Famílias
famintas e mães desdentadas: o retrato da miséria na ditadura que ficou
'escondido' nos arquivos do IBGE
O Brasil vivia a rebarba do milagre econômico — período de
acelerado crescimento na primeira metade da Ditadura Militar (1964-1985) —
quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) colocou nas
ruas 1.200 pesquisadores para percorrer o país e investigar o consumo das
famílias, em especial a alimentação, numa das pesquisas mais ousadas e pioneiras
da instituição.
Durante 1974 e 1975, o Estudo Nacional de Despesa Familiar
(Endef) acompanhou 55 mil residências em todos os Estados, em áreas ruais e
urbanas, por sete dias, período em que os pesquisadores acompanhavam os hábitos
alimentares dos moradores em todas as refeições, inclusive pesando os alimentos
e as sobras.
Para que as famílias não tivessem receio em abrir seus lares e
seus hábitos para os pesquisadores, foi lançada a campanha "Abra a porta
para o IBGE", com a atriz Regina Duarte como garota-propaganda.
A ampla pesquisa tinha "objetivos múltiplos para atender,
basicamente, as necessidades de planejamento do governo", dizia uma
publicação de 1978 com parte dos resultados. O IBGE precisava conhecer melhor o
consumo das famílias para desenvolver índices de preço (medidas de inflação),
indicadores sociais e aperfeiçoar o cálculo do Produto Interno Bruto (PIB).
Ou seja, o Endef serviria como base para outras pesquisas
fundamentais para entender o país e planejar a atuação do Estado, naquele
momento regido por uma ditadura — regime iniciado há sessenta anos, com o golpe
de 31 de março de 1964, que derrubou o presidente João Goulart.
Esperava-se também, com a pesquisa, obter uma mapa das
deficiências alimentares da população. A importância do levantamento era
exaltado em editorial do Jornal do Brasil de agosto de 1974, quando teve início
o trabalho de campo.
"Acaba o IBGE de iniciar, em âmbito nacional, um
recenseamento menos espetacular que o da população, mas que poderá exercer incalculável
influência no planejamento nacional e na própria humanização do país",
dizia o jornal.
O aspecto mais inovador do estudo, porém, não serviria
diretamente aos objetivos estatísticos, embora fosse considerado essencial para
entender as condições de população pelo diretor do Endef, o sociólogo e
ex-oficial da Marinha Luiz Afonso Parga Nina.
Por ideia dele, foi inserido nos questionários um espaço para
anotação livre, em que era sugerido aos pesquisadores que fossem relatados suas
impressões pessoais sobre a situação dos entrevistados e a realização das
entrevistas.
O resultado foi um registro detalhado da miséria e da fome que
atingiam boa parte da população, apesar do ritmo acelerado de crescimento
econômico dos anos anteriores. Essa parte do estudo foi publicado, mas acabou
tendo sua circulação restrita, levantando suspeitas de censura pela Ditadura
Militar, algo que não chegou a ser comprovado e até hoje é alvo de
controvérsia.
"Já fizemos uma média de 120 domicílios, estando 70% na
faixa de nível baixo, 20% casos extremos e 10% pessoas que conseguem o
necessário para viver. Neste último caso, considero as pessoas que têm um
emprego fixo, mas vivem privadas de muita coisa ainda", diz um dos relatos
sobre a pesquisa em Uberlândia (MG).
"Nas duas primeiras faixas, a base da alimentação é farinha
de mandioca muito grossa feita em casa. O vestuário é sempre doado e, nos casos
extremos, as pessoas cobrem o corpo com trapos disformes e imundos que cheiram
mal", continuava.
Outro relato, de uma pesquisadora que atuou em Boa Vista (RR),
descrevia sérios problemas de saúde da população local: "Devido à má
alimentação, são seres totalmente predispostos aos males do meio ambiente.
Desde que uma dessas famílias tinha vindo do interior, ninguém pergunta se não
teve 'malária' ou até mesmo 'hepatite' porque são doenças comuns no
interior."
"Mediante as dificuldades na compra dos remédios, são
pessoas que ficam maltratadas para o resto da vida. As mulheres não são
privilegiadas. Depois do primeiro filho, perdem logo os dentes (falta de
cálcio) e sofrem as consequências de um parto mal feito durante muito
tempo", segue o relato.
"Em um domicílio, o homem da casa está enfraquecido devido
à falta de alimentação e a senhora dele está débil mental em consequência de um
parto mal feito. As crianças são raquíticas, de cor pálida e frequentemente com
tosse", descreveu ainda a pesquisadora.
