sexta-feira, 26 de abril de 2024

Big Techs: por que não basta só regular

Dezembro de 2023 começou com inúmeras boas notícias no mundo ocidental. O alvoroço veio do anúncio da União Europeia sobre o acordo para regulamentar a pesquisa e uso da Inteligência Artificial (IA). Já em 2024, com a recente aprovação do texto pelo Parlamento Europeu, em 13 de março, novas comemorações pulularam. Olhando rapidamente, há questões pontuais com que se alegrar.

Na linha de alguns juristas, destacamos as proibições da (a) identificação biométrica em tempo real por autoridades policiais em espaços públicos; (b) inferência de emoções de pessoas nos locais de trabalho e instituições educacionais, exceto por razões de saúde ou de segurança; (c) extração indiscriminada de imagens faciais da internet ou de sistemas de CCTV para acumular bancos de dados de reconhecimento facial; e (d) exploração de marcadores relacionadas à idade, deficiência ou condição socioeconômica de indivíduos ou grupos específicos.

No atacado, contudo, o conjunto das normativas e regramentos estão pautados basicamente na velha estratégia neoliberal: caso as Big Techs (BT) exagerem em suas ações, elas serão responsabilizadas, isto é, como pessoas jurídicas pagarão multas e, no limite, muito no limite, e se assim se configurar, seus funcionários poderão ser individualmente penalizados. Alguns dirão: “Melhor isso do que deixá-las à solta com a farsa da ‘autoregulação‘”. É verdade. Ou melhor, uma meia verdade.

No espectro político à esquerda, a principal posição crítica às Big Techs é hegemonizada pelo campo “social-democrata” ou “social-liberal”. De modo geral, sua atuação pode ser identificada na série regulamentação – políticas públicas – acúmulo de forças. A tese defendida sustenta, basicamente, que o cenário está desfavorável para nós, em razão do tamanho destas corporações e suas afinidades eletivas com a extrema direita. Então precisaríamos reconquistar nossas armas para estarmos à altura das batalhas a serem travadas em algum lugar no futuro.

A fantasia da regulação que tudo resolve 

As armas, neste caminho, consistiriam basicamente em leis a favor das “minorias” e dos desfavorecidos, e em políticas sociais de Estado. Em resumo: seria preciso (re)conquistar o “controle” do Estado, nas raias da institucionalidade, para o dirigirmos em outra direção, na direção dos interesses gerais, do “bem comum”, garantido pela ordem democrática de direito. Tudo sem se contrapor frontalmente às grandes corporações e, tampouco, levantar a voz contra a existência delas. Acredita-se no bom convívio entre as partes, como se o melhor futuro possível fosse o retorno ao passado “glorioso” do compromisso social-democrata.

Esse setor insiste em crer e agir como se pudéssemos gerenciar os problemas trazidos pela Big IA por meio de boas regulamentações. Como disse Evgeny Morozov:

Algumas delas podem, é claro, ser úteis e necessárias, mas acho que essa abordagem tecnocrática tem sido frequentemente sustentada por uma certa cegueira em relação à geopolítica e à estratégia industrial, e até mesmo à crise da democracia que podemos observar em todo o mundo.

Um questionamento que faz sentido. Afinal, será que depois desse tempo lutando por regulações e políticas sociais nos corredores da “pequena política” estamos, de fato, criando forças para controlarmos, ou até superarmos, os danos que o capital produz?

A meia verdade que a posição social-liberal insiste em não aceitar, é que, por sua própria natureza, a regulação não é uma forma de combater o capital, mas sim de normalizá-lo. Daí o fato de continuarem agindo como se os descaminhos que nos trouxeram até aqui fossem falhas na atuação do Estado, falhas que podem ser corrigidas por um arranjo de forças institucionais mais favorável, por bons contratos, boas gestões e etc.. Acreditam que a justiça no Estado capitalista está desconectada das consequências do capital em si. E que ele mesmo pode ser controlado sem ser questionado na sua raiz.

“Devemos alterar os deveres legais dos diretores de empresas para que sejam obrigados a servir a um interesse mais amplo do que as preocupações estreitas dos acionistas.”

A crítica socialista de Marx nunca se iludiu a esse respeito, pois ele reconhecia que

O Estado não pode eliminar a contradição entre a função e a boa vontade da administração, de um lado, e os seus meios e possibilidades, de outro, sem eliminar a si mesmo, uma vez que ele repousa sobre essa contradição. (…) Por isso, a administração deve limitar-se a uma atividade formal e negativa, uma vez que exatamente lá onde começa a vida civil, cessa o seu poder. Mais ainda, frente às consequências que brotam da natureza a-social desta vida civil, dessa propriedade privada, desse comércio, dessa indústria, dessa rapina recíproca das diferentes esferas civis, frente a estas consequências, a impotência é a lei natural da administração.

