Empresa vende lotes de território indígena como NFTs sem conhecimento da
Funai
Há séculos, os relatos de perseguições, massacres,
torturas, experiências de escravidão e batalhas pela terra marcam a história do
povo Apurinã, que se refugiou nos cantos mais intocados da floresta, longe dos
seus algozes. Agora, a ameaça é invisível: as terras dos Apurinã do Seruini estão
sendo vendidas na internet como NFTs (do inglês Non-Fungible Tokens,
ou tokens não fungíveis em português), pela empresa Nemus.
A empresa diz que adquiriu 41 mil hectares de uma
área que faz parte da Terra Indígena Baixo Seruini/Baixo Tumiã, que está em
processo de demarcação. A área foi dividida em lotes de diferentes tamanhos,
que são vendidos desde março de 2022 na internet com a promessa de preservar a
Amazônia . Cada NFT representa uma parcela do território, onde a Nemus ainda
espera explorar 200 mil castanheiras e gerar créditos de carbono.
Nós já íamos descendo da lancha, quando o cacique
Kaiaxi fez questão de se fazer percebido na outra margem do igarapé, empunhando
o arco e flecha e demonstrando que está sempre pronto para reagir, mas, naquele
momento, ele estava mesmo atrás de comida: “Eu tô há dois dias tentando pegar
esse tucunaré , rapaz”.
O cacique disse que não sabia que lotes da aldeia
onde vive haviam sido vendidos na internet, mas recorda que a Nemus esteve na
região se dizendo dona das terras. A empresa prometeu desenvolver projetos com
os indígenas, gerando empregos e promovendo melhorias para as aldeias, mas
sempre ignorando o reconhecimento do território tradicional.
Em dezembro do ano passado, o Ministério Público
Federal (MPF) recomendou a suspensão do projeto da Nemus, orientação também
encaminhada para a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Mas nenhum
dos órgãos sabia que a empresa vendeu áreas do território como NFTs, e muito
menos que ainda continuam sendo negociadas, como identificou a InfoAmazonia.
Em setembro, nossa reportagem esteve nas aldeias
Penedo, Kamarapa, Maloca e Bom Jesus, nas Terras Indígenas Baixo
Seruini/Baixo Tumiã e Marienê, que
são diretamente impactadas pelo projeto anunciado pela Nemus.
A reportagem identificou 1.482 pedaços da terra
indígena dos Apurinã registrados como NFTs, que são
certificados digitais de propriedade de ativos únicos (não fungíveis),
como obras de arte, objetos colecionáveis ou propriedades. Nesse caso, cada
comprador adquire virtualmente uma parte do território, que pode vender para
outros a qualquer momento. As negociações funcionam como uma bolsa de valores e
o preço do NFT varia de acordo com a cotação de um dinheiro virtual
criptografado, as criptomoedas , e do próprio valor do ativo ambiental que
supostamente estaria contribuindo para a preservação da floresta. Pelo menos
665 clientes compraram lotes da floresta e continuam
negociando essas áreas em NFTs em plataformas especializadas.
O detentor do NFT, segundo a Nemus, pode navegar
pela área que adquiriu e detectar fauna e flora ou ameaças, monitorando e
auditando a conservação da área.
·
Empresários da madeira
A Nemus diz que comprou a terra da Manasa
Madeireira Nacional S.A (Manasa) e que seu projeto não está em
Terras Indígenas. Afirma, ainda, que a missão dos seus NFTs “é a conservação florestal”.
A Manasa já figurou na lista dos
maiores desmatadores da Amazônia e chegou a responder por crime
ambiental em 35 ações civis públicas.
As áreas disponibilizadas em NFTs pela Nemus variam
de um quarto de hectare a 81 hectares. O projeto prevê ainda a exploração de
200 mil castanheiras na área onde a empresa se diz proprietária, com a
implantação de uma planta de beneficiamento para exportação, com mão de obra
indígena. Há também previsão para a construção de estradas, pistas de pouso e
mecanização da coleta da castanha.
Além disso, segundo a empresa, os investidores do
projeto podem utilizar as áreas para geração de créditos de carbono. Em nenhum
momento a Nemus se apresenta como uma empresa de crédito de carbono, mas
garante essa possibilidade aos chamados “patrocinadores”, clientes que ficam
com as maiores cotas dos NFTs.
Dentro do orçamento do projeto, a Nemus chegou a
comprar um barco para a Polícia Militar do Amazonas, no município de Pauini,
como forma de melhorar a segurança na região e evitar invasões das áreas dos
NFTs. Os indígenas receberam da empresa roçadeiras para abrir caminhos até os
castanhais.
