Mercosul e UE: entenda por que o acordo não saiu - e isso não é má
notícia
Final de 2023, o acordo entre o Mercosul e a União Europeia, em pauta
há mais de vinte anos, parou novamente. O próprio governo brasileiro e, em
particular o Itamaraty, tinha criado uma expectativa que o texto negociado em
2019 iria finalmente seguir com passos firmes o rito de aprovação pelos poderes
legislativos seguido de ratificação pelos poderes executivos para entrar em
vigor.
O que deu errado? Pergunta nada fácil.
Em primeiro lugar há de se entender que o texto que
caiu no colo do Lula, foi negociado pelo que tem de mais liberal no Mercosul.
No Brasil, foi logo depois da derrubada da presidente Dilma Rousseff em 2016
que se buscou retomar o acordo indicando para os negociadores europeus que
os parâmetros seriam outros: sem preocupações com a indústria nacional, uso de
políticas desenvolvimentistas ou exigências de contrapartidas mais
equilibradas.
Em 31 de agosto de 2016 Michel Temer tomou posse
como presidente da República Federativa do Brasil e em menos de dois meses as
negociações retomaram oficialmente. Não é exagero afirmar que essa retomada fez parte da agenda econômica do golpe. Mesmo
assim, demorou para fechar essa nova rodada de negociação o que ia acontecer em
28 de julho de 2019. Mauricio Macri, presidente da Argentina, (2015-2019)
estava na presidência rotativa do Mercosul e se preparando para a campanha
eleitoral. Ele imaginava que o anúncio do pré-acordo poderia ajudar a se manter
na presidência da Argentina. No Brasil, o governo Bolsonaro estava no seu
primeiro ano. Paulo Guedes, o czar da economia, deu continuidade à visão dos
negociadores do governo Temer de que a maior abertura possível, junto com
compromissos em restringir políticas industriais ativas, não seriam
compromissos, mas medidas necessárias. Algo razoável para muitos das viúvas dos
tucanos em altas posições no Itamaraty. Codificados em um Tratado de Livre
Comércio essas normas vinculariam inclusive os governos subsequentes.
Os europeus aproveitaram a boa vontade de seus
interlocutores sulamericanos. Havia também um outro movimento que deve ser
entendido no contexto da rivalidade e disputa comercial entre EUA e a China. O
governo da Alemanha começou a assumir uma postura mais ativa para defender sua
manufatura e posições fora da Europa, entre as quais se destaca o
Mercosul. Para isso, interessava não somente a abertura comercial para seus
produtos, mas também a regras sobre compras públicas, transparência,
concorrência e restrição à atuação de empresas estatais, entre outros fatores.
Os países da União Europeia em seu conjunto ainda mantêm o maior estoque de
Investimentos Externos Diretos no Mercosul, termo utilizado para indicar os
investimentos das empresas multinacionais, à frente dos EUA e da China. Mas,
após se tornar o principal parceiro comercial, a China começou também a avançar
em termos de investimentos. Contudo, podemos afirmar que a retomada das
negociações pelos governos de orientação neoliberal correspondia a um esforço
geral por parte das autoridades europeus para defender a competitividade das
empresas de seu continente e, mais estrategicamente, para a política europeia
de se afirmar no mundo de hoje, ao lado da China e dos EUA. O acordo poderia
dar uma contribuição, embora modesta, a esse esforço.
Finalizado as negociações em meados de 2019, o
discurso das duas partes enfatizou a importância do acordo para a retomada do
crescimento no Mercosul. Do lado europeu, se enfatizou ainda a inclusão de
normas de proteção ambiental e aos direitos trabalhistas. Na página da Comissão
Europeia usa-se até uma expressão usual da diplomacia chinesa: win-win
(ganha-ganha). Só alegria: crescimento, emprego e desenvolvimento sustentável
para todas as partes envolvidas. Na Argentina, o candidato peronista Alberto
Fernandez tinha se tornado vencedor e criticou duramente o acordo, mas não
apontou caminhos alternativos. Mas ai surgiu uma grande confusão. O texto
negociado em 2019 é bom ou ruim? É o velho problema: quem define o que é o
interesse nacional que os negociadores do Itamaraty deveriam defender? De
acordo com a imprensa comercial brasileira o acordo seria muito bom para o
Brasil e quase uma concessão por parte dos europeus.
