direita bolsonarista, inspirada no passado imaginário do regime militar: a mentalidade de que às Forças Armadas cabe tutelar a nação, por representar "o povo em armas".

A polêmica sobre a decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de não relembrar oficialmente o golpe militar de 31 de março de 1964 é fruto dessas vicissitudes históricas. De fato, há um pacto de silêncio entre ele e os comandantes militares, que proibiram as comemorações nos quartéis, enquanto generais e outros oficiais golpistas prestam contas à Justiça comum, fato inédito na história.

Entretanto, a sociedade não está proibida de reverenciar seus mortos, como fizeram os professores da Faculdade de Direito de Niterói (UFF), ao propor o título de Doutor Honoris Causa ao seu ex-aluno Fernando Santa Cruz, sequestrado e assassinato em 1974, depois de diplomá-lo bacharel post mortem.

 

Fonte: Correio Braziliense

 

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