No interior do Paraná, são vários os relatos da equipe do IBGE
sobre a dura vida das famílias de boias-frias, que trabalhavam por diárias em
fazendas da região.
"A fome tomava conta dos pequenos corpos humanos que
habitavam a bela fazenda de café. (...) Soubemos de uma família que ia para o
trabalho sem a pequena marmita de almoço, substituíam-no por 'coco guavirova'
ou até chegavam ao extremo de comer folha seca de café."
A BBC News Brasil teve acesso à publicação original da pesquisa
— hoje disponível online — e a um compilado de relatórios semestrais dos
pesquisadores do Endef produzido pelo setor de memória do IBGE em 2014.
• 'Distribuição
restrita'
A BBC News Brasil conversou com o servidor aposentado do IBGE
Maurício Vasconcellos, que atuou por anos em diferentes etapas do Endef e,
depois, chefiou alguns setores do instituto, como o Departamento de Censo
Demográfico.
Ele acompanhou parte do trabalho de campo e chegou a presenciar
a morte de um bebê durante o processo de entrevista, devido à extrema
vulnerabilidade da família, mas não quis contar detalhes para não se emocionar.
"Esse estudo é terrível, porque, se você for ler, você vai
chorar o tempo todo", recorda.
Ele se refere a uma publicação que ganhou o nome de "Estudo
das informações não estruturadas do Endef e sua integração com os dados
quantificados", produzida por Parga Nina, a partir dos relatos de campo.
Empolgado com a riqueza desse material, o diretor do Endef
solicitou relatórios semestrais sobre as pesquisas de campo e sistematizou o
material nessa publicação, criando categorias para os relatos, como
"penúria alimentar", "condições de saúde e higiene",
"emprego-desemprego" e "vida familiar".
"É evidente que algo deve ser feito para captar o que as
equipes de campo observaram, sentiram, viveram, ao longo desse ano de trabalho.
Seria absurdo não fazer esta tentativa, e estariam perdidas informações que
podem ser tão importantes e, em certos aspectos, mais importantes que os dados
dos questionários", dizia a introdução do trabalho.
"Não há nenhum sentido em procurar entender a 'realidade
sócio-econômica' através de pesquisas, em qualquer campo, se não houver também
um esforço para tentar compreender, por um mínimo de convivência, de simpatia,
de contato direto, a dimensão humana do que está sendo investigado",
reforça outro trecho.
Apesar da grande importância dada a esse trabalho, ele não foi
divulgado ao público. Foi impressa uma pequena tiragem de 250 cópias e algumas
delas foram enviadas sem alarde a órgãos públicos e bibliotecas, como o
Ministério da Saúde e algumas universidades.
Alguns volumes da publicação que permanecem nos arquivos do IBGE
tem em sua capa escrita a mensagem "Distribuição restrita", em letra
cursiva que seria de Parga Nina.
Há também volumes com o carimbo de "confidencial",
que, segundo Maurício Vasconcellos, foram adicionados por ele depois, já após à
ditadura, quando exemplares que estavam com a família de Parga Nina retornaram
ao IBGE, após a morte dele.
Ele disse à reportagem que tinha receio que de alguns relatos
permitissem identificar os entrevistados, ferindo o sigilo que é legalmente
garantido às pessoas pesquisadas.
Na sua visão, a decisão de não divulgar o material amplamente
nos anos 1970 teria partido do próprio Parga Nina.
"Eram informações brutais, situações horrorosas. Aí ele
publicou esses livros e decidiu fazer uma distribuição restrita", lembra.
Na sua visão, não houve uma censura direta do regime.
"A censura estava na imprensa. O IBGE publicava o que
queria. Se o dado desagradasse o governo, ele não ia para o jornal. A gente
tinha total liberdade para fazer o que quisesse e fazia", contou.
A socióloga Cecília Minayo, pesquisadora aposentada da Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz), conviveu de perto com Parga Nina nos anos 80, quando
ela saiu do IBGE para a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-Rio). Lá, os dois desenvolveram uma espécie de desdobramento do Endef em
menor escala, pesquisando zonas de pobreza no Rio de Janeiro.
Na sua leitura, a decisão de restringir o material seria reflexo
de pressões externas e internas. Ela lembra que ele teria virado motivo de
piada entre parte do corpo técnico do IBGE, que considerava as pesquisas
qualitativas que ele desenvolveu estranhas ao foco estatístico do instituto,
embora Parga Nina contasse com o apoio do presidente do órgão, Isaac
Kerstenetzky.