Pois bem, não há dúvida que o agronegócio e setores
financeiros do Mercosul ganham, embora até nesses pontos os europeus fizeram
uma dura negociação. E de outro lado do Atlântico o grande ganhador seria a
indústria europeia, em particular a alemã. E vejam que ao final dos prazos de
transição, os produtos manufaturados entram com alíquotas e cotas zero,
enquanto para os produtos agrícolas do Mercosul se mantem cotas. Logo
tradicionalmente parte do setor agrícola europeu está cauteloso ou contrário ao
acordo. Isso pesou desde sempre em países onde esses grupos têm maior
influência política, em particular no caso da França e também Irlanda e
Polônia. Contudo, se no caso da Europa, setores poderosos, liderados pelo setor
industrial alemão e a própria Comissão Europeia ficaram entusiasmados com o
resultado do acordo, por que não foi dada sequência à tramitação antes das
eleições de outubro de 2022? Ainda mais, sabendo que havia grande chance de, no
Brasil, um governo com uma outra orientação de política econômica ganhar as
eleições, como de fato ocorreu.
Pois bem. Isso se explica por um conjunto de
fatores: uma diversificação da oposição interna na Europa e uma mudança no
contexto geral com covid e a guerra na Ucrânia. Primeiro, a já mencionada
oposição tradicional dos agricultores na Europa, que pesou em particular na
França, que passou por eleições presidenciais em abril de 2022.
Segundo, ganhou maior peso político uma oposição
genuína de grupos ambientalistas que, em diálogo com grupos parceiros no
Brasil, entendem que qualquer acordo que estimula a ampliação da agroexportação
acaba tendo impacto negativo para o meio ambiente, alegando inclusive pressão
para maior desmatamento. E, as pautas ambientais tinham ganhado maior força e
visibilidade política nas últimas eleições na Europa. Embora, a oposição
tradicional pegue carona nesse discurso, são grupos muito diferentes, algo não
sempre compreendido pelos negociadores do Itamaraty. Junta-se a isso o fenômeno
do avanço da nova direita radical que rejeita a tal da globalização e defende
um nacionalismo econômico, antipático a qualquer novo tratado de livre
comercio.
A pandemia por sua vez mudou bastante a visão na
Europa, seguindo a tendência nos EUA, sobre o uso do gasto público e regulação
estatal para sustentar políticas industriais-tecnológicas. Exemplo é o apoio à
reestruturação da indústria automobilística visando sua eletrificação e evitar
uma excessiva dependência das tecnologias importações chinesas. Estamos falando
da mesma Comissão Europeia que não hesitou um minuto para entrar com uma queixa
na OMC contra o programa Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da
Cadeia Produtiva de Veículos Automotores (Inovarauto) do governo Dilma em 2013.
Inovarauto previa incentivos à inovação tecnológica e proteção da cadeia
produtiva de veículos automotores através de incentivos fiscais. Ou seja, muito
parecido ao que a próprios europeus começaram a fazer.
Já a guerra da Ucrânia, que se iniciou logo em
seguida da pandemia, teve outro efeito: a pauta de prioridade mudou
drasticamente. O grande problema para a indústria europeia, e a alemã em
particular é o custo de energia que tira de cara sua competitividade diante
seus competidores chineses e estadunidense. Observe por exemplo o grande
interesse, em particular da Alemanha, para o potencial de produção de
hidrogênio verde no Nordeste do Brasil. Diante desse conjunto de forças pro e
contra, com variedades de prioridades operando em ambos os lados do Atlântico,
o que prevaleceu durante o governo de Bolsonaro foi a inércia. Porque? No
fundo, o que pegou mesmo foi a imagem de Bolsonaro na opinião pública europeia
no contexto de eleições na Alemanha (2021) e França (2022).
