Celso Furtado e a quartelada há 60 anos
Em março
de 2004, Celso Furtado estava em Paris quando recebeu um telefonema do
ex-ministro Fernando Lyra, então presidente da Fundação Joaquim Nabuco,
convidando-o para um seminário comemorativo dos quarenta anos do Golpe de 64.
Celso não pôde comparecer mas se dispôs a fazer um balanço da quartelada que
cassou seus direitos políticos e civis e o levou ao exílio. Seu depoimento foi
publicado no livro “Na trilha do Golpe — 1964 revisitado” (org. Tulio Velho
Barreto e Laurindo Ferreira, ed. Massangana, 2004). Em setembro do mesmo ano,
ele ampliou a primeira versão do trabalho, estendendo-a à sua participação nos
três governos anteriores a 1964, dos presidentes Kubitschek, Quadros e Goulart.
Refletiu, então, sobre consequências do golpe para o Nordeste, onde a seu ver
foram muito mais nefastas. Aquela era a região mais atrasada do país, onde
estava em curso um vigoroso processo de mudanças, desde a nova estrutura
agrária até reformas sociais apoiadas pela Igreja católica liderada por dom
Helder Câmara. Dois meses depois de escrever esse texto que une memória e
história, Celso Furtado morreu no Rio de janeiro, em 20 de novembro de 2004. (Rosa Freire d’Aguiar)
·
O golpe de 1964 e o Nordeste
Na história das nações
são frequentes os casos de perda de rumo das elites dirigentes, com graves
consequências para seus respectivos povos. É nesse quadro mais amplo que,
passadas quatro décadas, pode-se fazer um balanço histórico do que ocorreu no
Brasil em 1964. O golpe militar de 31 de março teve, num primeiro momento,
limitadas consequências, quando não passou praticamente despercebido, em várias
partes do país. Em estados como São Paulo, por exemplo, foi um golpe a mais,
mas logo houve atendimento a certos interesses econômicos e a região se
acomodou. No Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul a tensão foi grande,
conquanto passageira.
No Nordeste, porém,
onde me encontrava na época, as consequências do golpe foram muito graves, pois
ali havia uma política social em andamento, e a repressão exercida desde o
início liquidou com movimentos sociais de grande alcance, surgidos no decênio anterior
e que prenunciavam uma ampla reconstrução de suas estruturas. O Nordeste
acumulara historicamente o maior atraso social do país. A criação da Sudene,
que me coube dirigir desde sua implantação em 1959 até o golpe militar, era uma
tentativa do governo federal de impulsionar o desenvolvimento nessa área tão
desvalida.
Assim, por dever de
ofício, de 1959 a 1964 acompanhei de perto essa fase decisiva da vida
nordestina. Todos nós tínhamos consciência de que a região encarava uma fase de
importantes mudanças, contando para isso com o apoio de forças dentro e fora do
país. Levados pelos ventos da mudança, certos líderes da classe latifundiária
já aceitavam as reformas estruturais que propúnhamos, embora muitos ainda
exigissem que elas fossem feitas sob seu controle. O próprio Partido Comunista
já não era visto como um movimento “subversivo”. Tais comportamentos não nos
surpreendiam. O importante era que o entrechoque das forças no plano ideológico
ia sendo aceito como forma natural de se fazer política. Muito contribuiu para
a emergência desse novo quadro o comportamento da Igreja católica, que sob a
liderança de dom Helder Câmara emergiu como principal força renovadora na
região. Mas talvez nenhum movimento social tenha sido mais representativo desse
impulso inovador do que as Ligas Camponesas criadas pela figura singular de Francisco
Julião. Elas gozavam de legítimo prestígio junto à massa camponesa.
Foram muitas as
visitas que fiz às áreas em que eram maiores as tensões sociais, inclusive na
companhia de personalidades de prestígio internacional. Tive a oportunidade de
percorrer essas áreas críticas em companhia do jornalista francês Hubert
Beuve-Méry, diretor do jornal Le Monde, que em seguida publicou
cuidadosa e honesta análise da realidade nordestina, em reportagens de ampla
repercussão. Edward Kennedy, irmão do presidente John Kennedy, que havia
manifestado simpatia pelos movimentos sociais desenvolvidos no Nordeste, esteve
no Recife e, em visitas que fizemos juntos, expus-lhe em detalhes a
complexidade de nosso problema agrário. Minha viagem a Washington, quando fui
recebido na Casa Branca pelo presidente Kennedy, revela o grau de interesse
pelo trabalho que se estava fazendo na área englobada pela Sudene.
Na gestão de John
Kennedy, houve uma ala do governo americano de franco apoio às forças
progressistas do Nordeste. Depois de sua morte, em 1963, deu-se uma mudança
qualitativa nessa política. Seu sucessor, o presidente Lyndon Johnson, era
representante de outra ala, bem mais conservadora. Basta lembrar a escalada no
Vietnã que houve durante sua gestão. Os colaboradores de Johnson, desde o
período anterior ao golpe, estavam bem mais próximos do líder da oposição,
Carlos Lacerda. Isso me leva à suposição de que, com John Kennedy na
presidência, talvez não tivesse havido o golpe no Brasil.