•        O fracasso da tentativa de regulação das Big Pharma

Um exemplo histórico dessa impotência são as irmãs mais velhas das Big Techs, as Big Pharma (BP). Já há muito tempo, se denomina as grandes empresas transnacionais farmacêuticas como Big, em razão do poder que elas acumularam e concentraram no século XX. Os ônus sociais, políticos, econômicos, científicos, sanitários, ecológicos e éticos dessas corporações são detalhadamente sabidos há décadas. A contar o clássico estudo da ex-editora-chefe do New England Journal of Medicine, Marcia Angell; que escancarou desde dentro do coração do sistema seus problemas. De lá para cá são inúmeros os estudos científicos e pesquisas jornalísticas que, infelizmente, reforçam a constatação das sequelas provocadas por elas.

No entanto, a abordagem desses estudos e investigações pode ser vista como um barômetro da crítica social-liberal, por uma simples razão: neles pouco ou nada é investido contra a raiz do Big – a saber, a forma mercadoria, a apropriação privada da riqueza comum, os imperativos do lucro e da concorrência e, consequentemente, a concentração e a acumulação de capital. Ao contrário, segundo eles, o capitalismo “tem um ótimo motor na produção de riquezas” e “liberdades individuais”, o problema são suas “externalidades”, seus desvios de funcionamento e os desvios de conduta de alguns empresários, CEOs e etc.. Por consequência, as saídas propostas insistem em se resumir às questões legais, normativas, administrativas e éticas (deontológicas), como se fosse um mero problema tecnocrático. Mesmo o mais recente trabalho sobre o tema, do famoso ativista Nick Dearden, é um reforço de tal posição. Ao fim e no limite, segundo ele, para enfrentarmos a Buig Pharma devemos “alterar os deveres legais dos diretores de empresas para que sejam obrigados a servir a um interesse mais amplo do que as preocupações estreitas dos acionistas”.

Ou seja, se colocada no microscópio, a posição progressista à esquerda compartilha das crenças fundamentais do liberalismo – por isso é social-liberal. A sua tática é não lidar com a natureza do capital, tão pouco confrontá-lo. É aceitar um tipo de pragmatismo resignado, disfarçado de estratégia política “realista”, que aposta as fichas em uma nova receita administrativa para justificar a confiança e a estabilidade das instituições liberais.

Mas as décadas passam e a Big Pharma continua dizendo ao que veio, mais forte do que nunca, e o social-liberalismo continua correndo atrás dela, mais fraco do que nunca. Basta olharmos a epidemia de opioides nos EUA e, sobretudo, olharmos para o papel das empresas na pandemia de COVID-19 – contexto no qual, importante registrar, Cuba novamente nos relembrou que não é preciso nenhuma “Big” para desenvolver vacinas e cuidar dos povos. Na série histórica, os esforços dentro da ordem, ainda que bem-intencionados, no máximo redundaram em vitórias “no varejo” que somente postergaram o problema, convertendo-o em algo maior. Hoje, pouquíssimos povos e nações têm autonomia e soberania para resolverem seus problemas de saúde sem ter que pedir a bênção da Big Pharma ou ser veículos de sua lucratividade.

A força do pragmatismo resignado é tamanha, que a “mentalidade vitoriosa” é a de que questionar a existência da Big Pharma é motivo de chacota ou riso cínico. Faça um teste e dê uma googlada no termo. Para nós o resultado que aparece em primeiro lugar é o verbete da Wikipedia “Teoria da conspiração da Big Pharma”. A explicação do verbete é que falar em BP é cair na “demonização” do setor e em obscurantismos teóricos. É como se não estivéssemos falando de um nível de acumulação e concentração de poder e riqueza privada que hoje se sobrepõe a maioria dos poderes públicos pelo mundo. Como se elas não existissem às custas dos interesses das populações do Sul Global, que ainda morrem de “doenças negligenciadas”. Como se elas não estivessem todos os meses e anos respondendo nos tribunais mundo afora por crimes corporativos.

Se uma mentira dita mil vezes torna-se verdade, a crítica social-liberal está fadada a tornar-se um simulacro de si mesma. A crítica não-crítica do capital. Foi o que aconteceu com a Big Pharma, e aparentemente está acontecendo com as Big Techs. As atuais batalhas dos grupos de interesses para constituírem acordos, regulações, legislações e etc. está fazendo frente ao chamado “colonialismo de dados” ou “capitalismo de vigilância”, não são propriamente trincheiras anticapitalistas. Trata-se, em sua raiz, da necessidade que os guardiões das mercadorias “4.0” possuem de constituírem um mercado legal – e legítimo – para acumularem capital livremente. Mantidos nessa dinâmica, na verdade, a tendência é uma só: a previsão dos gastos com grandes escritórios de advocacia, litígios e multas nos seus respectivos fluxos de caixa e, logicamente, o repasse destes para os preços finais das mercadorias. Porque no fim das contas, a “justiça” no capitalismo monopolista é um mero custo de produção.