"(E por parte) Dos militares, era o medo de que o Brasil
grande, o Brasil do ame-o ou deixe-o, pudesse produzir pessoas que comiam
barro, comiam fezes, comiam ratos, como a pesquisa de campo mostrou",
recorda Minayo.
O Endef, estudo ainda hoje pouco conhecido, teve seu momento de
fama logo após o fim da ditadura, quando a revista IstoÉ descobriu essa parte
não divulgada da pesquisa.
A publicação deu uma reportagem de capa para o tema em outubro
de 1985, com a manchete "Fome Censurada", sobre a imagem de uma
criança pobre, nua, segurando um rato.
Parga Nina negou que tenha havido censura em uma carta à
revista, disponibilizada à BBC News Brasil por Maurício Vasconcellos.
"O trabalho foi realizado pela administração Isaac
Kerstenetzky, com participação pessoal do presidente. Seria totalmente
incoerente que viesse ela a fazer sobre seu próprio trabalho a censura descrita
na reportagem, ou no editorial", respondeu.
Segundo Leandro Malavota, historiador da Equipe Memória IBGE,
não há elementos históricos que permitam responder com certeza por que parte do
estudo teve circulação restrita. Na sua leitura, houve uma espécie de
autocensura, relacionado ao contexto da ditadura.
"O Endef é o reverso do milagre econômico. Ele mostra o
Brasil que a ditadura não queria mostrar. Então, ainda que eu não tenha
encontrado nas minhas pesquisas qualquer tipo de determinação formal para que
aquelas informações não fossem divulgadas, eu acho que, de certa forma, houve
uma contenção por parte dos próprios participantes daquela pesquisa para que
aquelas informações muito sensíveis não chegassem ao público", avalia.
Malavota ressalta que o IBGE, desde sua criação nos anos 1930,
no governo de Getúlio Vargas, até a ditadura militar, era visto como um órgão
que atendia aos interesses de planejamento do Estado. Ou seja, apenas após a
redemocratização, o órgão passou a ser visto como uma instituição voltada para
a sociedade, com aumento da transparência.
Ainda assim, lembra ele, as pesquisas costumavam ser divulgadas,
como ocorreu com a parte estatística do Endef.
Esse material, porém, não gerou grandes reportagens, até porque
o IBGE divulgou, em etapas, dados bem detalhados sobre quantidade de calorias e
tipos de nutrientes ingeridos pela população em diferentes regiões, mas não
produziu de imediato um indicador mais geral a partir desses números, como qual
seria o índice de desnutrição da população — cálculos feitos posteriormente por
Maurício Vasconcellos em sua tese de doutorado a partir de dados do Enfed
identificaram, numa estimativa conservadora, que ao menos 22% do universo
pesquisado seriam de subnutridos.
Uma busca da BBC News Brasil nos arquivos dos jornais O Globo e
Jornal do Brasil identificou registros breves sobre os resultados do Endef.
Em oito de março de 77, por exemplo, o jornal O Globo noticiou
sem grande destaque a divulgação dos dados preliminares do Rio de Janeiro e da
região Sul, que contou com a presença de Isaac Kerstenetzky .
"No Rio de Janeiro, os dados obtidos pela pesquisa indicam
que a população do Estado ingere, em média, uma quantidade adequada de
calorias, enquanto que a quantidade de cálcio ingerido é menor que as suas
necessidades, e a ingestão de proteínas, ferro e vitaminas é superior ao
necessário", registrava o jornal.
A matéria acrescentava que não era possível fazer "uma
comparação entre a dieta alimentar da população da Baixada Fluminense e aquela
de áreas habitadas por pessoas de nível de renda mais elevado".
"O presidente do IBGE explicou que o ENDEF não foi
concebido para desagregar os dados a esse nível. Isso, inclusive, em sua
opinião, não seria justificável. Para ele o importante é relacionar a dieta
alimentar com outros dados como, por exemplo, profissão e a situação econômica
dos comensais", dizia ainda a reportagem.
O baixo impacto do Endef junto à opinião pública contrasta com
os resultados do Censo de 1970, que geraram forte debate nacional e incomodaram
a ditadura ao revelar os altos níveis de desigualdade de renda do país.
Ainda assim, a pesquisa foi de fato usada no desenvolvimento de
novos índices de preço e indicadores sociais, além de permitir um cálculo mais
preciso do PIB, já que o consumo das famílias tinha — e tem ainda — um peso
grande na economia brasileira.
• O altos e baixos
do IBGE na ditadura
A relação do IBGE com a ditadura militar teve altos e baixos,
mas, em geral, o regime foi positivo para o órgão, afirmam ex-funcionários e
estudiosos do tema.
