Como implante cerebral Neuralink 'amplia as
fronteiras da mente'
Em março, um homem
chamado Noland Arbaugh demonstrou que consegue jogar xadrez usando apenas a
mente.
Depois de viver com
paralisia por oito anos, ele reconquistou a capacidade de realizar tarefas que,
para ele, eram inacessíveis, graças a um implante cerebral projetado pela
empresa Neuralink, fundada por Elon Musk.
"Para mim,
simplesmente ficou intuitivo imaginar o cursor se movendo", afirmou
Arbaugh em uma transmissão de vídeo. "Eu simplesmente olho para um lugar
da tela e ele se move para onde eu quero que ele vá."
A descrição de Arbaugh
indica uma sensação de ação própria. Ele sugere que era responsável por mover a
peça de xadrez. Mas quem realmente realizava as ações, ele ou o implante?
Como filósofo da mente
e especialista em ética da inteligência artificial, fiquei fascinado por esta
questão.
As tecnologias de
interface entre o computador e o cérebro (BCI, na sigla em inglês), como as
propostas pela Neuralink, simbolizam uma nova era na interligação entre o
cérebro humano e as máquinas. Elas nos convidam a reconsiderar nossas intuições
sobre a identidade, o self e a responsabilidade pessoal.
Em curto prazo, a
tecnologia promete muitos benefícios para pessoas como Arbaugh, mas as
aplicações podem se estender ainda mais. O objetivo de longo prazo da empresa é
tornar esses implantes disponíveis para a população em geral, que poderá
aumentar e reforçar suas capacidades.
Se uma máquina puder
realizar atos que antes eram reservados à matéria cerebral dentro do nosso
crânio, será que ela deve ser considerada uma extensão da mente humana ou algo
separado?
• A mente estendida
Há décadas, os
filósofos vêm debatendo as fronteiras da personalidade: onde termina a nossa
mente e começa o mundo exterior?
Em nível primordial,
você pode considerar que a nossa mente repousa dentro do nosso cérebro e do
corpo. Mas alguns filósofos propuseram que esta definição é um pouco mais
complicada.
Em 1998, os filósofos
David Chalmers e Andy Clark apresentaram a hipótese da "mente
estendida". Eles sugeriram que a tecnologia poderia se tornar parte de
nós.
Em linguagem
filosófica, os dois estudiosos propuseram um externalismo ativo – uma forma em
que os seres humanos podem delegar alguns aspectos dos seus processos de
pensamento para artefatos externos, que seriam integrados à própria mente
humana.
Esta proposta surgiu
antes do advento do smartphone e serviu para prever como agora atribuímos
tarefas cognitivas aos nossos aparelhos, desde procurar trajetos para chegar a
algum lugar até a nossa própria memória.
Como exercício
intelectual, Chalmers e Clark também imaginaram um cenário "de ficção
científica", no qual alguém com um implante no cérebro manipula objetos em
uma tela – na verdade, algo muito parecido com o que fez Arbaugh recentemente.
Para jogar xadrez,
Arbaugh imagina o que deseja, como mover um peão ou um bispo. E o implante,
neste caso o Neuralink N1, seleciona os padrões neurais da sua intenção, antes
de decodificar, processar e executar as ações.
Agora que é algo que
já aconteceu, que conclusão devemos traçar deste cenário, filosoficamente
falando? O implante de Arbaugh é parte da sua mente, entrelaçado com suas
intenções?
Se a resposta for
"não", surgem questões polêmicas para definir quem é o verdadeiro
autor das suas ações.
Para compreender por
quê, vamos considerar uma distinção conceitual: os acontecimentos e as ações.
Os acontecimentos
reúnem todos os nossos processos mentais, como nossos pensamentos, crenças,
desejos, imaginações, contemplações e intenções. Já as ações são acontecimentos
que são trabalhados, como os movimentos dos seus dedos para fazer rolar esta
reportagem na tela, neste exato momento.
Normalmente, não
existe separação entre o acontecimento e a ação.
Vamos tomar como
exemplo uma mulher hipotética, Nora, jogando xadrez. Ela não tem uma BCI
integrada.
Regulando os
acontecimentos, Nora pode formar a intenção de mover um de seus peões uma casa
à frente e faz isso simplesmente movendo sua mão.
No caso de Nora, a
intenção e a ação são inseparáveis. Ela pode atribuir a ação de mover o peão a
si própria.
