terça-feira, 18 de março de 2025

O PT ainda é um partido de esquerda?

A imagem do governador da Bahia junto aos policiais por trás da chacina que marcou o fim de um carnaval já marcado pela repressão policial fala por si mesma de que lado estão os governos petistas. No entanto, o debate prossegue, e sem uma compreensão do significado histórico do PT seria impossível oferecer as bases de um projeto que pretenda ser sua superação revolucionária.

Em uma entrevista ao portal ICL, o historiador Lincoln Secco, autor do livro “História do PT”, responde essa pergunta em termos relativos. De que a pergunta de se o PT é ainda um partido de esquerda precisa ser respondida em termos práticos. O PT seria a “esquerda realmente existente” até que surja uma nova experiência de massas que o substitui praticamente.

O filósofo Vladimir Safatle, aceitando tacitamente os termos da discussão colocada do ponto de vista da própria intelectualidade petista, afirma que a esquerda morreu. À sua maneira, ambos estão corretos. O PT não vai deixar o palco da história sem que seja praticamente superado por uma nova organização de massas da classe trabalhadora. No entanto, como mostra a foto de Rui Costa ao lado da PM em apoio a chacina cometida, o PT está morto há muito tempo enquanto projeto de esquerda, e os quase dezesseis anos no comando do Estado capitalista não passaram sem provocar mudanças em grande escala no PT. Ao fim do artigo retomaremos a discussão sobre a esquerda para além do PT, dentro e fora dele.

O que queremos tomar como ponto de partida é a figura desse morto/vivo, do partido que já teve sua morte decretada muitas vezes, a esquerda e a direita e que, no entanto, ainda caminha entre nós, governa o país, estados e municípios, e alguns dos sindicatos mais fortes e influentes do Brasil. Esquerda, direita, nenhum dos dois, ou as duas coisas ao mesmo tempo?

·        Esquerda e direita

Os termos esquerda e direita são sempre termos relativos e também na política não é diferente. Como é conhecido, surgiram pela posição que ocupavam na Assembléia Nacional da Revolução Francesa os partidos da monarquia, à direita do presidente da assembleia, e os partidos da revolução, à sua esquerda. Acontece que a revolução seguiu e também o Terceiro Estado se dividiu, e foi sua ala radical, os jacobinos, que levaram a revolução até o seu ápice. A cada fase da revolução, esquerda e direita indicaram as posições relativas entre os partidos que resolviam suas divergências através da guilhotina.

No Manifesto Comunista, Marx vai além desses termos relativos e das oposições gerais radicais/moderados, partido da ordem/partido da revolução, ao traçar a relação entre o Partido Comunista e os demais partidos opositores. Insere a determinação de classe por trás das denominações partidárias e das posições relativas de cada partido na dinâmica da luta de classes, e nos fala de vários tipos de socialismo e comunismo. Do socialismo reacionário de setores desgarrados da nobreza e da aristocracia destronadas pela revolução francesa, até o socialismo próprio de uma classe trabalhadora ainda em formação, da Conspiração dos iguais Gracchus Babeufe em 1776 que foi o último levante dos pobres de Paris na revolução e do socialismo utópico da primeira metade do século XIX.

Uma das características do PT é que, a partir do seu surgimento em 1980, passou a abrigar todos os setores da esquerda e das diversas frações da classe trabalhadora e das classes médias progressistas, do campesinato e dos movimentos sociais. Os PCs e agrupações do campo stalinista que ficaram de fora mantendo a aliança política com o MDB confirmaram a sua derrocada histórica depois da derrota de 1964.

·        O PT e os partidos operários-burgueses

Até agora, no entanto, não dissemos muita coisa sobre a definição deste morto/vivo que caminha entre nós. Se de esquerda ou não, a resposta só pode ser relativa, como o próprio termo. Quando confrontado com os interesses das grandes maiorias populares não resta nada de esquerda no PT, em cada um dos aspectos fundamentais, ele se coloca ao lado da ordem capitalista decadente. Quando atacado pelo bolsonarismo e pelo imperialismo trumpista, algo de “esquerda” aparece no PT, algo dessa esquerda realmente existente de que nos fala Lincon Secco e que para Safatle já morreu, mas que a extrema direita insiste em ressuscitar uma e outra vez. O PT se transformou em um partido da ordem, um dos pilares de sustentação da dominação capitalista no Brasil, e é só para melhor defender essa ordem que adota em determinadas circunstâncias e demagogicamente um discurso de esquerda.

Indo para além dos termos relativos da Revolução Francesa e chegando até a ciência revolucionária de Marx, nos perguntamos: qual a definição de classe do Partido dos Trabalhadores? É preciso indagar como se define o caráter de classe de um partido. Pela sua composição social, pelo seu programa, pela sua política, pela sua tradição. Por todos esses fatores juntos, somados ao nada secundário elemento de como ele é visto pelas classes e frações de classe, seja as que pretende representar, sejam as do campo que pretende combater.

