A hipótese do comunismo libidinal
Numa ocasião, após uma
palestra proferida em 1996, Cornelius Castoriadis lamentava que as ciências
sociais continuassem funcionando “como se Freud não tivesse existido”, isto é,
“como se as motivações dos seres humanos fossem trivialmente simples e ‘racionais’”.
O filósofo greco-francês pensava que as descobertas do autor de O
mal-estar na cultura haviam facilitado, desde o final do século XIX,
uma compreensão mais complexa e justa do ser humano, que não se conduziria
apenas em função de interesses ou critérios exclusivamente racionais. Este é o
grande avanço do psiquiatra vienense e dos seus seguidores. No entanto, a
economia, o pensamento político e a sociologia permaneceram surdos à
psicanálise.
A partir daí, cabe
perguntar novamente se as áreas do conhecimento referidas se aventuraram em
pensar “como se Freud tivesse existido”. Não sabemos se a situação geral é
melhor do que quando Castoriadis deu a sua palestra, mas no início de 2024 já
vieram à luz do dia duas obras que se encarregaram disso. O primeiro foi Desejo
pós-capitalista, que acolhe as aulas de Mark Fisher na Goldsmiths durante o
primeiro semestre de 2016, curso suspenso devido ao suicídio do autor de Realismo
Capitalista. E o segundo foi Capitalismo Libidinal, que reúne os artigos de Amador Fernández-Savater publicados
nos últimos anos e relacionados a questão.
E qual é “a questão”?
Em geral, desejo, libido. E, em especial, a sua situação no mundo atual,
caracterizada pela captura e orientação que o capitalismo neoliberal tem
operado em torno do trabalho assalariado e do consumo ansioso.
Pescador e
Fernández-Savater compartilham autores, leituras e sensações, para que seus
livros dialoguem com fluidez, a ponto de ser fácil perceber que são obras que
se complementam. E uma vez que em Desejo pós-capitalista e
o Capitalismo libidinal nos faz palpitar uma vontade
encorajadora de pensar, no que se segue vamos agarrar a luva e pensar com
ambos sobre as vicissitudes do desejo e da libido neoliberais.
·
Capitalismo libidinal
O trabalho e o consumo
são dois dos elementos que mais rapidamente vêm à tona e que geram um grande
problema no capitalismo de hoje. Em relação a isso, se são óbvios é porque
ambos são onipresentes e, assim mesmo, se geram um problema maior é porque ambos
foram erigidos nas figuras do desejo e do prazer, por isso é apropriado
perguntar como isso tem sido possível.
No início do século
XX, Max Weber publicou uma série de ensaios que foram publicados sob um título
que o tornaria famoso: A ética protestante e o “espírito”
do capitalismo. Além da tese central da obra, que explica que os
principais ramos do cristianismo reformado fomentaram o espírito de riqueza
entre os fiéis ao verem nele um sinal de salvação, Weber percebeu que para
chegar lá o primeiro passo seria alterar as palavras. E o grande responsável
foi Lutero, quando traduziu a Bíblia para o alemão e associou o
substantivo Beruf (profissão, trabalho) a um chamado de Deus.
Em espanhol [assim como no português] é fácil perceber o que
implicou a virada luterana, pois as palavras profissão ou vocação estão
igualmente repletas de conotações religiosas: a fé é professada, a vocação é
atendida. Assim, hoje, quando uma pessoa afirma ser “muito profissional” ou ter
uma “vocação clara”, ela não só diz de forma mais ou menos velada que está
religiosamente ligada à sua profissão, mas também lhe dá um sentido religioso,
positivo. Em parte porque o mundo em que vivemos recompensa esta atitude e
castiga quem a contraria.
Daí até o desejar ser
algo profissional ou contar com uma vocação é só um passo.
Porém, 60 anos depois,
Pier Paolo Pasolini vislumbrou uma mudança que vinha ocorrendo desde o fim da
guerra (na verdade, estava fermentando durante o fordismo) e que seria
complementada pelo fenômeno que Weber já havia advertido. Uma “mutação
antropológica”, avisava o poeta de Emília-Romanha, fez com que os seus vizinhos
fossem consumidores em série, a ponto de construir uma “civilização do consumo”
cujo carácter totalitário era ainda mais opressivo que o do fascismo. O que
incentivou a expansão do consumo até se converter em uma civilização?