Mas Arbaugh precisa
imaginar sua intenção e o implante realiza a ação no mundo externo. Neste caso,
o acontecimento e a ação são separados.
Com isso, surgem
preocupações importantes. A pessoa que usa um implante cerebral para aumentar
suas capacidades pode manter o controle executivo das suas ações integradas à
BCI?
Os cérebros e corpos
humanos já produzem muitas ações involuntárias, como espirros, erros de
coordenação e dilatação das pupilas, mas será que as ações controladas por
implantes podem parecer vir de origem externa?
Poderá o implante
parecer um intruso parasita que irá corroer a pureza da vontade de uma pessoa?
Chamo este problema de
dilema da contemplação.
No caso de Arbaugh,
ele elimina etapas cruciais da cadeia causal, como o movimento da sua mão que
concretiza sua jogada de xadrez.
O que acontece se
Arbaugh pensar, primeiramente, em mover seu peão uma casa à frente, mas, em uma
fração de segundo, ele mudar de ideia e perceber que deve movê-lo duas casas,
em vez de uma? Ou se ele estiver analisando possibilidades na sua imaginação e
o implante interpretar, por erro, uma delas como sendo a sua intenção?
No tabuleiro de
xadrez, os riscos são baixos. Mas, se esses implantes ficarem mais comuns, a
questão de responsabilidade pessoal se torna mais inquietante.
O que acontece, por
exemplo, se uma ação controlada por um implante causar ferimentos no corpo de
outra pessoa?
E esta não é a única
questão ética levantada por estas tecnologias. Sua comercialização superficial
sem solucionar totalmente o enigma da contemplação e outras questões
importantes pode abrir o caminho para uma distopia digna das histórias de
ficção científica.
O romance Neuromancer,
de William Gibson, por exemplo, destacou como os implantes poderiam levar à
perda de identidade, manipulação e à perda da privacidade de pensamento.
A questão fundamental
do enigma da contemplação é definir quando um "acontecimento da
imaginação" se transforma em "imaginação intencional de agir".
Quando aplico minha
imaginação para contemplar quais palavras devo usar nesta sentença, este é um
processo intencional. E a imaginação dirigida à ação – digitar as palavras –
também é intencional.
Em termos de
neurociência, é quase impossível diferenciar entre a imaginação e a intenção.
Um estudo realizado em
2012 por um grupo de neurocientistas concluiu que não existem eventos neurais
que se qualifiquem como "intenções de agir".
Sem a capacidade de
reconhecer padrões neurais que definam essa transição em alguém como Arbaugh,
podemos ficar sem saber qual cenário imaginado é a causa de cada efeito no
mundo físico.
Isso permitiria
atribuir ao implante a responsabilidade parcial e a autoria da ação. Assim,
voltaríamos a questionar se as ações são realmente dele e se elas fazem parte
da sua personalidade.
Mas, agora que o
experimento de Chalmers e Clark sobre o pensamento e a mente estendida já se
tornou realidade, proponho reanalisar suas ideias fundamentais como um método
de eliminar a separação entre os acontecimentos e as ações em pessoas com
implantes cerebrais.
Adotar a hipótese da
mente estendida permitiria a alguém como Arbaugh assumir a responsabilidade
pelas suas ações, sem dividi-la com o implante. E esta visão cognitiva sugere
que, para ter uma experiência como sua própria, é preciso pensar nela como sua própria.
Em outras palavras, a
pessoa deve pensar no implante como parte da sua autoidentidade, dentro das
fronteiras da sua vida interna. Com isso, pode sobrevir uma sensação de
atividade, propriedade e responsabilidade.
Implantes cerebrais
como o de Arbaugh, sem dúvida, abriram novas portas para discussões filosóficas
sobre as fronteiras entre a mente e a máquina.
Os debates sobre a
ação e a atividade tradicionalmente ficaram em torno da fronteira da
identidade, entre a pele e o crânio. Mas, com os implantes cerebrais, esta
fronteira ficou maleável, o que faz com que o self possa se estender mais do
que nunca em direção à tecnologia.
Ou, como observaram
Chalmers e Clark: "Quando a hegemonia da pele e do crânio for usurpada,
poderemos conseguir nos observar mais verdadeiramente como criaturas do
mundo."
* Dvija Mehta é
filósofo da mente e pesquisador de ética da inteligência artificial do Centro
Leverhulme para o Futuro da Inteligência da Universidade de Cambridge, no Reino
Unido.
Fonte: BBC Future
Nenhum comentário:
Postar um comentário