Governo Lula segue lento com políticas
indígenas
Quando o cacique Raoni
Metuktire subiu a rampa do Palácio do Planalto ao lado do presidente eleito
Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 1º de janeiro de 2023, o governo dava um
recado claro sobre o espaço que os povos indígenas passariam a ocupar na gestão
federal. Depois de quatro anos de esvaziamento e paralisação de políticas
voltadas aos povos originários na gestão Bolsonaro, os indígenas voltariam a
ter suas pautas analisadas e atendidas.
Passado pouco mais de
um ano da gestão Lula, é inegável que houve avanço em algumas frentes, como a
própria criação do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), o retorno das
demarcações e o enfrentamento da crise humanitária que solapa o povo Yanomami,
alvo de todo tipo de atrocidade na gestão anterior.
Conforme a Agência
Pública apurou, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, encaminhou, nos
últimos dias, seis processos de homologação de terras ao MPI e à Casa Civil:
Potiguara de Monte-Mor (PB), Xukuru-Kariri (AL), Morro dos Cavalos (SC), Toldo
Imbu (SC), Cacique Fontoura (TO e MT) e Aldeia Velha (BA). São as que faltam de
uma lista de 14 prometidas no ano passado. A homologação está pronta para ser
assinada e anunciada pelo presidente Lula.
Muitas ações
previstas, no entanto, seguem em ritmo muito abaixo do projetado, como revelam
os dados federais. Há dinheiro disponível, mas falta execução.
A Pública teve acesso
a um panorama financeiro da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai),
compilado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). Os dados do
orçamento federal foram extraídos do sistema Siga Brasil e fazem uma comparação
entre os resultados de 2022 e 2023. Para eliminar distorções, todos os valores
foram corrigidos pelo IPCA, até fevereiro deste ano.
As informações revelam
um grande descolamento entre aquilo que o órgão federal teve autorização para
gastar, o montante que chegou a empenhar (reservar para algum tipo de ação ou
projeto) e o que efetivamente utilizou.
<<<< Por
que isso importa?
• Agenda foi apresentada como prioridade
pelo governo Lula no início do terceiro mandato, após retrocessos nos quatro
anos anteriores
• Apesar da sinalização, processo de
reestruturação da Funai, falta de pessoal e excesso de burocracia, além dos
entraves colocados pelo Congresso, ainda dificultam avanços
No primeiro ano do
governo Lula, a Funai teve autorização para executar R$ 846,8 milhões. Esse
valor, que incluiu um incremento orçamentário feito ao longo de 2023, superou o
total do ano anterior, que havia ficado em R$ 673,8 milhões. Mas, na hora de gastar,
o resultado de 2023 acabou sendo mais tímido que 2022, se considerado o efeito
inflacionário. A execução financeira do ano passado foi R$ 589,7 milhões, 13%
abaixo dos R$ 666,2 milhões gastos pela fundação no ciclo anterior.
A distância entre os
valores autorizados e aqueles efetivamente gastos pela Funai também chama
atenção quando o assunto são as “ações finalísticas” da fundação, ou seja,
medidas que têm impacto direto na vida dos povos indígenas. Uma das principais
ações do órgão federal é aquela que trata da regularização, demarcação e
fiscalização de terras indígenas, além da proteção dos povos isolados.
Entre 2022 e 2023, o
gasto realizado com rubrica orçamentária saiu de R$ 50,6 milhões para R$ 91,4
milhões. Foi um aumento relevante, que quase dobra a execução de um ano para o
outro. Esse resultado perde força, porém, quando se observa aquilo que o governo
dispôs, em 2023, para essas medidas: um total de R$ 222 milhões, ou seja,
quatro vezes o que havia destinado no ano anterior, quando R$ 55 milhões foram
autorizados para essas ações.
Para Leila Saraiva,
assessora política do Inesc, a complexidade na execução dos recursos pela Funai
é parte da explicação para o resultado tímido, paralelamente ao completo
esvaziamento do órgão na gestão anterior. “A Funai tem dificuldades estruturais
para executar os recursos, uma estrutura arcaica que envolve suas 39
coordenações regionais. E a isso se soma o legado de destruição deixado pela
gestão Bolsonaro. Muito teve de ser refeito no ano passado”, diz.
Saraiva destaca o
esforço feito pelos servidores do órgão no ano passado, ao demonstrar que houve
um grande volume de recursos empenhados para utilização. No caso das ações
voltadas à demarcação, por exemplo, o empenho chegou a 98% do total autorizado
em 2023. Ocorre que os empenhos podem ser revisados ou até mesmo cancelados, ou
seja, não se trata da realização efetiva de uma política pública.
“Esse dado sobre o
empenho é positivo, já que a média do que é empenhado na Funai fica em torno de
70%. Mas a forma com que os processos administrativos se dão internamente trava
muitas ações, além de o órgão sofrer com a falta de servidores nas coordenações
regionais. Tudo isso dificulta a execução financeira”, diz a assessora do
Inesc.