Na opinião do próprio Pasolini, a resposta foi o hedonismo de massa, cujo poder
extinguiu o resto dos valores presentes no passado. É “a nova religião”,
sublinhou o autor de O Evangelho segundo são Mateus,
ligando-se assim ao que dissemos da Ética protestante e do
“espírito” do capitalismo: uma pulsão religiosa esbarra no trabalho, tal
como no consumo.
Não há periferia. O
trabalho e o consumo colonizaram fundamentalmente os seres humanos que quando
não trabalham consomem e quando não consomem trabalham.
Contudo, o que
acontece é uma situação que pode ser caracterizada da seguinte forma: se
pretende continuar existindo, o capitalismo, com especial gravidade na sua
versão neoliberal, exige trabalho e consumo, uma exigência que tem mais
possibilidades de ser observada com a garantia de que as pessoas de quem
dependem gostam de trabalhar e consumir. Assim, uma de suas grandes vitórias é
ter conseguido que o dever de trabalhar e de consumir se
revestisse do desejo de trabalhar e consumir.
O capitalismo
libidinal se reproduz graças a cada um e cada uma, por isso somos nós que fazemos o
mesmo. Como resultado, talvez não seja arriscado dizer que o capitalismo busca
(e muitas vezes encontra) cúmplices.
A partir daqui surgem
duas possibilidades. A primeira, mais acessível, é uma espécie de decrescimento libidinal e envolve
a limitação do desejo de trabalhar e consumir; é o caminho que se rebela contra
a orientação dos desejos para conduzi-los a fins mais satisfatórios. E a
segunda, mais vaporosa, é uma espécie de revolução libidinal e
envolve a eliminação do desejo de trabalhar e consumir; é o caminho que se
rebela contra a captura dos desejos para libertá-los, se possível.
Qual opção escolher? É
possível escolher?
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Desejo pós-capitalista
Há mais de 50 anos,
Franco Bifo Berardi dava a impressão de optar pela segunda:
“Deixamos aos trabalhadores o rechaço do trabalho e a insubordinação
permanente, a desordem organizada”, disse em 1970, época do autonomismo. O objetivo expresso era a abolição do
trabalho, o que na prática significava quebrar um dos pilares do capitalismo
que temos visto até agora.
Em relação a isso,The Big Quit, que surgiu nos Estados Unidos, mas teve réplicas em alguns
outros países, provou que ele estava certo: vários milhões de pessoas deixaram
seus empregos no calor da pandemia de covid-19, um fenômeno que ainda escapa de
forma satisfatória a explicações e que, aliás, dá a impressão de estar
esgotadando-se desde o final de 2023.
Apesar de tudo, a fuga dal lavoro contribuiu para que o
pensador italiano desse corpo a uma ideia que defende desde então: a da
deserção.
No seu famoso Dicionário
Etimológico, Joan Corominas recorda que a deserção partilha a sua raiz com
o desejo, pelo que existe uma grande proximidade entre as duas vozes, já no
plano linguístico. Da mesma forma que existe no político.
Ao longo dos últimos
anos, Berardi não só continuou a sua convicção de que devemos desertar do
trabalho, mas também que devemos fazer o mesmo com o consumo, o segundo pilar a
que temos aludido. Na verdade, a sua abordagem deve-se à crítica à “ideologia hedonista”
formulada por Pasolini, uma vez que o objetivo é “libertar-nos da identificação do prazer
com o consumo”. Diante de uma veia consumista que
considera “patogênica”, Berardi pensa que o desejo deve ser separado do consumo
em prol de uma “insurreição frugal”.
Na realidade, a deserção de Bifo não se limita ao trabalho e ao consumo, mas estende-se à guerra
ou à pátria, mas no que nos diz respeito, a deserção já atingiu os seus
objetivos, graças à ruptura do desejo com o trabalho e o consumo.
