quarta-feira, 19 de março de 2025

Democracia viva e sob permanente vigilância

A celebração dos 40 anos da redemocratização política do Brasil reuniu autoridades, acadêmicos e ex-chefes de Estado no coração de Brasília: o Panteão, na Praça dos Três Poderes. O evento Democracia 40 anos: Conquistas, Dívidas e Desafios, apoiado pelo Correio Braziliense, relembrou o passado e indicou perspectivas para o futuro.

O ex-presidente José Sarney, o principal homenageado, afirmou que é preciso vigilância permanente para garantir a continuidade do regime democrático. Primeiro presidente da Nova República, o maranhense, vice-presidente na chapa vencedora das eleições indiretas, tomou posse no lugar do presidente eleito, Tancredo Neves, internado no Hospital de Base, em 15 de março de 1985.

Com a morte de Tancredo, em 21 de abril, Sarney governou o Brasil durante os anos de mandato subsequentes, época fundamental para a elaboração da Constituição de 1988. No discurso, Sarney destacou os desafios enfrentados no período da transição da ditadura para a democracia e ressaltou o papel da Carta Magna como pilar fundamental da estabilidade política do país. "Ulysses Guimarães me disse: 'Sarney, podemos não ter Constituição'. Eu respondi: 'Sem Constituição, não há transição, porque é a Constituição que vai estabelecer a nova sociedade democrática do Brasil'", recordou o ex-presidente, ressaltando que a elaboração da Carta Magna foi essencial para consolidar o Estado democrático.

"Nossa democracia amadureceu, mas precisa ser protegida. Devemos continuar a exigir a profundidade do processo democrático e garantir que ele nunca seja interrompido". - José Sarney, ex-presidente

O ex-presidente também destacou o papel da cooperação entre civis e militares na transição política e alertou sobre a importância de garantir a continuidade das instituições. "A transição será feita com as Forças Armadas, e não contra as Forças Armadas", afirmou, ressaltando que as Forças Armadas continuam "fiéis às instituições, como demonstraram nos episódios do dia 8 de janeiro do ano passado".

Segundo Sarney, o compromisso de conciliação evitou conflitos e possibilitou que o país atravessasse um período de forte instabilidade sem rupturas institucionais. "Foram anos de muita luta. Enfrentamos mais de 12 mil greves. Muitas vezes, tivemos momentos em que poderíamos ter retrocessos, mas conseguimos superá-los", disse ele, afirmando estar feliz e orgulhoso de poder acompanhar as comemorações dos 40 anos de democracia no Brasil.

O ex-presidente encerrou o discurso destacando que a democracia deve ser um valor inegociável e que a manutenção exige um compromisso contínuo da sociedade. "Nossa democracia amadureceu, mas precisa ser protegida. Devemos continuar a exigir a profundidade do processo democrático e garantir que ele nunca seja interrompido. O preço da liberdade é a eterna vigilância", concluiu Sarney.

<>< Consolidação

Pelas redes sociais, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que "mais que a posse de um presidente da República, 15 de março de 1985 será lembrado como o dia em que o Brasil marcou o reencontro com a democracia". O Correio Braziliense apoiou o evento, organizando uma exposição no hall de entrada e disponibilizando registros dos acontecimentos nesses 40 anos.

"O presidente José Sarney governou sob a constante ameaça dos saudosos da ditadura, mas com extraordinária habilidade e compromisso político criou as condições para que escrevêssemos a Constituição Cidadã de 1988 e mudássemos a história do Brasil", disse Lula.

O ex-presidente uruguaio Julio María Sanguinetti também prestigiou o evento e destacou a importância de Sarney na consolidação da democracia na América do Sul: "Um presidente prudente de um país livre, cumprindo sua missão em um momento delicado da história brasileira", frisou. Sanguinetti e Sarney assumiram a presidência em períodos cruciais para seus países, um em 1º de março e outro no dia 15.

Sanguinetti enfatizou que a presidência de Sarney marcou uma aproximação com a Argentina, o que foi vital para o Uruguai, restabelecendo um equilíbrio regional e dissipando antigos receios em relação ao Brasil. Ele destacou que Sarney eliminou fantasmas históricos, promovendo acordos como o de Itaipu e iniciativas nucleares, reforçando que o Brasil não tinha, nem tem, planos militares agressivos, estabelecendo um momento importante de paz na região.

Já o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Nelson Jobim afirmou que o país precisa focar no futuro, sem retaliações ao passado, e buscar a redução do ódio político. Jobim destacou que a democracia brasileira tem se consolidado ao longo das últimas quatro décadas, apesar dos desafios e conflitos políticos. "Temos 40 anos de democracia e ela está durando. As instituições estão acertadas, têm lá os seus conflitos, mas o que nós precisamos é pensar no futuro", afirmou.