Professor adjunto do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio
de Janeiro da Universidade Candido Mendes (IUPERJ-UCAM), o sociólogo Alexandre
Camargo diz que "os períodos de ouro" da capacidade de produção do
IBGE foram momentos de Estado forte, como a Era Vargas e os anos 70, período da
presidência de Isaac Kerstenetzky (1970-1979).
Eurico Borba, que foi diretor-geral do IBGE nos anos 70 e depois
presidiu o instituto (1992-1993), contou em depoimento ao acervo de memória do
IBGE que Kerstenetzky tinha grande prestígio com o ministro do Planejamento da
época, o economista João Paulo dos Reis Velloso (1969-1979).
"Eu acho que nós fomos felizes, foi um período abençoado em
pleno período militar, nos anos de chumbo, porque basicamente o professor Isaac
tinha sido professor do João Paulo dos Reis Velloso. Quando eu levava os
problemas e batiam na trave do Ministério do Planejamento, o professor Isaac
resolvia", recordou.
Por outro lado, Borba via o então ministro da Economia, Delfim
Netto, como "inimigo do IBGE", que teria boicotado o órgão devido aos
resultados do Censo de 1970.
"Pouca gente se dá conta que o regime militar começou a
balançar com a ideia do milagre brasileiro quando em 1972 nós lançamos um
estudo preliminar com uma amostra de 1,85% dos questionários completos do
Censo, mostrando que nós tínhamos um problema sério de distribuição de renda,
de emprego, de qualificação da habitação, de saneamento, de educação",
disse, no depoimento disponível em vídeo.
"E o presidente (Emílio) Médici fez aquele célebre discurso
no aeroporto de Recife em que disse 'o Brasil vai bem, o povo vai mal'. O
ministro Delfim Netto, desde aquela época, ficou inimigo do IBGE, prejudicando
a importação de computadores", continuou.
"Tanto que a primeira parte do censo dos anos 70 foi
processada nos computadores da PUC-Rio, porque o Ministério da Fazenda,
querendo justificar de qualquer maneira o milagre brasileiro que não existia,
impediu a importação dos equipamentos que nós já havíamos comprado da
IBM", contou ainda.
Delfim Netto é ainda alvo de críticas quando foi ministro da
Agricultura e Secretário do Planejamento no governo João Figueiredo
(1979-1985), período em que teria tentando interferir no cálculo da inflação.
Aos 95 anos, Delfim Netto não quis comentar as críticas, por
estar focado no cuidado da sua saúde, disse sua assessoria à reportagem.
Para Maurício Vasconcellos, os ventos da democratização entraram
como um furacão na instituição. De 1985 a 1993, foram oito presidentes
diferentes, ressalta.
Na sua avaliação, o IBGE sofreu com a falta de um arcabouço
institucional que lhe desse mais autonomia. "Não uma independência
absoluta em relação ao poder executivo, mas uma forma de controle social que
permita o mínimo de autonomia em relação ao poder público, suficiente para
assegurar a continuidade administrativa e técnica necessária a realização de
projetos que, não raro, atravessam mais de um mandato presidencial",
defendeu em sua tese de doutorado.
Se o fim da ditadura trouxe mais instabilidade ao IBGE, também
foi o momento da ganhos importantes de transparência e participação da
sociedade no desenvolvimento das pesquisas, ressalta o sociólogo Alexandre
Camargo.
"O IBGE se democratizou. (Passou a dar) Transparência e
acessibilidade máxima às pesquisas, pontualidade nos resultados, (passou a ter)
cobrança, participação de movimentos sociais na montagem das pesquisas",
destaca.
"Então, é uma pressão que se colocou a partir dos anos 1980
e o IBGE respondeu muito bem. Hoje, é uma das instituições de Estado mais
abertas a esse diálogo e pioneiras inclusive na disponibilização digital de
banco de dados inteiros", reforça.
Camargo defende um resgate da importância dos relatórios de
campo do Endef e um melhor tratamento desse material.
"(Essa pesquisa) Tem uma importância incrível para a
memória e para a história das Ciências Sociais brasileiras. É o que se tem de
mais documentado sobre como se dá a interação de um agente do IBGE com as
pessoas em casa, e a barreira de classe sendo determinante no resultado a ser
atingido", explica.
"Isso é uma agenda de pesquisa (que está) a mil hoje
globalmente falando nas Ciências Sociais, no que envolve especialmente a
construção de dados para políticas sociais. E isso (os relatos de campo do
Endef) é um repertório magnífico, inteiramente desconhecidos e ainda sem
tratamento", ressalta.
Fonte: BBC News Brasil
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