Porém, é possível que
o que aconteça seja o contrário, ou seja: que seja o trabalho e o consumo que
romperam com o desejo. O autor de Almas para o trabalho explica-o
com a expressão que deu título aos seus diários da pandemia: “deflação
psíquica” ou “psicodeflação”, fenômeno associado à perda da capacidade
sugestiva de que gozavam os dois pilares que temos visto. Em vez de produzir
prazer, o trabalho e o consumo estariam produzido sofrimentos crescentes, sendo
a proliferação de problemas de saúde mental prova disso.
Se assim fosse, a
conclusão surpreendente seria que o capitalismo neoliberal teria abandonado (ou
renunciado, se não quisermos continuar a abusar do mesmo verbo) dos principais
ardis com os quais havia tentado fazer do trabalho e do consumo fora dos âmbitos
sedutores para suas protagonistas: o desejo e o prazer.
Diante de um possível
desejo capitalista abandonado por ambas as partes, é oportuno pensar num desejo
pós-capitalista que abra mundos alternativos para uma nova libido.
E esta questão liga-se
precisamente à pergunta que devemos colocar-nos antes de terminar, que é a
seguinte: para onde vão os desertores?
·
Comunismo libidinal
A resposta mais rápida
de Berardi é “as margens”, espaços que escapam à lógica que se dão os centros
de uma realidade que, acredita, não admite solução.
No entanto, o pensador
italiano oferece uma segunda opção, também para explorada, como ele próprio
sublinhou, que se cristaliza numa velha palavra que podemos assumir, que seja
de forma provisória, seguir os seus passos: comunismo.
Ora, não devemos
pensar que o comunismo a que alude Berardi é um regresso a um Estado
burocratizado, planeador e vigilante à União Soviética, mas sim um
slogan, um significante à espera de um significado mais próspero. Porque,
embora não contemple a possibilidade de uma terceira via: “Comunismo ou extinção”, o fato é que temos que pensar no que vai ser o comunismo, em
parte para decidir se é de fato o conceito mais adequado.
Coincidentemente ou
não, como Berardi é um autor compartilhado, Fisher e Fernández-Savater fizeram
eco à mesma palavra. O primeiro o fez acrescentando um adjetivo, comunismo
ácido, alertando que se tratava de uma “provocação”, de uma “promessa” e de uma
“brincadeira com um propósito muito sério”, a saber: “A fusão de novos
movimentos sociais com um projeto comunista”, uma ideia que não pôde ser mais
especificada, ainda por ser concretizada. E a segunda afirma que o comunismo é
uma “experiência do comum” que se opõe à privatização da vida alentada pela
economia; sendo, portanto, uma experiência política.
Se os desertores e as
desertoras lutam nas margens para torná-los mais amáveis, o próximo passo é
espalhar a amabilidade nos centros, preenchendo-os com um “vínculo
des-interessado, afinitário e apaixonado”, nas palavras de Fernández-Savater:
amor, Eros.
Ainda assim, é
possível que uma presença excessiva de eros no final tenha sido problemática.
Na Grécia antiga, berço de Eros, o afeto erótico caracterizava-se por ser
febril e volátil, bem como pelo desejo urgente de fusão alentado entre amantes
concorrentes. Ao seu lado, porém, havia uma expressão de amor mais fleumática,
que se prestava a prolongar-se no tempo e que respeitava a integridade dos seus
protagonistas: era a philía, que hoje associamos ao vínculo de
amizade. Não em vão, Hannah Arendt viu nela um antídoto para o espírito
agonizante da vida na Grécia.
Nestas premissas, se
Eros pudesse ser combinado com a philia da Grécia, a vida
radicalmente nova seria não só mais desejável, mas também mais sustentável.
Talvez as alusões ao
amor e às suas muitas expressões soem excessivamente sinceras, até mesmo
ilusórias, mas não o seriam mais do que as alusões que Karl Marx fez nos
seus Manuscritos de Economia e Filosofia, nos quais vislumbrou uma
fase em que “o ser humano como ser humano”, aquele em que “pudesse
intercambiar-se somente amor por amor”. Nem força de trabalho em troca de
salários, nem dinheiro em troca de bens e serviços: amor por amor. O desejo e o
prazer teriam sido capturados pela alteridade e orientados para ela. Comunismo
libidinal.
Fonte: Por Daniel
Brea, no CTXT | Tradução: Rôney Rodrigues, em Outras Palavras
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