Big Techs: por que não basta só regular
Dezembro de 2023
começou com inúmeras boas notícias no mundo ocidental. O alvoroço veio do
anúncio da União Europeia sobre o acordo para regulamentar a pesquisa e uso da Inteligência
Artificial (IA). Já em 2024, com a recente aprovação do texto pelo Parlamento
Europeu, em 13 de março, novas comemorações pulularam. Olhando rapidamente, há
questões pontuais com que se alegrar.
Na linha de alguns
juristas, destacamos as proibições da (a) identificação biométrica em tempo
real por autoridades policiais em espaços públicos; (b) inferência de emoções
de pessoas nos locais de trabalho e instituições educacionais, exceto por
razões de saúde ou de segurança; (c) extração indiscriminada de imagens faciais
da internet ou de sistemas de CCTV para acumular bancos de dados de
reconhecimento facial; e (d) exploração de marcadores relacionadas à idade,
deficiência ou condição socioeconômica de indivíduos ou grupos específicos.
No atacado, contudo, o
conjunto das normativas e regramentos estão pautados basicamente na velha
estratégia neoliberal: caso as Big Techs (BT) exagerem em suas ações, elas
serão responsabilizadas, isto é, como pessoas jurídicas pagarão multas e, no
limite, muito no limite, e se assim se configurar, seus funcionários poderão
ser individualmente penalizados. Alguns dirão: “Melhor isso do que deixá-las à
solta com a farsa da ‘autoregulação‘”. É verdade. Ou melhor, uma meia verdade.
No espectro político à
esquerda, a principal posição crítica às Big Techs é hegemonizada pelo campo
“social-democrata” ou “social-liberal”. De modo geral, sua atuação pode ser
identificada na série regulamentação – políticas públicas – acúmulo de forças.
A tese defendida sustenta, basicamente, que o cenário está desfavorável para
nós, em razão do tamanho destas corporações e suas afinidades eletivas com a
extrema direita. Então precisaríamos reconquistar nossas armas para estarmos à
altura das batalhas a serem travadas em algum lugar no futuro.
A fantasia da
regulação que tudo resolve
As armas, neste
caminho, consistiriam basicamente em leis a favor das “minorias” e dos
desfavorecidos, e em políticas sociais de Estado. Em resumo: seria preciso
(re)conquistar o “controle” do Estado, nas raias da institucionalidade, para o
dirigirmos em outra direção, na direção dos interesses gerais, do “bem comum”,
garantido pela ordem democrática de direito. Tudo sem se contrapor frontalmente
às grandes corporações e, tampouco, levantar a voz contra a existência delas.
Acredita-se no bom convívio entre as partes, como se o melhor futuro possível
fosse o retorno ao passado “glorioso” do compromisso social-democrata.
Esse setor insiste em
crer e agir como se pudéssemos gerenciar os problemas trazidos pela Big IA por
meio de boas regulamentações. Como disse Evgeny Morozov:
Algumas delas podem, é
claro, ser úteis e necessárias, mas acho que essa abordagem tecnocrática tem
sido frequentemente sustentada por uma certa cegueira em relação à geopolítica
e à estratégia industrial, e até mesmo à crise da democracia que podemos observar
em todo o mundo.
Um questionamento que
faz sentido. Afinal, será que depois desse tempo lutando por regulações e
políticas sociais nos corredores da “pequena política” estamos, de fato,
criando forças para controlarmos, ou até superarmos, os danos que o capital
produz?
A meia verdade que a
posição social-liberal insiste em não aceitar, é que, por sua própria natureza,
a regulação não é uma forma de combater o capital, mas sim de normalizá-lo. Daí
o fato de continuarem agindo como se os descaminhos que nos trouxeram até aqui
fossem falhas na atuação do Estado, falhas que podem ser corrigidas por um
arranjo de forças institucionais mais favorável, por bons contratos, boas
gestões e etc.. Acreditam que a justiça no Estado capitalista está desconectada
das consequências do capital em si. E que ele mesmo pode ser controlado sem ser
questionado na sua raiz.
“Devemos alterar os
deveres legais dos diretores de empresas para que sejam obrigados a servir a um
interesse mais amplo do que as preocupações estreitas dos acionistas.”
A crítica socialista
de Marx nunca se iludiu a esse respeito, pois ele reconhecia que
O Estado não pode
eliminar a contradição entre a função e a boa vontade da administração, de um
lado, e os seus meios e possibilidades, de outro, sem eliminar a si mesmo, uma
vez que ele repousa sobre essa contradição. (…) Por isso, a administração deve limitar-se
a uma atividade formal e negativa, uma vez que exatamente lá onde começa a vida
civil, cessa o seu poder. Mais ainda, frente às consequências que brotam da
natureza a-social desta vida civil, dessa propriedade privada, desse comércio,
dessa indústria, dessa rapina recíproca das diferentes esferas civis, frente a
estas consequências, a impotência é a lei natural da administração.