Questionada sobre os
dados, a Funai declarou que “o orçamento autorizado para um determinado ano
deve ser empenhado no próprio ano, mas não há necessidade de ser liquidado e
pago no mesmo ano”. Segundo a fundação, as etapas da execução da despesa podem
ser realizadas nos exercícios seguintes.
A Funai foi indagada
sobre sua dificuldade de utilizar um recurso do qual teve autorização, além de
medidas que possa adotar para destravar sua execução orçamentária. Não houve
resposta sobre o que pode ser aprimorado.
• Homologações de terras
Parte dos gastos
realizados com a homologação de terras indígenas é usada nas indenizações que o
governo tem de fazer para bancar ocupações de boa-fé dentro dessas áreas. No
ano passado, a gestão Lula retomou as homologações, depois de quatro anos sem
nenhum reconhecimento de terra indígena ter sido feito por Jair Bolsonaro. O
resultado, porém, também ficou abaixo do que o Palácio do Planalto havia
prometido.
Ainda no período de
transição de governo, no fim de 2022, foi feita a promessa de realizar 14
homologações de terras indígenas nos primeiros cem dias de 2023. Paradas há
anos, elas dependiam apenas da assinatura presidencial.
A realidade, porém, é
que apenas oito homologações foram confirmadas durante todo o ano passado. Dado
a efemérides, o governo homologou seis terras durante o Acampamento Terra Livre
(ATL), ocorrido em abril do ano passado, e outras duas durante as celebrações
do Dia da Amazônia, em setembro de 2023.
Conforme a reportagem
apurou, a expectativa é entregar as outras seis nos próximos dias. Se o governo
seguir sua lógica de anúncios em datas comemorativas, deve aproveitar o Dia dos
Povos Indígenas (comemorado nesta sexta, 19 de abril) ou a 20ª edição do
Acampamento Terra Livre, que será realizado na semana que vem em Brasília.
Questionada, a Casa Civil não se manifestou sobre o assunto.
Em entrevista à
Pública no início do mês, a titular do MPI, Sonia Guajajara, admitiu que os
planos de demarcação acabaram sofrendo um revés após a aprovação, pelo
Congresso Nacional, de uma lei que estabeleceu um marco temporal para o
reconhecimento dessas terras. Locais que não estivessem ocupados por esses
povos na data da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988, não teriam
esse direito. A tese foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federal, mas o
Congresso dobrou a aposta, dificultando a política indigenista do governo.
Não foi o primeiro
entrave colocado pelo Legislativo à agenda. Ao criar o MPI, a ideia do governo
era que o órgão fosse responsável pelo processo de demarcação. Essa atribuição,
porém, foi retirada da pasta pelo Congresso logo no início do mandato, que manteve
o poder de publicação de portarias demarcatórias nas mãos do Ministério da
Justiça. Já a Funai saiu da estrutura do Ministério da Justiça e passou a ser
vinculada ao MPI.
Questionado sobre os
reflexos desse esvaziamento, o MPI declarou que, mesmo com a perda da
competência para emitir a portaria declaratória, “segue atuando ativamente na
efetivação das demarcações de terras indígenas, tendo em vista sua supervisão
ministerial sobre a Funai e sua competência para atuar em defesa do bem-viver
dos povos indígenas”.
Embora tenha criticado
o ato do Congresso, a pasta procura se alinhar ao Ministério da Justiça. “Os
ministérios são todos órgãos de um mesmo ente, a União, e atuam em estreita
articulação para a efetivação do comando central”, declarou.
“Desse modo, remanesce
papel ativo ao MPI nos procedimentos demarcatórios, seja como órgão de
supervisão, seja por lhe caber a articulação para efetivar os direitos
indígenas, seja na colaboração que presta a outros órgãos (como o MJSP) no
desempenho de funções relacionadas à pauta indigenista.”
O órgão declarou ainda
que tem atuado com cooperação técnica, mediações de conflitos em terras
indígenas, planos de gestão territorial e ambiental e participação em
desintrusão de ocupantes ilegais em terras indígenas.
Nesta quarta-feira
(17), o MPI reinstalou e empossou os membros do Conselho Nacional de Política
Indigenista (CNPI), que estava paralisado há oito anos. O CNPI é um colegiado
consultivo, vinculado ao MPI, responsável pela elaboração e pelo acompanhamento
de políticas públicas destinadas aos povos indígenas. Sua composição é
paritária entre indígenas e representantes do Estado brasileiro, com igualdade
de direito a voz e voto. Está prevista uma agenda do conselho com o presidente
Lula nesta quinta (18).
• Pressões da bancada ruralista
Luís Ventura,
secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), avalia que a
perda das demarcações do MPI deve ser entendida no contexto da composição do
atual Congresso Nacional, que, “durante todo o ano 2023 e até agora, agiu de
forma sistemática para impedir e dificultar a demarcação de terras indígenas”.
Além disso, há interesses diversos dentro do próprio governo.