Ângela Merkel, a ex-primeira-ministra da Alemanha
na época, até tentou, mas não conseguiu convencer o parlamento alemão e o
europeu de que era melhor amarrar o governo Bolsonaro a esse acordo com
clausulas de proteção ambiental, do que deixá-lo solto. Resumo da opera: quem
na Europa era a favor de uma tramitação vitoriosa do acordo negociado em meados
de 2019 queria as duas melhores coisas: o acordo de jeito que a turma
ultraliberal de Temer/Bolsonaro/Macri tinha negociado, mas na foto com o Lula. Não
era mais imaginável avançar com esse acordo com Bolsonaro no governo do Brasil.
Assim, também esperava-se ganhar tempo diante a própria opinião pública
europeia, passando pelas eleições na Alemanha e França. Agora, como a Comissão
Europeia iria explicar isso para o governo Bolsonaro? O truque foi o tal de
“carta-anexa” que depois caiu no colo do Lula junto com o texto de 2019.
A Comissão Europeia explicou para os negociadores
do Mercosul que havia uma forte oposição por parte dos poderes legislativos e
da opinião público pelo fato de não considerarem as cláusulas de proteção
ambiental suficientes. Mas ao mesmo tempo as partes estavam de acordo que não
era desejável reabrir as negociações, considerando sua complexidade e envolver
27 países só de lado da União Europeia.
Reabrir o acordo poderia estimular muitos
movimentos oportunistas de todo tipo. A solução mágica era uma “carta-anexa” (side
letter) que seria somente declaratória, como se fosse um compromisso
adicional sem efeito jurídico sobre o acordo em si.
Logo, a negociação sobre o conteúdo da carta não
seria reabrir o acordo. O governo Bolsonaro concordou porque estava ansioso
para assinar o acordo e agradar parte importante da sua base e para Paulo
Guedes seria um passo em direção a um Brasil mais liberal. E ainda concordaram
que a Comissão Europeia iria enviar a minuta dessa tal de carta-anexa. Ai que
estava a malicia dos europeus. Ficaram enrolando e jamais enviaram uma versão
até o Lula assumir a presidência. Isso, porque sabiam que o governo Bolsonaro iria
aceitar qualquer texto, por mais humilhante que fosse, só para o acordo
avançar. Faltou, porém, aos europeus a sensibilidade, de, diante da eleição de
Lula, simplesmente minimizar a carta, mas este ia aparecer de forma mais
questionável possível em fevereiro de 2023. Pelo jeito os europeus eram
convencidos que seu amigo Lula iria assinar o acordo, mesmo não sendo perfeito.
Afinal, Emanuel Macron, presidente da França, tinha recebido Lula antes das
eleições como um estadista e um representante do Partidos Socialdemocrata de
Alemanha, força majoritária no governo alemão em 2023, tinha até visitado Lula
na prisão em Curitiba. Além do mais, havia as sinalizações claras de vários
grupos bem representados na administração Lula e no Congresso de que avançar com
o acordo seria positivo para o novo governo.
