As freiras que, em vez de catequizar,
defenderam cultura indígena e viram povo 'renascer'
Setembro de 2013,
nordeste do Mato Grosso. A casa simples da freira Geneviève Hélène Boyé, a
irmãzinha Veva, estava tomada por algumas dezenas de pessoas. No interior da
residência, fora cavado um buraco retangular no chão de terra e, dentro dele,
jazia seu corpo, pendurado em uma rede branca, a mesma na qual ela dormia todas
as noites.
Ao redor, índios
Apyãwa - conhecidos também como Tapirapé - batiam levemente os pés no chão,
balançando sutilmente o corpo, enquanto entoavam um longo canto lamurioso.
Depois de a cova ser fechada com tábuas, as mulheres, chorando, peneiraram
quilos de terra por cima, conforme sua tradição. Alguns não indígenas
acompanhavam o ritual e repetiam os movimentos, entre eles Odile Eglin, a irmã
Odila.
A cerimônia aconteceu
a cerca de oito mil quilômetros da terra natal das duas, a França. Integrantes
da fraternidade Irmãzinhas de Jesus, as freiras viveram por décadas com - e
como - os Apyãwa. Veva, que chegou com o primeiro grupo em 1952, lá ficou praticamente
todo o tempo até morrer, 60 anos depois, quando foi enterrada pelo costume
indígena, segundo sua escolha.
Odila, que se juntou a
ela em 1982, retornou a Paris em janeiro, encerrando um ciclo de 65 anos na
comunidade: foi a última religiosa a viver com os Tapirapé.
Quando Veva e mais
duas freiras chegaram para estabelecer a primeira missão das Irmãzinhas nas
Américas, a população Apyãwa estava reduzida a cerca de 50 pessoas e corria o
risco de desaparecer. Hoje são quase mil, aproximando-se do tamanho que tinham
no início do século 20.
• Epidemias entre indígenas
A forte redução
populacional na primeira metade do século passado foi provocada principalmente
por doenças transmitidas por não indígenas, como gripe e varíola, contra as
quais os Tapirapé não tinham anticorpos. A situação depois foi agravada por um
ataque dos índios Kayapó, então seus inimigos.
O papel das freiras
para a recuperação desse povo lhes rendeu a alcunha de "parteiras dos
Tapirapé", criada pelo teólogo Leonardo Boff. Elas atuaram primeiro no
tratamento das doenças, mas depois também no fortalecimento cultural do grupo e
na recuperação de seu território tradicional.
Seu sucesso veio de
uma fórmula nova de "evangelização": ao invés de catequizar os
indígenas, elas se integraram ao seu modo de vida e buscaram elas mesmas serem
Apyãwa. As religiosas viviam em casas semelhantes às dos indígenas, plantavam e
comiam como eles e chegaram a participar em alguns rituais. A forma como Veva
foi enterrada, na tradição tapirapé, sintetiza o espírito dessa relação, conta
o cacique geral Warei Elber Tapirapé.
"O povo Tapirapé
sabe muito bem como elas trabalharam: respeitaram nossa cultura, nossa maneira
de conviver entre nós e com a natureza. E a gente também foi apoiando elas.
Essa relação foi em harmonia", resumiu ele em conversa com a BBC News Brasil
em abril, durante o último acampamento Terra Livre (encontro anual de povos
indígenas em Brasília).
O estilo dessas
freiras segue os ensinamentos de Charles De Foucault, missionário francês
beatificado em 2005 que viveu anos entre árabes nômades no norte da África na
virada do século 19 para o 20, mas sem catequizá-los. Foi ele quem inspirou
Magdeleine Hutin a fundar a fraternidade Irmãzinhas de Jesus em 1939, na
Argélia, com propósito de atender comunidades vulneráveis, principalmente as
mais isoladas.
• Abandono da catequese forçada
A atuação dessas
religiosas era algo inovador no Brasil e - após séculos de catequese forçada e
massacre da cultura indígena - contribuiu para o desenvolvimento de uma nova
forma de a Igreja católica lidar com os povos originários no país, processo que
culminou na criação do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), em 1972,
observa Gilberto dos Santos, membro do secretariado nacional da organização.
"Foi uma
experiência muito forte porque eram religiosas num período em que a gente ainda
não tinha essa leitura de respeito à cultura, de não catequese, que aparece no
final dos anos 60", ressalta Santos.