“Caberia ao MPI essa
atuação de articulação interna, o que é difícil num governo de composição que
acabou integrando interesses muito divergentes entre si, alguns deles
contrários aos direitos dos povos indígenas. Para que o MPI possa atuar de
forma determinada precisaria dispor desta força política dentro do governo e,
claro, de um diálogo permanente com os povos indígenas, fortalecendo suas
reivindicações no Executivo”, diz.
Para a Articulação dos
Povos Indígenas do Brasil (Apib), instituição que foi comandada por Sonia
Guajajara antes de ela assumir o ministério, o governo não teve força para
encarar a bancada ruralista do Congresso.
“Surgiu de nós a
proposta de criar um ministério indígena, e naquele momento uma das principais
discussões era que o MPI tivesse o papel, dentro do governo federal, de ter o
processo de demarcação de terras indígenas como uma das suas principais
atribuições”, declarou Kleber Karipuna, coordenador executivo da Apib.
“Infelizmente, nós
temos um Congresso Nacional anti-indígena e isso fez com que essa atribuição
saísse do MPI, o que enfraqueceu não só a política indigenista de demarcação de
terras, como um dos principais objetos de funcionalidade do MPI”, diz Karipuna.
A expectativa é que o
MPI assuma um papel de articulador junto aos outros órgãos, para fazer com que
essa pauta volte a avançar. No ano passado, nenhuma portaria de demarcação
chegou a ser publicada pelo Ministério da Justiça, durante a gestão do então ministro
Flávio Dino, conforme informações levantadas pelo Instituto Socioambiental
(ISA).
Todas as oito
homologações presidenciais recebidas do Ministério da Justiça e assinadas em
2023 – último ato formal para concluir o reconhecimento da terra indígena –
estão relacionadas a portarias publicadas em anos anteriores pelo ministério.
“É difícil fazer uma
leitura linear da atuação federal, porque sabemos que temos um governo
heterogêneo, com diferentes posicionamentos políticos”, diz Márcio Santilli,
presidente do ISA e ex-presidente da Funai.
“Além disso, não
podemos nos abstrair do papel que o Congresso tem jogado. A correlação de
forças com o governo mudou e o Legislativo tem um peso maior do que teve no
passado. Veja, por exemplo, a retomada do marco temporal pelo Congresso, com a
derrubada do veto de Lula. Fora isso, em relação à execução financeira da
Funai, sabemos que o órgão perdeu quadros técnicos importantes.”
Existem pelo menos 25
processos de demarcação aguardando a assinatura do Ministério da Justiça, para
depois seguir à Casa Civil da Presidência da República, segundo Luís Ventura,
do Cimi. Outras 255 terras indígenas estão com processos de demarcação em andamento.
O país tem 511 terras indígenas homologadas.
Apesar de um cenário
de retomada, há um sentimento de frustração entre os representantes indígenas.
“A gente poderia ter avançado muito mais. Do ponto de vista administrativo, não
havia nenhum impedimento quanto a isso [a demarcação das 14 terras] durante o
ano de 2023 e nós tivemos apenas oito terras indígenas demarcadas”, queixou-se
Kleber Karipuna, da Apib.
“É óbvio que é muito
mais do que foi feito nos últimos seis anos, mas a esperança de se avançar
nessa pauta foi em parte frustrada, porque a expectativa era a homologação de
ao menos 14 terras indígenas.”
A Apib reconhece que
“a Funai ainda está se recuperando do esfacelamento que viveu”, mas aponta que
o órgão ainda está fragilizado, principalmente na parte de pessoal. “Essa baixa
execução de orçamento é, também, reflexo desse contexto de fragilidade que o
órgão indigenista passou. Isso é algo sério que precisa ser visto pela
presidência da Funai, que deve estar fazendo suas próprias cobranças dentro do
governo”, diz Karipuna.
• Saúde Yanomami
Diferentemente do que
ocorreu na gestão orçamentária da Funai em 2023, os desembolsos realizados para
o enfrentamento da emergência humanitária da população Yanomami tiveram forte
desempenho pelo Ministério da Saúde.
Os dados reunidos pelo
Inesc apontam que, enquanto os recursos autorizados para essas ações foram de
cerca de R$ 1,8 bilhão em 2022, no ano passado eles saltaram para R$ 2,2
bilhões, sendo que a execução financeira chegou a 95% do total em 2023.
O patamar de gastos
sinaliza o empenho da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), vinculada ao
Ministério da Saúde, em enfrentar os desastres sanitários, como a situação
vivida pelos Yanomami. Parte da explicação para a alta execução passa pelo tipo
de contratação dos serviços do setor, que estão baseados, em grande medida, em
convênios firmados com prestadores de serviço.
Apesar das
dificuldades, a Apib afirma que, de maneira geral, 2023 também traz uma
avaliação positiva, com a retomada da política indigenista pelo Estado, com a
retomada do Conselho Nacional de Políticas Indigenistas e do Fórum do Conselho
Distrital de Saúde Indígena.
Fonte: Por André
Borges, da Agencia Pública
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