A imprensa comercial e think-tanks financiados
pelos maiores beneficiados do acordo, como o CEBRI, jogaram sua parte. E,
nisso, havia também a convicção por parte dos europeus, esses sim mais
realistas, que com uma aceitação do Brasil os demais governos do Mercosul iam
seguir. Para os europeus era importante avançar em 2023, porque em junho 2024
estão previstas as eleições para o Parlamento Europeu. Não seria conveniente
ter confusão em torno do acordo durante a campanha eleitoral, por menor que
fosse o assunto na pauta geral que está em jogo nessas eleições. E depois das
eleições pode complicar ainda mais porque haverá uma nova composição da
Comissão Europeia, ou seja, uma possível troca de negociadores. O segundo
semestre de 2023 também parecia promissor por ter de lado do Mercosul o Brasil
e de lado da UE a Espanha na presidência rotativa. Até aqui tudo bem, tudo
conforme o script, cada um defendendo sua posição e/ou seu interesse. Mas e o
governo Lula? Qual a posição do governo Lula e seu integrantes a respeito do
texto negociado em meados de 2019 por seus oponentes políticos? Ai aqui
complica mais um pouco. O próprio Celso Amorim, principal formulador da
política externo no atual governo, tinha, em várias ocasiões públicas,
criticado duramente o acordo e chegou a caracterizá-lo, corretamente, de
neocolonial. Há dois precedentes claros. A primeira a posição do Lula e Celso
Amorim com relação à Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), quando ao
apontar a forte assimetria entre as partes, o risco para a base industrial e a
limitação da soberania econômica se fez uma oposição pública. Todo mundo sabia
qual era a posição do governo, concordando ou não.
O segundo precedente foi a rodada de negociação do
próprio Acordo Mercosul-União Europeia que começou no segundo governo FHC e
caiu no colo do Lula em seu primeiro mandato. Em 2004 chegou-se muito perto de
um acordo. Havia, porém, uma clara noção de que o acordo em si não garantirá
crescimento e tenderia a ir na contramão do anunciado esforço do governo Lula
de retomar o processo de industrialização. Ao final, o programa de governo que
o tinha elegido em 2003 previa exatamente um esforço para recuperar o papel da
indústria brasileira, lançando mão de mecanismos como conteúdo local, compras
governamentais e crédito de instituições públicas.
Em 2004, a vontade política era clara: fechar um
acordo que contribuísse com o esforço de recuperação da manufatura no Brasil e
também na Argentina. Portanto, rejeitaram-se as propostas da União Europeia de
incluir temas como compras governamentais. Segundo, no que diz respeito às
ofertas de tarifas e cotas, a UE queria muita abertura para sua manufatura e
pouca para a exportação agrícola do Mercosul, sem falar, evidentemente, dos
subsídios. Diferença grande com a situação em 2023 é que na época, parte importante
do próprio empresariado brasileiro não se mostrou, naquela ocasião, interessada
em fechar o acordo naqueles termos. Isso valia, aliás, também para as
negociações com a Alca.
O texto que ia cair no colo do Lula em 2023 era
público e conhecido havia três anos e meio. Evidente que não seria um assunto
de grande importância na campanha eleitoral de 2022, mas era tema caro para as
gestões liberais de Temer e Bolsonaro.
A ambiguidade começou nas próprias Diretrizes para
o governo Lula/Alckmin na qual se afirmou corretamente que é preciso elevar a
competitividade, mas ao elencar alguns instrumentos menciona “ampliar os
acordos comerciais internacionais relevantes”. Qualquer acordo comercial
“relevante” aumentaria a competitividade da economia brasileira? E o que seria
“relevante”?
Embora não explicite o acordo aqui tratado, era o
mais importante que estava na pauta. Parece que esse ponto entrou nas
Diretrizes do governo Lula/Alckmin a pedido de um dos partidos menores da
coligação. O que importa aqui é que não entrou uma clara afirmação de que era
preciso renegociar o Acordo União Europeia-Mercosul. Motivo não faltava: o
texto de 2019 rima muito bem com a visão ultraliberal de Paulo Guedes, mas não
com as diretrizes do governo Lula quando estes falam da nova industrialização
em bases ecológicas e digitais. Tampouco há registros de tentativas de começar
informalmente a discutir com interlocutores privilegiados da parte Europeia
algumas cláusulas chaves que deveriam passar por alterações para o acordo poder
avançar no governo Lula. Houve sim claras sinalizações positivas por parte do
vice-presidente e outros expoentes do governo mais próximos aos interesses
contemplados pelo acordo. Gerardo Alckmin chegou a expressar que o acordo
aumentaria a competividade da indústria brasileira porque permitiria importar
bens de capital mais modernos sem alíquotas. Essa ideia provavelmente era (e é)
compartilhada pelos negociadores do Itamaraty. Mas continuava um mistério o que
o Lula ia fazer com o acordo.