Os negócios da Nemus estão associados a
investidores europeus e à ASF BRAZIL
LTD, uma holding fundada pelo italiano Maurizio Totta e com
sede em Londres. No Brasil, Totta é sócio dos empresários Pedro Ruhs da Silva e
Flávio Meira Penna, que aparecem como donos da Nemus e de outras empresas em
sociedade com a ASF. Os principais investimentos do grupo na Amazônia estão
voltados para a extração de madeira com a
recuperação de empresas falidas ou endividadas.
Em uma entrevista ao programa americano Break
It Down Show, o fundador da Nemus, Meira Penna, disse que “os
indígenas são meio que invasores” das áreas adquiridas pela Nemus, mas afirmou
que “eles viverão lá para sempre” e que “passarão rapidamente para o mundo
digital”.
No vídeo, que está na íntegra no YouTube, o
empresário detalha seu projeto de NFTs na área que é reivindicada pelos
indígenas. A intenção do negócio era
arrecadar até 5 milhões de dólares, com NFTs vendidos de 150 a 51.000
dólares. Com esse dinheiro, a Nemus compraria mais áreas na região para lançar
mais NFTs, segundo explica no vídeo.
Além da Manasa, os empresários também
compraram uma madeireira no Acre, a Laminados Triunfo, e exportam para os
Estados Unidos.. Em abril deste ano, a Laminados foi alvo de uma investigação
que apura “esquentamento ilegal de madeira”, deflagrada pelo
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(Ibama).
·
Indígenas não foram consultados
A terra tradicionalmente ocupada pelos Apurinã, e
reivindicada por eles há décadas, só foi reconhecida pela Funai em 2017, quando
foram iniciados os estudos de identificação, mas o processo de demarcação nunca
foi concluído. “O que queremos é a demarcação do nosso território para nos
sentirmos mais seguros”, afirma Kaiaxi.
As aldeias do Seruini não têm luz elétrica ou
acesso à internet. Segundo os indígenas, a falta de estrutura básica foi a
senha para Flávio Penna e sua equipe prometerem melhorias para as comunidades,
como condições mais dignas de atendimento à saúde e de estudo para os mais
novos. As primeiras investidas ocorreram em 2021, durante a pandemia, e com
autorização da Funai da gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL),
infringindo a norma do próprio órgão que impedia a entrada de não indígenas nas
comunidades devido à Covid-19.
“Disseram que vinham ajudar a gente, bateram fotos
nas castanheiras para verificar a produção, mas depois quando voltaram já
vieram com outra história”, disse o cacique Kaiaxi.
E, na verdade, os indígenas nunca foram consultados
corretamente sobre os planos da empresa e muito menos sabiam que as terras que
habitam estavam sendo vendidas como NFTs que prometem a preservação da
Amazônia.
Segundo o MPF, a falta de consulta prévia, livre e
informada, como prevê a Convenção
169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT),
“evidencia supostas violações de direitos às comunidades”, o que motivou a
instauração de um inquérito para apurar o caso, instaurado em julho de 2022.
O texto da Convenção
169 prevê o direito à consulta de qualquer projeto que interfira em
Terras Indígenas, e que toda a comunidade indígena reconhecida,
independentemente se o território já foi homologado ou não, saiba sobre o que
está sendo proposto e ela é quem decide sobre a aprovação do projeto ou não. O
assunto deve ser discutido internamente pelos indígenas, com adoção de protocolo
de consulta, que permita a todos do território terem acesso às informações sobre os
projetos.
Ao MPF, a Nemus
alegou que a propriedade não está em “uma Terra Indígena devidamente demarcada”
e por isso o entendimento da empresa “é o de que não existe a aplicabilidade de
consulta prevista na convenção OIT 169 em nenhum de seus artigos”.
No mesmo documento, de agosto de 2022, a Nemus diz
que ainda não estava desenvolvendo atividades econômicas na região. No entanto,
nesta data, a empresa já tinha lançado seus NFTs no mercado,
que começaram a ser vendidos em março de 2022.
·
Empresa mudou nome da terra indígena para NFT
Segundo informações de indígenas que vivem na área,
a Nemus conseguiu convencer o cacique de uma das aldeias a acompanhar
representantes da empresa até o cartório da cidade, em Pauini, e mudar o nome
da área que a empresa se diz dona para “NFT”. Demais indígenas com quem a
InfoAmazonia conversou dizem que só tomaram conhecimento da alteração do nome
do terreno depois que ela ocorreu, sem que houvesse o conhecimento dos demais
caciques e da comunidade. Em vídeo institucional feito
pela própria Nemus, é possível ver que o indígena assina um documento com
o polegar, que indica que ele não saberia escrever. O indígena que aparece no
vídeo não quis receber a nossa reportagem.