A antropóloga e
demógrafa Marta Maria do Amaral, ex-presidente da Funai (Fundação Nacional do
Índio), considera que a presença das religiosas foi "absolutamente
fundamental" para a recuperação populacional dos Tapirapé. De um lado,
destaca ela, o cuidado com a saúde e a segurança alimentar promovido pelas
freiras permitiu que o grupo atingisse taxas de mortalidade infantil mais
baixas que a de outros povos indígenas.
Por outro, acrescenta,
a própria valorização do modo de vida Tapirapé e seu empenho para ampliar a
articulação do grupo deram "ânimo" para sua multiplicação.
"A atuação das
irmãzinhas ajudou muito o grupo a ter mais conhecimento, informação e,
portanto, a se sentirem mais fortes para lutarem pelos seus direitos",
resume Amaral.
• Trabalho em prol da saúde indígena
No início, a principal
atuação das freiras era nos cuidados de saúde. Elas tratavam os Apyãwa de
doenças como gripe, sarampo, catapora e malária e acompanhavam os índios quando
eles precisavam ir a unidades de atendimento, contou Odila à BBC News Brasil quando
esteve em Brasília para o lançamento do livro "Parteiras de um Povo",
dias antes de embarcar para a França.
"Íamos na cidade
para eles não ficarem perdidos, assustados, e para os médicos também terem
vergonha na cara e atenderem melhor. E a gente tentava que os pajés pudessem ir
juntos, (para que) o respeito mútuo das ciências pudesse se realizar. Isso nem
sempre era possível, porque alguns lugares não aceitavam", recorda.
Para além do cuidado
com a saúde, porém, elas viraram confiáveis interlocutoras entre eles e o mundo
fora da comunidade. As freiras atuaram na instalação de uma escola indígena na
aldeia nos anos 70, reivindicação dos próprios Tapirapé, assim como participaram
do longo processo de reconhecimento do seu território, homologado pelo governo
federal como Terra Indígena Urubu Branco em 1998.
Luiz Gouvêa e Eunice
Dias foram os primeiros professores da escola e desenvolveram um método de
alfabetização dos indígenas na língua tapirapé a partir do trabalho feito pela
freira Mayie Baptiste, que estudou profundamente o idioma, e da linguista Yonne
Leite. Hoje, conta Gouvêa, todos os professores da escola e seus
administradores são índios Tapirapé, com formação em licenciatura intercultural
indígena (curso oferecido em algumas universidades públicas do país).
"Podemos dizer
que é graças às Irmãzinhas de Jesus (que foi estabelecida a escola). Isso foi
importante porque a escola foi também um apoio na luta pela terra, na
organização indígena, na discussão das questões trazidas nas assembleias (com
outros povos)", ressalta Gouvêa.
Apesar da conquista da
demarcação, persistem as invasões do território Tapirapé por madeireiros e
criadores de gado. Uma parte da terra, ocupada por uma fazenda, está em disputa
na Justiça. Em abril, o cacique Warei e outras lideranças Tapirapé, com assistência
jurídica do Cimi, passaram horas na Funai, em Brasília, em reunião para tratar
do processo. Ele lamenta que Odila não esteja mais na aldeia para participar
dessa luta.
"Ela mostrou
alguns caminhos para nós, mas mesmo assim a gente sente um pouco de dificuldade
para correr atrás das coisas, principalmente na questão do território",
disse o cacique.
Odila não queria
deixar o povo, mas, já idosa, voltou à França em respeito à decisão da
fraternidade, que hoje carece de novas freiras para dar continuidade ao
trabalho. Os Tapirapé, porém, ainda alimentam a esperança em seu retorno,
enquanto mantêm contato por email e WhatsAapp.
• Batismo de índios
Antes das chegadas das
religiosas, os Apyãwa já estavam em contato havia cerca de quatro décadas com o
catolicismo por meio dos frades dominicanos, que os visitavam esporadicamente e
os batizavam. Após o ataque Kayapó, esses missionários persuadiram os indígenas
remanescentes a se reagruparem perto do posto do Serviço de Proteção aos Índios
(SPI, órgão depois substituído pela Funai), nas margens do Rio Tapirapé. Apenas
nos anos 90 eles retornaram à serra do Urubu Branco, território sagrado.