• O fracasso da tentativa de regulação das
Big Pharma
Um exemplo histórico
dessa impotência são as irmãs mais velhas das Big Techs, as Big Pharma (BP). Já
há muito tempo, se denomina as grandes empresas transnacionais farmacêuticas
como Big, em razão do poder que elas acumularam e concentraram no século XX. Os
ônus sociais, políticos, econômicos, científicos, sanitários, ecológicos e
éticos dessas corporações são detalhadamente sabidos há décadas. A contar o
clássico estudo da ex-editora-chefe do New England Journal of Medicine, Marcia
Angell; que escancarou desde dentro do coração do sistema seus problemas. De lá
para cá são inúmeros os estudos científicos e pesquisas jornalísticas que,
infelizmente, reforçam a constatação das sequelas provocadas por elas.
No entanto, a
abordagem desses estudos e investigações pode ser vista como um barômetro da
crítica social-liberal, por uma simples razão: neles pouco ou nada é investido
contra a raiz do Big – a saber, a forma mercadoria, a apropriação privada da
riqueza comum, os imperativos do lucro e da concorrência e, consequentemente, a
concentração e a acumulação de capital. Ao contrário, segundo eles, o
capitalismo “tem um ótimo motor na produção de riquezas” e “liberdades
individuais”, o problema são suas “externalidades”, seus desvios de
funcionamento e os desvios de conduta de alguns empresários, CEOs e etc.. Por
consequência, as saídas propostas insistem em se resumir às questões legais,
normativas, administrativas e éticas (deontológicas), como se fosse um mero
problema tecnocrático. Mesmo o mais recente trabalho sobre o tema, do famoso
ativista Nick Dearden, é um reforço de tal posição. Ao fim e no limite, segundo
ele, para enfrentarmos a Buig Pharma devemos “alterar os deveres legais dos
diretores de empresas para que sejam obrigados a servir a um interesse mais
amplo do que as preocupações estreitas dos acionistas”.
Ou seja, se colocada
no microscópio, a posição progressista à esquerda compartilha das crenças
fundamentais do liberalismo – por isso é social-liberal. A sua tática é não
lidar com a natureza do capital, tão pouco confrontá-lo. É aceitar um tipo de
pragmatismo resignado, disfarçado de estratégia política “realista”, que aposta
as fichas em uma nova receita administrativa para justificar a confiança e a
estabilidade das instituições liberais.
Mas as décadas passam
e a Big Pharma continua dizendo ao que veio, mais forte do que nunca, e o
social-liberalismo continua correndo atrás dela, mais fraco do que nunca. Basta
olharmos a epidemia de opioides nos EUA e, sobretudo, olharmos para o papel das
empresas na pandemia de COVID-19 – contexto no qual, importante registrar, Cuba
novamente nos relembrou que não é preciso nenhuma “Big” para desenvolver
vacinas e cuidar dos povos. Na série histórica, os esforços dentro da ordem,
ainda que bem-intencionados, no máximo redundaram em vitórias “no varejo” que
somente postergaram o problema, convertendo-o em algo maior. Hoje, pouquíssimos
povos e nações têm autonomia e soberania para resolverem seus problemas de
saúde sem ter que pedir a bênção da Big Pharma ou ser veículos de sua
lucratividade.
A força do pragmatismo
resignado é tamanha, que a “mentalidade vitoriosa” é a de que questionar a
existência da Big Pharma é motivo de chacota ou riso cínico. Faça um teste e dê
uma googlada no termo. Para nós o resultado que aparece em primeiro lugar é o
verbete da Wikipedia “Teoria da conspiração da Big Pharma”. A explicação do
verbete é que falar em BP é cair na “demonização” do setor e em obscurantismos
teóricos. É como se não estivéssemos falando de um nível de acumulação e
concentração de poder e riqueza privada que hoje se sobrepõe a maioria dos
poderes públicos pelo mundo. Como se elas não existissem às custas dos
interesses das populações do Sul Global, que ainda morrem de “doenças
negligenciadas”. Como se elas não estivessem todos os meses e anos respondendo
nos tribunais mundo afora por crimes corporativos.
Se uma mentira dita
mil vezes torna-se verdade, a crítica social-liberal está fadada a tornar-se um
simulacro de si mesma. A crítica não-crítica do capital. Foi o que aconteceu
com a Big Pharma, e aparentemente está acontecendo com as Big Techs. As atuais
batalhas dos grupos de interesses para constituírem acordos, regulações,
legislações e etc. está fazendo frente ao chamado “colonialismo de dados” ou
“capitalismo de vigilância”, não são propriamente trincheiras anticapitalistas.
Trata-se, em sua raiz, da necessidade que os guardiões das mercadorias “4.0”
possuem de constituírem um mercado legal – e legítimo – para acumularem capital
livremente. Mantidos nessa dinâmica, na verdade, a tendência é uma só: a
previsão dos gastos com grandes escritórios de advocacia, litígios e multas nos
seus respectivos fluxos de caixa e, logicamente, o repasse destes para os
preços finais das mercadorias. Porque no fim das contas, a “justiça” no
capitalismo monopolista é um mero custo de produção.