Convivi com os três
presidentes que antecederam os militares: Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e
João Goulart. Já desde o governo de Juscelino, medravam certos indícios de
preparação de um golpe. Hoje, com o recuo que quatro décadas propiciam, é possível
perceber sintomas inequívocos de que algo anormal — antidemocrático — estava se
gestando. Forças muito importantes foram se mobilizando, se articulando cada
vez mais. Porém, conforme a tradição brasileira, também havia, no seio desses
governos, quem resistisse aos desígnios dos possíveis golpistas, como se viu
nos episódios de Aragarças e Jacareacanga.
No governo de João
Goulart, em que fui também ministro do Planejamento, esse quadro se agravou.
Não foram muitas as conversas longas que tive com Jango, mas sempre lhe disse
claramente o que pensava. Lembro-me de que, num momento crucial de fins de
1963, início de 1964, disse-lhe: “É preciso que o senhor aceite a hipótese de
que Carlos Lacerda venha a ser o seu sucessor”. A reação dele foi brusca e
imediata: “Isso nunca. Esse homem foi o assassino do doutor Getúlio”. Por
temperamento, Jango era um homem que buscava a acomodação, mas nesse caso sua
resposta foi inequívoca. De um lado, ele deixava claro que não passaria o poder
“ao assassino” do presidente Getúlio Vargas; de outro lado, não tinha força
suficiente para impedir a posse de Carlos Lacerda, na eventualidade de sua
eleição. Daí, penso eu, que Jango tenha cogitado aumentar seus poderes, por
meio do projeto enviado ao Congresso para se implantar o estado de sítio, o que
acabou fracassando. Tal iniciativa, tomada poucos meses antes de os militares empolgarem
o poder, indicava que o presidente não descartava a hipótese de se fortalecer
politicamente por um caminho perigosamente antidemocrático.
Muito se especulou
sobre o que teria ocorrido no Brasil sem o golpe militar de 1964. Quando os
militares chegaram ao poder, o Brasil já enfrentava fortes dificuldades no
exterior. Naquele momento, uma moratória negociada com os credores parecia
indispensável. Internamente, encontrava-se o país em fase de recessão
econômica. Tratava-se, essencialmente, de sustentar a economia para que ela não
sofresse um colapso. Mas o governo carecia de forças para adotar medidas que
desagradassem as classes que o apoiavam. Um exemplo dessa debilidade foi o
Plano Trienal. Preparado sob minha direção em 1963 para ser apresentado à nação
por João Goulart no momento do plebiscito que decidiria a volta do
presidencialismo, o Plano frustrou-se em razão da incapacidade do governo de
levar adiante as reformas ali indicadas.
Todavia, as
dificuldades por que passava o país resultavam tanto, ou mais, de Carlos
Lacerda quanto do próprio Jango. A posição do líder oposicionista à frente das
forças que combatiam Goulart era de um radicalismo desvairado. Não seria, pois,
um exagero dizer que a responsabilidade pela agravação da crise que permitiu o
êxito do golpe coube tanto a Jango como a Lacerda. A sucessão presidencial,
prevista para 1965, seria muito difícil porque o adversário principal de João
Goulart era um guerreiro nato que, na hora da briga, agigantava-se mas deixava
de lado os escrúpulos. Conseguiu ele, assim, convencer que o “perigo vermelho”
rondava o governo. Os militares golpistas acreditaram nesse espantalho, e dele
tiraram proveito. Não excluo, porém, a hipótese de que certos generais não
implicados diretamente no golpe tenham sido enganados. No Recife, ao final da
noite de 31 de março que passei no Palácio das Princesas, ao lado do governador
Miguel Arraes e sua equipe, dirigi-me ao IV Exército, comandado pelo general Justino
Alves. Perguntei-lhe claramente o que eles estavam pretendendo, e a resposta
foi seca: “Queremos colocar o Arraes para fora”. O general chegou a me sugerir
que se Miguel Arraes se “acomodasse” não seria perseguido. Partindo de um
general e referindo-se a um governador legitimamente eleito, a proposta era
imoral. Miguel Arraes, entre os governadores punidos, foi o mais sacrificado,
sem a menor dúvida em consequência das pressões exercidas pelos usineiros sobre
os novos donos do poder. Ironicamente, os civis que os apoiaram e acreditaram
que os militares só permaneceriam dois anos no poder também foram enganados,
embora muitos tenham tirado proveito da situação, em especial o grupo mineiro
de Magalhães Pinto e certos grupos nordestinos ligados aos interesses do
açúcar, a quem atribuo a inclusão de meu nome na primeira lista dos punidos
pela ditadura, com a cassação por dez anos de meus direitos políticos.
Quaisquer que hajam
sido as intenções dos autores do golpe militar de 1964, seus efeitos mais
perversos, de consequências que se prolongam até hoje, são claros. O regime
militar cometeu o crime de liquidar com a prática da democracia, condenando
pelo menos duas gerações a desconhecerem, senão menosprezarem, os instrumentos
políticos que permitem o verdadeiro desenvolvimento das sociedades. Para os
nordestinos em particular, seu dano mais nefasto foi, sem lugar a dúvida, a
interrupção do processo de reconstrução das anacrônicas estruturas agrárias e
sociais de nosso país, numa região onde eram mais deletérios os efeitos do
latifundismo e, paradoxalmente, mais profundo o movimento renovador em curso.
Rio de
Janeiro, setembro de 2004
Fonte: Outras Palavras
Nenhum comentário:
Postar um comentário