Com a mudança, toda a área que a Nemus afirma ser
dela, incluindo as aldeias Kamarapa e Penedo, passou a ser denominada Non
Fungible Territory (NFT).
O cacique Teixeira de Sousa Lopes Apurinã, da
aldeia Kamarapa, que fica próxima a Penedo, reclamou da falta de transparência
por parte da Nemus e disse que a empresa chegou na região oferecendo ajuda, mas
nunca falou como funcionaria o projeto de NFT.
“Eles vieram aqui, gravaram vídeo com a gente e
entregaram uma placa, mas nunca explicaram direito o projeto, só disseram que
iriam nos ajudar”, contou apontando que, diante da necessidade que
enfrentam, os indígenas aceitaram ajuda da empresa.
“Eu fiz uma lista de coisas que precisávamos:
terçado [facão], afiador, falei que precisamos de melhoria na escola, internet…
mas não para que fossemos mandados por eles”, contou Teixeira.
“A gente gostaria que os próprios governos
reconhecessem essa nossa situação, meu avô era cacique, meus irmãos são
caciques, eu sou cacique dessa aldeia, mas nos sentimos abandonados. Não
estamos pedindo, estamos reivindicando uma coisa que é nossa de direito. Nós
somos donos daqui, nós viemos dessa terra” , emendou o líder.
Como forma de se proteger e reforçar o uso
tradicional da terra, os Apurinã montaram um mapa etnoambiental, onde
localizaram pontos importantes de uso das comunidades, como os castanhais, área
de coleta de barro para cerâmica, áreas de caça e as cachoeiras, por exemplo.
Cada aldeia mapeou sua área de uso, que formam a área requerida para demarcação
definitiva do território.
·
R$ 176 mil em um NFT do projeto Gênesis
Cada NFT do projeto Gênesis é representado por uma
carta virtual, que traz a imagem do que existe na área adquirida, como a onça,
o bicho preguiça, o urubu-rei, tucanos, espécies de árvores e frutos. O card
informa o tamanho da área e a coordenada geográfica.
Entre os 1.482 NFTs do projeto identificados dentro
da terra dos Apurinã, foram encontrados tokens do Gênesis negociados em
plataformas especializadas, como Coin
Base NFT, LooksRare e OpenSean. Os
preços são cotados em criptomoedas, entre 17 e 603 dólares.
A transação mais alta em um único NFT encontrada
pela reportagem foi de 19,44 WETH, equivalente a R$ 176 mil, em valores atuais
da criptomoeda, cotada em 1º de novembro, por uma área equivalente a 89
hectares. A primeira venda desse token em específico ocorreu em fevereiro de
2022, em uma pré-venda. A coleção Gênesis, segundo informações da empresa, foi
lançada oficialmente em março de 2022.
Em maio deste ano, pela primeira vez, a Nemus admitiu
publicamente que “há um litígio” na área do projeto Gênesis, que
foi “suspenso temporariamente e será retomado com uma nova propriedade na
região de Pauini”. No mesmo comunicado, a empresa diz que está negociando áreas
com os indígenas Xerente, de Tocantins.
As áreas em Pauini a que a empresa se refere seriam
contínuas ao atual projeto e, segundo alertam os próprios indígenas, também
fazem parte do território dos Apurinã.
No comunicado, a empresa diz que o problema envolve
“os proprietários” com quem a companhia tinha “um acordo irrevogável de compra
da propriedade”.
As informações estão em um blog da Nemus na
plataforma Medium. No site
oficial da empresa, não há qualquer menção à suspensão do projeto ou sobre o que será
feito com os compradores que já adquiriram NFTs.
Apesar de a venda dos NFTs do projeto Gênesis
aparecerem indisponíveis no site da Nemus, na plataforma da Ethereum, que
registra movimentações dos tokens, é possível identificar negociações recentes
de NFT que apontam para as Terras Indígenas, o que contraria a orientação do
MPF.