Todo o processo de
vivência e aprendizado com os indígenas foi registrado por elas em diários. O
livro "Parteiras de um Povo" conta que, nos primeiros 20 anos da
presença das religiosas na comunidade, as freiras tinham o desejo de
"introduzir (os Tapirapé) pouco a pouco no conhecimento de Jesus",
embora "sem coerção". No entanto, elas acabaram compreendendo que a
força do grupo estava justamente nos seus rituais indígenas.
"Todos os
Tapirapé eram batizados quando chegamos. Para nós aparecia a questão: o que
aportamos para essas pessoas que (em tese) são católicas?", ressalta
Odila.
"Aos poucos, as
irmãzinhas perceberam que o ritual era a força vital deles. Acho que isso foi
uma luz e que deu tranquilidade de dizer: 'esse povo não precisa ser católico
para viver'. Mas isso não foi dito de um dia para o outro", conta.
A prática do batismo
acabou sendo abandonada gradualmente, assim como os hábitos de freira, que elas
inicialmente vestiam, foram substituídos por roupas comuns. Os rituais
católicos eram praticados com discrição. O filme histórico "Veva Tapirapé",
da produtora católica Verbo Filmes, mostra a capela, um pequeno puxadinho na
casa onde as religiosas moravam. Em um canto da parede, havia uma pequena
imagem de Maria, no outro, uma cruz de madeira simples, sem a imagem de Cristo
talhada.
"Nosso modo de
rezar, a capela, tudo isso a gente simplificou, simplificou, para pelo menos
não chocar. Não ficar tão longe (dos costumes) deles", explicou Veva, em
depoimento ao filme.
Os Apyãwa acreditam na
existência de vários espíritos com os quais se relacionam por intermédio da
atuação dos pajés. Ao invés de uma postura de rechaço pela religião indígena,
as freiras chegaram a participar de alguns rituais, por exemplo produzindo o cauim
(bebida típica fermentada) para a festa de Kawiypyparakãwa (festa da dança em
torno do cauim). Devido à localização da casa de Odila, ao sul da aldeia, parte
das danças e cantos dessa cerimônia, que marca o fim do Ka'o (conjunto de
cantos noturnos) e dos rituais da estação chuvosa, ocorriam dentro da sua
residência.
"Num primeiro
momento achavam que batizar um índio seria uma coisa boa, mas depois entenderam
que o Apyãwa tinha sua religião, sua cultura. Porque Takana, a casa dos homens,
que fica no centro da aldeia, tem todos os segredo da vida. A questão da espiritualidade,
a questão dos pajés, ter esse diálogo com as almas das florestas, as almas dos
animais. Graças a elas até hoje o Apyãwa tem ainda sua cultura viva",
disse à BBC Brasil Inamoreo Reginaldo Tapirapé, uma das lideranças.
Por outro lado, conta
ele, os indígenas também tinham a sensibilidade de respeitar os rituais
católicos.
"No Natal, as
freiras faziam a missinha. Aí de manhãzinha as crianças (Tapirapé) levavam um
presente para aquele menino (Jesus), tipo uma florzinha. Era uma forma de
agradar também elas. Essa relação não é para destruir a cultura indígena, era
uma forma de relacionamento de paz, de felicidade, de alegria", recorda.
• Igrejas evangélicas e indígenas
Hoje, após a saída da
fraternidade, os Tapirapé deparam-se com o assédio de outras religiões. Grupos
evangélicos de cidades próximas têm tentado converter as famílias.
"Vemos que as
outras igrejas tentam entrar, mas nós, as lideranças, estamos impedindo. Elas
entram devagarzinho, mas lá na frente começam a proibir a gente de fazer
ritual, falar nossa língua. Eles começam a interferir dentro da comunidade,
enquanto elas (as Irmãzinhas) não traziam esses problemas", afirma o
cacique geral Warei.
Os dados do último
censo nacional realizado pelo IBGE mostram que o número de índios evangélicos
cresceu 42% entre 2000 e 2010, somando 210 mil, um quarto do total. Apesar
disso, Odila se mostra otimista com a continuidade da tradição Tapirapé e
aponta que hoje os povos indígenas têm muito mais apoio do que décadas atrás.
"Eu penso que as
religiões cristãs têm força mas eu não sei se nessa altura da vida do mundo
elas têm o poder de acabar com esses povos. Acredito que não. Tenho essa
tranquilidade dentro de mim", disse.
Fonte: BBC News Brasil
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