•        Que fazer?

Isso quer dizer que não há possibilidades de conquistas pontuais? Quer dizer que as batalhas travadas pelos grupos na defesa dos direitos digitais não trarão nenhum benefício para as populações? De modo algum, já mencionamos ganhos importantes acima, e devemos continuar travando essas lutas. A questão é não ficarmos cegos para o fato de que, na beira do precipício socioambiental, essas conquistas legais não são capazes de pavimentar os caminhos de um outro modo de vida. São meras ações defensivas.

O exemplo da Big Pharma novamente traz aprendizados importantes. Os alicerces da indústria farmacêutica, a acumulação de capital e o aparelhamento institucional que fizeram as corporações aptas a serem efetivamente Big dos anos 1980 para cá, foram consolidados justamente no período em que a classe trabalhadora organizada participava em peso do Estado capitalista – o “glorioso” Estado bem-estar social (1940-70). Nem mesmo as mais duras legislações e as mais atuantes políticas públicas da história capitalista foram capazes de controlar o capital, e muito menos acumularam forças para irmos além do capitalismo. Embora os ganhos a favor dos trabalhadores tragam saudades, mantidos dentro das formas capitalistas, eles foram, e sempre serão, sazonais e parciais. Ou seja, tão logo as classes dominantes se recompõem, as contrarreformas vêm a galope e a dominação burguesa aperta o cerco, se expandindo para cada vez mais aspectos da vida social, como é o caso dos últimos 50 anos.

O momento atual é um momento de especial fraqueza. Pois ele é marcado pela expansão descontrolada das práticas predatórias do capital digital financeirizado, subjugando a soberania dos povos e a intimidade dos cidadãos. Um movimento que implica na radicalização do neoliberalismo como modo de vida, que se utiliza das tecnologias digitais para desarticular cada vez mais os controles sociais e públicos sobre as dinâmicas do mercado. Algo potencializado, no campo político, pela ascensão do neofascismo, que se une no ataque a esses mesmos controles, em um ímpeto regressivo. E, como se já não fosse o bastante, as evidências de que as democracias liberais são impotentes frente à crise ecológica se acumulam, cotidianamente.

Neste contexto não é mais realista ser “realista”. O realismo do que podemos fazer não pode excluir o realismo do que precisamos fazer. A pragmática do acúmulo de forças, com as negociatas e acordos pelo alto, só acumula derrotas, recuos e alianças escusas. Toda vitória é, no máximo, um paliativo. A necessidade da radicalidade está no simples fato de que ela é a única forma de avançar. O que não significa berrar extremismos ao vento e se recusar a lidar com as questões imediatas. Mas sim compreender que a força só se constrói pela afirmação intransigente de um polo que faça a defesa radical de um novo modo de vida, pautado pela igualdade radical e pela soberania popular.

Não há caminhos prontos — o caminho se faz caminhando. Regulações que não afetam diretamente os fundamentos econômicos das Big Techs e da Big Pharma visando, a médio e longo prazo, as suas efetivas extinções, deixaram de ser “realistas”. São meias verdades. As lutas no campo institucional podem ser utilizadas, no limite como meios táticos, se vierem articuladas organicamente com a mobilização popular no escopo de irem para além de si mesmas. Do contrário, sempre terão pés de cristal.

Mais do que despejarmos forças em formas jurídicas que limitem a atuação das Bigs, é preciso desde já criarmos um polo radical que diga, em alto e bom som, que a médio e longo prazo elas não devem existir. As tecnologias digitais são “conquistas” de toda a humanidade, e não de uma dúzia de corporações estadunidenses e chinesas. Não podemos assistir, paralisados, em um misto de excitação e medo, o surgimento da mais nova “grande invenção” do Vale do Silício, a cada dois anos. Devemos aproveitá-las para fazermos renascer projetos de soberania popular, de democracia direta, de compartilhamento em redes solidárias e de formas cooperativas, que realmente apontem no sentido da igualdade substantiva.

Uma das grandes falácias políticas dos nossos tempos é a que coloca a democracia liberal como um valor absoluto, para o qual não há alternativas a não ser regimes autoritários. Além de expressar uma falta de criatividade política, essa visão desconsidera a natureza autoritária dos capitais monopolistas, e subestima as capacidades das classes subalternizadas de construírem novos arranjos que apontem para outros modos de vida. Para quem almeja e luta pela conquista da vida boa para todos, não cabe mais aceitar a democracia liberal como o fim da história. Houve um tempo em que ela representou uma conquista, mas hoje é a forma jurídica e política que nos enjaula. Reconhecer isso não significa abandonar as batalhas jurídicas, as eleições, ou a luta por direitos, mas sim entender seus limites e sua fraqueza em construir a força do novo que vem.

 

Fonte: Por Leandro Modolo e Alexandre Pinto, em Outras Palavras

 

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