Havia um dilema claro. O acordo de jeito que está é
anacrônico. Por via tortas, Macron acertou nessa qualificação. É um acordo que
no fundo defende a ideia que liberalizar o comercio em si gera condições de
ganha-ganha para todas as partes envolvidas, independente das assimetrias
existentes entre eles. Além do mais, essa era a visão prevalecente na década de
1990. Hoje a própria União Europeia e os EUA redescobriram, conforme já
observado, a importância de política governamentais ativas para estimular e fortalecer
capacidades industriais-tecnológicas endógenas. De outro lado, seria pouco
realista imaginar que se pudesse começar do zero para elaborar um acordo que
pudesse dar conta dos desafios para os países do Mercosul retomaram sua
caminhado para sair de condição periférica em um mundo que precisa dar resposta
às crises climáticas e em que se intensifica uma concorrência em torno do
controle das tecnologias da quarta revolução industrial. Logo o dilema era;
enterrar esse acordo e partir para intensificar parcerias biliterais com os
principais parceiros que não envolvem a Tarifa Externa Comum, inclusive com a
própria Comissão Europeia. Ou, identificar algumas alterações pequenas, mais
emblemáticas para que se pudesse sugerir que o acordo seria mais aceitável para
o governo Lula. Aparentemente o governo ao final quis fazer transparecer que
era esse o caminho. É, de fato, razoável defender que ao Brasil, e o Mercosul
no geral, interessa fortalecer relações com Europa, para ganhar mais poder de
alavancagem e autonomia com relação aos EUA e à China. Mas não está tão claro.
Fica a dúvida porque não se começou a preparar essa negociação desde o primeiro
momento, deixando claro exatamente os pontos a serem renegociados. Sem dúvida
para os europeus uma renegociação estava fora de cogitação.
Ainda no início de junho de 2023 Valdis
Dombrovskis, responsável pelas negociações por parte da Comissão Europeia,
insistiu que não seria conveniente reabrir as negociações, considerando que
estas são fruto de processo de vinte anos envolvendo muitos países. Isso foi na
véspera da presidência rotativa do Brasil no Mercosul e da Espanha na União
Europeia. Lula optou ao final por explicitar duas críticas. A primeira, mais
dura e insistente à mencionada “carta anexa” que ele considerava, com razão,
uma aberração, porque, tudo indica o faria assinar um documento no qual ele
contradiz normas que estão na constituição e legislação ordinária
brasileira ou em tratados do qual o Brasil faz parte. Observe que o conteúdo da
carta nunca foi tornado público. Mas, como explicado, ela não tem vinculação
jurídica ao acordo, mas somente um caráter declaratório ou interpretativo.
Portanto, focar a crítica real parecia uma forma de postergar o processo sem
atacar de fato o problema central: o conteúdo mesmo do acordo.
Sobre isso Lula concentrou sua crítica nas
cláusulas sobre compras governamentais que de jeito que estão no acordo
complicariam usar esse instrumento para fins de estimular políticas de
industrialização, emprego e tecnológicas. Mas há muitas outras questões que
pudessem suscitar dúvidas a respeito do acordo. Por exemplo, no caso do setor
automobilístico, algo sempre tão caro ao presidente Lula.
O setor automobilístico, incluindo autopeças, é de
grande interesse para a Europa, em particular a Alemanha, e extremamente
sensível no Brasil e na Argentina. A tarifa de 35% cobrada sobre a importação
dos carros europeus cairia para 17,5% em até dez anos, com uma cota
temporária de 50 mil carros para o Mercosul nos primeiros sete anos, sendo 32
mil para o Brasil. As montadoras tendem a usar essa cota para exportador carro
de luxo (ex. Audi, BMW). Em 15 anos, a taxa cairá a zero. Nenhuma menção à
transferência de tecnologia, obrigações de investimento no país. Em autopeças,
a redução das tarifas de importação deve ocorrer em três tempos diferentes,
dependendo do item: 10 anos, 12 anos e 15 anos.