"Temos 40 anos de democracia e ela está durando. As instituições estão acertadas, têm lá os seus conflitos, mas o que nós precisamos é pensar no futuro" - Nelson Jobim, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal

Para Jobim, a manutenção da democracia exige não apenas vigilância, mas também a compreensão de que a política deve ser conduzida com equilíbrio e sem revanchismos. "Pensar no futuro significa não ter retaliações do passado e também a redução do ódio político", ressaltou. Sobre a recente tentativa de golpe, ele disse que é preciso cautela e vigilância diante dos desafios atuais. "A cautela é ter capacidade de compreender que os momentos históricos se produzem na história. Temos que tolerar tudo isso", sinalizou Jobim.

<><> A punição é fundamental

Ao discursar, o diretor-geral da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), Marcelo Aguiar, afirmou que o Brasil só pode celebrar os 40 anos da redemocratização porque os planos de golpe de Estado, tramados dentro do governo Jair Bolsonaro, foram derrotados. Ele disse ainda que existem extremistas, que continuam atuando à espreita, travando uma guerrilha permanente contra o sistema político, e que a punição aos responsáveis pelos atos golpistas do dia 8 de Janeiro é essencial para evitar novas ações. "Estamos comemorando hoje 40 anos da democracia, e só podemos celebrar porque os planos de golpe de Estado tramados dentro do Palácio do Planalto no governo Bolsonaro foram derrotados", afirmou.

O embaixador Júlio César Gomes dos Santos foi o último palestrante da Mesa I - Democracia 40 anos: As conquistas consolidadas. Ele ficou 38 dias ao lado de Tancredo Neves antes da morte e relembrou episódios dessa época. "Eu era subchefe do cerimonial, e meu chefe me disse: "Você vai ser o homem junto ao doutor Tancredo". Foram 38 dias inesquecíveis, tristes e difíceis de esquecer. Vieram algumas coisas que não foram publicadas e que mostravam o que era aquele momento tão difícil para o Brasil."

Uma das lembranças contadas pelo embaixador foi a surpresa ao ver as condições do Hospital de Base para receber o presidente. "Surpreendeu-me, enormemente, a deficiência do hospital. O doutor Tancredo, com os seus médicos, desceu um dia para a sala de radiografia do hospital, onde havia uma fila de pessoas que iam e entravam. Eram radiografadas e saíam, e o enfermeiro passava um pano em cima da mesa. E quando chegou a vez do doutor Tancredo, o homem passou um pano como se fosse um outro paciente que estava na fila, e eu me perguntei: 'Meu Deus do céu, será que não existe ressonância magnética? Não desinfetam a mesa?"', recordou.

¨      Como um general de quatro estrelas garantiu a posse de Sarney

O general Leônidas Pires Gonçalves é apontado por aqueles que estavam no Hospital de Base, na antessala da internação de Tancredo Neves, como o homem que mostrou o caminho a seguir sobre quem assumiria o comando do país com a impossibilidade do presidente eleito. Testemunhas oculares, em depoimento a historiadores, garantem que partiu dele a afirmação de que, pela Constituição, a interinidade do governo deveria ser passada ao vice-presidente José Sarney, e não ao presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães. O ministro João Leitão de Abreu e os juristas Affonso Arinos, Paulo Brossard e Miguel Reale reforçaram o que o militar dissera.

Gaúcho de Cruz Alta, estava à frente do III Exército (RS) quando recebeu o convite para assumir o ministério. Conforme frisa o jornalista Elio Gaspari, em A Ditadura acabada, Leônidas compunha — com Francisco Dornelles, na Fazenda; José Hugo Castello Branco, no Gabinete Civil; e Fernando Lyra, na Justiça — o eixo que “realmente contava” dos três que Tancredo estabeleceu para o governo. Nesse “primeiro time”, prestigiava-se os militares (e mantinha-se com eles o canal aberto) via Leônidas; escalava-se dois homens de total confiança (Dornelles e José Hugo) para postos-chave; e trazia-se para o centro das decisões os autênticos do MDB — por meio de Lyra.

<><> O susto

Isso tudo esteve a ponto de ruir com a internação de Tancredo. Em depoimento ao programa Memória Política, da TV Câmara, Leônidas relata o episódio sobre a dúvida a respeito de quem tomaria posse em 15 de março de 1985. “(A posse de Sarney) tem muitos pais, mas me considero o mais legítimo deles. Porque, se fizerem um exame de DNA, verão que é o meu. Considero-me dono daquele episódio”, salientou, na entrevista de 2001.

É o general quem relata: “Tinha sido convidado para ministro e estava havendo um jantar, para mim, na Academia de Tênis. Quando toca o telefone, era o general Ivan (de Souza Mendes, escolhido por Tancredo para chefiar o Serviço Nacional de Informação/SNI). (...) Quando começou a falar, perguntei: ‘O que está acontecendo? Tua voz está horrorosa’. ‘Leônidas, o presidente está no hospital e não tem condições de assumir amanhã’. (...) Peguei o carro e me mandei para lá (...). Cheguei a uma sala onde estava um grupo de homens reunidos — o Ulysses Guimarães, o (presidente do Senado, José) Fragelli, o Sarney (...). Quando cheguei ao centro, me dei conta de qual era a discussão: quem iria assumir. (...) Disse assim: ‘Mas, qual é a dúvida? Os artigos 76 e 77 da Constituição de 1969 são bem claros: quem assume é o Sarney.’ E foi o que se decidiu. Dizem que foi o (ministro do Gabinete Civil, João) Leitão (de Abreu), que foi não sei quem… Coisa nenhuma. Ninguém discutiu. Imediatamente, foi tomada a decisão. Esse episódio (...) é ratificado pelo Ulysses”.