·
Nemus insistiu, mas Funai negou entrada no
território
Em janeiro deste ano, a nova gestão da Funai
interrompeu o contato com a Nemus iniciado no governo Bolsonaro. Segundo o
órgão,“a falta de regulamentação sobre NFT’s no país preocupa”, principalmente
porque o território ainda está em processo de demarcação, “gerando insegurança
jurídica de uma área com histórico de renitente esbulho envolvendo a empresa
Madeireira Nacional SA. (Manasa) e de conflitos com não-indígenas”, disse a
Funai em nota.
O órgão diz que, em janeiro deste ano, a Nemus
ainda “insistia em fazer reuniões com os Apurinã”, mas que o pedido foi negado.
Em dezembro de 2022, o MPF emitiu uma
recomendação para que fosse interrompida a “venda ou negociação” do projeto da
Nemus. O órgão também recomendou que a Funai se abstenha de “emitir autorização
de ingresso ou passagem nos territórios indígenas”.
Segundo o MPF, “tratar como invasores os povos
indígenas que pleiteiam seus direitos territoriais há décadas, com procedimento
demarcatório em andamento no âmbito da Funai, demonstra no mínimo a ausência de
respeito pelos direitos defendidos por tais povos e garantidos
constitucionalmente”, conforme consta na recomendação expedida pelo procurador
Fernando Merloto, e que “o não atendimento das providências apontadas ensejará
a responsabilização dos destinatários e dirigentes recomendados por sua conduta
comissiva ou omissiva”.
Diante dos indícios que mostram que áreas do
território indígena foram vendidas como NFTs, contrariando o que a Nemus
informou ao MPF, a Funai diz que vai acionar o órgão federal “assim que obtiver
comprovação destas negociações virtuais”. A reportagem da InfoAmazonia compartilhou
os dados desta apuração com o MPF, que promete se manifestar em breve sobre o
caso.
A Nemus e a SFA não responderam os emails da
reportagem com pedidos de esclarecimentos até o fechamento desta publicação.
Não conseguimos contato com os empresários Flávio de Meira Penna e Maurizio
Totta.
·
Ciclos de perseguição
A Madeireira Manasa chegou na região do Baixo
Seruini na década de 1970, em plena Ditadura Militar, e na época
conseguiu uma negativa da Funai dizendo não haver aldeamento indígena no Baixo
Seruini, o que desconsiderou a presença dos povos que já viviam naquela região.
Nesse período, mais de 800 não indígenas foram
levados para a região do Baixo Seruini, desencadeando confrontos. Foi nessa
época que o indígena José Lopes Apurinã foi assassinado, durante uma emboscada.
Ele era avô do cacique Dário Lopes Apurinã, o Kacuiry, da aldeia Bom Jesus. O
conflito deixou vários feridos e um dos irmãos do cacique vive até hoje com
sequelas permanentes.
Os primeiros contatos com os Apurinã são
registrados no século 18, quando ocorreu a busca pelas chamadas drogas do
sertão (cacau, copaíba, manteiga de tartaruga). No século seguinte, o ciclo da
borracha escancarou a violência. Para fugir, os Apurinã buscaram ficar em
cantos mais escondidos na floresta, próximos dos igarapés. Isso permitiu que
alguns grupos permanecessem totalmente isolados como queriam até a década de
1940, quando um novo ciclo da seringa se intensificou com os Soldados da
Borracha, no período da Segunda Guerra Mundial.
Quando a Manasa chegou, lembra Kacuiry , mais uma
vez os Apurinã foram acuados. “Veio muita gente para cá, ficavam por aqui
matando a caça e os nossos peixes. Quando fizeram a fazenda, o bicho pegou pra
nós. Disseram que nós não tínhamos direito a nada, e nós lutamos”, lembra.
A aldeia Bom Jesus, apesar das conexões familiares
e culturais com as demais do Baixo Seruini, está dentro da Terra Indígena
Seruini/Marienê, onde em 1914 já havia posto do Serviço de Proteção ao Índio
(SPI), instalado para apaziguar disputas entre indígenas e seringueiros. Em
1986, essa área foi interditada para estudos e, em 2000, foi homologada. Mas as
comunidades da parte mais baixa do igarapé ficaram de fora dos estudos.
Segundo informações em relatórios da Funai, a
maioria das comunidades do Baixo Seruini descende dos casamentos do velho
Jacinto, com três irmãs originárias da região do rio Tumiã. Por isso, as áreas
do Baixo Seruini e do Baixo Tumiã são atualmente ocupadas por famílias
aparentadas. Apesar de disperso, segundo
pesquisadores, este grupo forma uma rede de ocupação Apurinã daquela região do
Igarapé Seruini.
Fonte: Mongabay
Nenhum comentário:
Postar um comentário