• Que fazer?
Isso quer dizer que
não há possibilidades de conquistas pontuais? Quer dizer que as batalhas
travadas pelos grupos na defesa dos direitos digitais não trarão nenhum
benefício para as populações? De modo algum, já mencionamos ganhos importantes
acima, e devemos continuar travando essas lutas. A questão é não ficarmos cegos
para o fato de que, na beira do precipício socioambiental, essas conquistas
legais não são capazes de pavimentar os caminhos de um outro modo de vida. São
meras ações defensivas.
O exemplo da Big
Pharma novamente traz aprendizados importantes. Os alicerces da indústria
farmacêutica, a acumulação de capital e o aparelhamento institucional que
fizeram as corporações aptas a serem efetivamente Big dos anos 1980 para cá,
foram consolidados justamente no período em que a classe trabalhadora
organizada participava em peso do Estado capitalista – o “glorioso” Estado
bem-estar social (1940-70). Nem mesmo as mais duras legislações e as mais
atuantes políticas públicas da história capitalista foram capazes de controlar
o capital, e muito menos acumularam forças para irmos além do capitalismo.
Embora os ganhos a favor dos trabalhadores tragam saudades, mantidos dentro das
formas capitalistas, eles foram, e sempre serão, sazonais e parciais. Ou seja,
tão logo as classes dominantes se recompõem, as contrarreformas vêm a galope e
a dominação burguesa aperta o cerco, se expandindo para cada vez mais aspectos
da vida social, como é o caso dos últimos 50 anos.
O momento atual é um
momento de especial fraqueza. Pois ele é marcado pela expansão descontrolada
das práticas predatórias do capital digital financeirizado, subjugando a
soberania dos povos e a intimidade dos cidadãos. Um movimento que implica na
radicalização do neoliberalismo como modo de vida, que se utiliza das
tecnologias digitais para desarticular cada vez mais os controles sociais e
públicos sobre as dinâmicas do mercado. Algo potencializado, no campo político,
pela ascensão do neofascismo, que se une no ataque a esses mesmos controles, em
um ímpeto regressivo. E, como se já não fosse o bastante, as evidências de que
as democracias liberais são impotentes frente à crise ecológica se acumulam,
cotidianamente.
Neste contexto não é
mais realista ser “realista”. O realismo do que podemos fazer não pode excluir
o realismo do que precisamos fazer. A pragmática do acúmulo de forças, com as
negociatas e acordos pelo alto, só acumula derrotas, recuos e alianças escusas.
Toda vitória é, no máximo, um paliativo. A necessidade da radicalidade está no
simples fato de que ela é a única forma de avançar. O que não significa berrar
extremismos ao vento e se recusar a lidar com as questões imediatas. Mas sim
compreender que a força só se constrói pela afirmação intransigente de um polo
que faça a defesa radical de um novo modo de vida, pautado pela igualdade
radical e pela soberania popular.
Não há caminhos
prontos — o caminho se faz caminhando. Regulações que não afetam diretamente os
fundamentos econômicos das Big Techs e da Big Pharma visando, a médio e longo
prazo, as suas efetivas extinções, deixaram de ser “realistas”. São meias
verdades. As lutas no campo institucional podem ser utilizadas, no limite como
meios táticos, se vierem articuladas organicamente com a mobilização popular no
escopo de irem para além de si mesmas. Do contrário, sempre terão pés de
cristal.
Mais do que
despejarmos forças em formas jurídicas que limitem a atuação das Bigs, é
preciso desde já criarmos um polo radical que diga, em alto e bom som, que a
médio e longo prazo elas não devem existir. As tecnologias digitais são
“conquistas” de toda a humanidade, e não de uma dúzia de corporações
estadunidenses e chinesas. Não podemos assistir, paralisados, em um misto de
excitação e medo, o surgimento da mais nova “grande invenção” do Vale do
Silício, a cada dois anos. Devemos aproveitá-las para fazermos renascer
projetos de soberania popular, de democracia direta, de compartilhamento em
redes solidárias e de formas cooperativas, que realmente apontem no sentido da
igualdade substantiva.
Uma das grandes
falácias políticas dos nossos tempos é a que coloca a democracia liberal como
um valor absoluto, para o qual não há alternativas a não ser regimes
autoritários. Além de expressar uma falta de criatividade política, essa visão
desconsidera a natureza autoritária dos capitais monopolistas, e subestima as
capacidades das classes subalternizadas de construírem novos arranjos que
apontem para outros modos de vida. Para quem almeja e luta pela conquista da
vida boa para todos, não cabe mais aceitar a democracia liberal como o fim da
história. Houve um tempo em que ela representou uma conquista, mas hoje é a
forma jurídica e política que nos enjaula. Reconhecer isso não significa
abandonar as batalhas jurídicas, as eleições, ou a luta por direitos, mas sim
entender seus limites e sua fraqueza em construir a força do novo que vem.
Fonte: Por Leandro
Modolo e Alexandre Pinto, em Outras Palavras
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