Leônidas, porém, dá a entender que pairava, ainda assim, a dúvida sobre ser Sarney o interino. Segundo o general, formaram-se três grupos de pessoas que tomaram destinos diferentes. O dele seguiu para a residência de Leitão de Abreu, na Granja do Ipê.

“Quando ia entrando no automóvel, chegou um senhor que, docemente, me perguntou: ‘Poderia ir com o senhor, general?’ Estávamos indo para a casa do ministro Leitão, o presidente do Senado, que era o Fragelli; Ulysses, que era o presidente da Câmara; e eu. Olhei para os dois e não disseram nada. ‘Pode sim.’ Ele disse: ‘Sou o senador Fernando Henrique Cardoso.’ Fomos juntos. Quando chegamos lá, disse a ele qual era a finalidade daquela missão”, lembra.

O general acrescenta: “Cheguei lá e disse: ‘Dr. Leitão, viemos para avisar que amanhã… etc. etc.’. Ele estava cansado de saber, porque era um grande constitucionalista. Mas o (presidente) João Figueiredo não queria passar o poder para o Sarney. Disse a ele: ‘O senhor tem a Constituição aí?’ (...) ‘Tenho.’ Ele estava cansado de saber. Subiu. (...) Eram três degraus entre a biblioteca e o lugar onde estávamos. Veio com o livro aberto e disse: ‘Estes artigos 76 e 77 são bem claros.’ E acabou o problema”.

FHC, porém, relata diferentemente a conversa na casa de Leitão de Abreu. “Houve aquela discussão: ‘É o senhor quem o substitui (o Tancredo), dr. Ulysses’, disse o Leitão. ‘Eu não. É o Sarney.’ Resolvemos ler a Constituição juntos. Ulysses, Leitão e Fragelli podiam opinar. O general Leônidas e eu, não: nem advogados somos. O general foi claro: ‘Vocês (dirigindo-se aos três) decidem.’ A decisão foi que seria o Sarney mesmo quem, pela Constituição, deveria tomar posse. Ainda houve uma pergunta sobre se Figueiredo passaria a faixa, mas Leitão foi claro: ‘Presidente só passa a faixa para outro presidente’”, disse FHC ao jornalista Ricardo Noblat, como publicado no Observatório da Imprensa, em 15 de março de 1985.

<><> A certeza

Segundo Leônidas, jamais existiu disputa entre Sarney e Ulysses sobre quem tomaria posse. Regina Echeverria observa, em Sarney, a Biografia, que o jurista Saulo Ramos teve de agir para demover um grupo de forçar a situação para que Ulysses assumisse — sendo que, caso essa fosse a saída constitucional, teria convocado eleição em 30 dias, como garantiu ao jornalista Luiz Gutemberg em Moisés, codinome Ulysses Guimarães — Uma Biografia.

O general afasta a hipótese de que a unção de Sarney era uma saída de conveniência, que reunia argumentos jurídicos e acomodações políticas. “Nunca vi nenhuma ambição, nenhuma luta entre Ulysses e Sarney para ser o presidente. Os dois foram muito elegantes. Em nome da verdade, não vi (...). E há outra coisa que gosto de dizer: perguntavam-me se tinha levado Sarney à Presidência porque era meu amigo. Não faça essa confusão. Foi porque estava seguindo o texto constitucional. (...) Devemos à paciência, à tolerância e até à inteligência do Sarney termos passado por esse período com bastante tranquilidade. Não com tranquilidade total, mas com bastante. De vez em quando, o Sarney via suas ideias completamente rebatidas. Ouvia-me muito, dialogava muito comigo. (...) Foi muito tolerante”, frisou Leônidas.

No depoimento de 23 de fevereiro de 2025 ao Correio Braziliense, Sarney lembra-se da importância de Leônidas na passagem da ditadura para a democracia: “Estabeleci que a transição seria feita com as Forças Armadas e não contra as Forças Armadas. Quer dizer: elas deveriam colaborar no processo de transição democrática. E realmente colaboraram. Com isso, nós voltamos as Forças Armadas aos quartéis. Demos a elas a função que eu disse a Leônidas — aliás, o melhor ministro do Exército que já tivemos. (...) E as Forças Armadas (...) abandonaram aquela coisa de, não tendo o que fazer, buscavam a política, na qual elas se metiam”, frisou.

 

Fonte: Correio Braziliense

 

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