A transição em 15 anos parece tranquila e modesta.
Mas o que significa isso? O setor automobilístico está passando por uma fase de
reestruturação brutal com o avanço dos carros elétricos. Isso exige
investimentos e novas tecnologias, de produto e de processo. A própria produção
e distribuição começam a ser drasticamente impactadas pela indústria 4.0. Nos
próximos 15 anos, quando o setor passará por essas mudanças drásticas, o
Mercosul abrirá seu mercado sem cota e a tarifa zero. O que vai ser produzido ainda
aqui? Pela lógica do mercado, e será a única que vai sobrar, serão as peças e
componentes de menor valor agregado, talvez montagem final e olhe lá. Vai
chegar a modernidade sim, mas na forma de consumo para alguns e não como
capacidade tecnológica endógena. E ainda a indústria europeia vai conseguir
projetar suas normas ambientais e de segurança.
Vale lembrar que o mercado de automóveis no Brasil,
durante vários anos, até 2015, era o quarto maior do mundo, somente atrás da
China, EUA e Japão. Em 2014 ainda se vendiam mais carros no Brasil do que na
Alemanha. Wellington Damasceno, diretor do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC,
comentou, com perspicácia, a respeito: “No caso da União Europeia e Mercosul a
maioria das matrizes que operam no continente sul-americano são de origem
europeia. A tendência é que essas empresas concentrem a produção nos países de
origem, tirem produção daqui da América do Sul e aumente a sua exportação para
cá respectivamente.”
Há outras questões que podem ser levantados, mas o
fato que é que não foram. É fato também que havia divergências não explicitadas
publicamente dentro do governo a respeito do acordo como já explicado. O
embaixador responsável pelo Itamaraty, Mauricio Lyrio afirmou final de novembro
que “avançamos muito” e que sobrou só “um conjunto pequeno de diferença que a
gente tem que acertar".
Do MDIC houve afirmações de que a decisão política
de fechar o acordo teria sido tomada no início do mandato e que os
obstáculos seriam técnicos e limitados. O que não ficou claro é a opinião e
estratégia do núcleo duro do governo e do próprio Lula: empurrar com a barriga
até que se torne inviável? Culpar a intransigência dos europeus com a
carta-anexo? Ao mesmo tempo, talvez um entendimento que a Europa também já
estava em outra fase e que a oposição ao acordo seria forte. Isso pode explicar
a resposta do Macron em coletiva de imprensa já na fase final da revisão (“sou
contra”), seguida de uma afirmação do Lula alguns dias depois de que o novo
texto estava “mais equilibrado, mas mesmo assim insuficiente” e “se não houver
acordo, paciência”. Parecia quase jogo combinado. Até alguns dias antes Celso
Amorim tinha sintetizado de forma precisa o Acordo: “oferece pouco e exige
muito”, alegando inclusive que, apesar dos avanços ainda havia “insuficiências
sérias”.
De toda forma, isso reconfirmou que houve uma
renegociação do texto de 2019 que não se limitava à carta-anexa, não obstante a
clara indicação dos europeus que isso não seria conveniente para garantir a
tramitação do acordo. Não ficou muito claro em que momento a Comissão Europeia
aceitou renegociar parte do texto e também não houve manifestações públicas
sobre quais as cláusulas. Talvez a percepção de que Lula não ia avançar com o
acordo sem nenhum ajuste, gerou uma abertura muito em cima da hora . Enquanto
não se chega a um novo texto final as negociações correm sob sigilo. Aparentemente
se tentou negociar a exclusão de alguns setores sensíveis das restrições
impostos pelo acordo, em particular na área de saúde e setores de tecnologia
verde.
A Comissão Europeia diz defender uma diplomacia
publica e transparente. Foi ela quem tornou público primeiro, em 2019, o texto
completo negociado, antes que o Itamaraty o fizesse. Mas no caso dessa suposta
nova rodada de negociação não há nenhum registro. A última rodada oficial de
negociação registrado foi de abril de 2019 e o último registro de um
diálogo com a sociedade civil sobre os acordos de comércio livro na América
Latina, em dezembro de 2022. A única referência a essa nova rodada de negociação
que deve ter iniciado na presidência rotativa do Brasil no Mercosul, que
encontramos no site da Comissão Europeia é um comunicado reproduzido também no
site do Itamaraty do dia 07 de dezembro, justo o dia que ficou claro que não
haveria um desbloqueio do acordo.
O texto diz que “a UE e o Mercosul estão
engajados em discussões construtivas com vistas a finalizar as questões
pendentes no âmbito do Acordo de Associação. Nos últimos meses,
registaram-se avanços consideráveis”. Assim, nenhuma das partes quis revelar o
que exatamente foi revisado, mas fica a impressão de que ambos combinaram
passar uma mensagem positiva: estamos avançando e o texto está melhorando.
Ficamos com a curiosidade: melhorando em que? Para quem? Por que esse excesso
de sigilo? De todo modo, foi divulgado que se prevê a conclusão da renegociação
para fevereiro, já com o presidente de Paraguai, Santiago Peña na presidência
rotativa do Mercosul. Será?
Já na Cúpula Social do Mercosul, realizada na
véspera da Cúpula Presidencial, não houve dúvida a respeito do caráter do
acordo, nem motivo para enrolar na linguagem. A declaração final afirma que a
concretização do acordo “...significaria o aprofundamento do modelo
capitalista, extrativista, colonialista, patriarcal, racista, fortalecendo as
elites mais retrógradas e violentas de nossa região, ameaçando o ambiente e a
sociobiodiversidade e colocando em risco a soberania de nossos povos e
territórios.”
Para complicar mais, no meio da confirmação do
desacordo houve ainda a eleição de Javier Milei na presidência de Argentina. Embora
ele tenha expressado seu desgosto com o Mercosul durante a campanha
eleitoral, não demorou a expressar, por meio da Diana Modino, a atual Ministra
de Relações Exteriores, interesse no acordo. Isso não deve surpreender: os
setores do macrismo que estavam a frente da negociação, em 2019, se aproximaram
do Milei e sua agenda coincide com a visão neoliberal do Acordo.
Difícil avaliar qual o destino do texto tão
cuidadosamente negociado pelo neoliberais nos governos Macri, Temer e Bolsonaro
e supostamente melhorado, mas não o suficiente, no governo Lula. Fato é que há
grande espaço para qualificar e ampliar as relações com os parceiros
europeus em torno de pauta de interesse do governo Lula e que não precisam
necessariamente desse acordo. Um exemplo foi a visita do Lula para Berlim, no
início de dezembro, exatamente no mesmo período que ficou claro que o Acordo
iria ficar no freezer mais um pouco, sem saber se seu prazo de validade ia
aquentar mais uma demora. Nessa vista Lula assinou vários acordos com o governo
alemão com ênfase na questão energética, transição ambiental e cooperação
tecnológica.
Um tema que se discute muito ultimamente é o
potencial do Brasil em atrair um novo ciclo de investimentos de empresas
internacionais que estão à procura de localizações geográficas com
disponibilidade de energia verde, barata, seguro e abundante, fenômeno
conhecido como powershoring. É um outro exemplo de estratégia que
passam por outro tipo de acordos. No fundo o que Brasi sente falta é de uma
política abrangente com iniciativas ousadas e regras claras para avançar na
prometida nova política industrial, cujas linhas gerais foram anunciados no
meados do ano passado. É urgente incentivar investimentos produtivos e avançar
na geração de capacidade industrial-tecnológica endógena. Ao final é essa
estratégia que deveria apontar os parâmetros das negociações com os parceiros e
não o contrário.
Fonte: Por Giorgio Romano Schutte, para o Brasil de
Fato
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