Com todos esses pressupostos, podemos avançar em uma definição que, no entanto, como a própria realidade, não pode ser fixa. O PT pode ser definido como um partido operário/burguês, esse tipo novo de partido surgido das novas condições do capitalismo na sua fase imperialista e do advento da burocracia sindical, surgida da classe trabalhadora para se tornar um dos pilares da dominação burguesa - fenômeno que Marx não teve tempo de conhecer e portanto, não está abordado no Manifesto Comunista, a que fizemos referência, ou em outros escritos posteriores.

Não é objetivo neste artigo comparar o PT com os outros partidos do mesmo tipo na Europa, basta apontar que nessa hibridez o PT não representa nenhuma novidade e é inclusive mais débil e menos desenvolvido do que suas contrapartes européias. A grande novidade do PT é seu caráter tardio se configurando como o último dos grandes partidos operários-burgueses surgidos no século XX.

No caso do PT podemos dizer que na sua quinta administração do Estado capitalista o pólo burguês está crescentemente sufocando o pólo operário, que existe como tal apenas no passado. O PT pode ser considerado operário pelo seu surgimento, pela tradição dos seus primeiros tempos e ainda pela composição dos seus apoiadores, ainda que cada vez menos pela composição da sua direção, dos seus diretórios e dos seus militantes. E pelo seu programa, pela sua política e pelos governos que encabeça é cada vez mais burguês.

Essa definição matizada é fundamental para dar conta das próprias contradições do PT e de Lula e atuar corretamente sobre elas. Quem permanece, como o PSOL, compondo o governo atual em aliança com o PT não pode ser considerado de esquerda, apenas se quisermos, a esquerda da ordem, ala esquerda do regime capitalista e da sua democracia agonizante, mas não mais como uma projeto de esquerda que tem como perspectiva a superação da ordem capitalista, ainda que por vias eleitorais como era o reformismo dos partidos socialistas europeus antes de 1914. A grande tarefa urgente da esquerda brasileira de todos os matizes é construir uma oposição de esquerda a esse governo ajustador, precarizador, aliado ao agronegócio e destruidor do que resta dos biomas brasileiros, que cada vez mais abre espaço e adota posições da própria extrema direita. Essa oposição de esquerda não pode cair no erro dos setores que em 2016 se tornaram lavajatista, como o PSTU ou o MES/PSOL. Esse último por sua vez consegue oscilar entre a adaptação ao lavajatismo entre 2015/18 com a adaptação à Frente Ampla e a integração do PSOL ao governo.

O PT não é como qualquer outro partido burguês normal. Para que ele conclua sua transformação nesse sentido, são necessários ainda grandes processos de luta e de reorganização da classe trabalhadora e uma alternativa que o supere pela esquerda. Por ora, para construir essa alternativa, é preciso saber combater os ataques da burguesia ao PT de forma independente, já que em geral visam o que resta de operário neste partido, que não quer se defender, ao menos não com os métodos da classe trabalhadora que ele há muito tempo abandonou. A experiência histórica já mostrou que os golpes da direita e da burguesia por si só são impotentes para destruir o PT, ao contrário, cada ataque que sofre da extrema direita acaba por reabilitar o PT como a “esquerda realmente existente” aos olhos de amplos setores da sua base tradicional e inclusive da juventude.

·        O fenômeno do transformismo petista…

Um dos conceitos de Gramsci mais presentes nas discussões sobre a história do PT sem dúvida é o de transformismo, para dar conta de um partido que surgiu da classe trabalhadora e que subiu ao poder representando a hegemonia às avessas descrita por Chico de Oliveira. No entanto, não raras vezes a ideia de transformismo é tomada parcialmente ou de maneira equivocada, já que em Gramsci aparece ligada a outro conceito forte, o de revolução passiva.

O transformismo, no caso brasileiro, sem revolução passiva, é marcado por essa conversão política, seja de indivíduos, seja de todo um setor ou fração de classe, que passa de ocupar a posição dos radicais para aderir aos conservadores ou moderados, que ocorreu somente de maneira subsidiária nos anos oitenta e noventa. Essa afirmação contradiz grande parte das leituras que falam em transformismo no PT, dado que é evidente a mudança operada no partido dos anos oitenta para os anos noventa. Só que não se tratou de transformismo, não houve mudança significativa na posição social, programática ou ideológica dos núcleos dirigentes do PT. O salto à direita se deve mais à mudança operada no regime político. Por fora do regime ditatorial, a direção reformista do PT foi parte da construção do pacto social de 1988 e da construção da chamada Nova República. Lula e a direção majoritária do PT foram sempre defensores da ordem. Primeiro nos anos convulsivos da fundação e do ascenso nos anos oitenta, trata-se de conter a radicalização de massas e garantir a transição segura para a burguesia. Depois, trata-se de garantir, a partir da oposição, a estabilidade do novo regime democratico neoliberal surgido do pacto de 1988 e do Consenso de Washington de 1992.

O grande processo de transformismo do PT, no sentido do seu aburguesamento, da passagem do reformismo operário e grevístico ao reformismo burguês e administrativo vai se dando molecularmente ao longo dos anos noventa, a partir da gestão das prefeituras e dos governos de estado e o “jeito petista de militar” vai dando cada vez mais lugar ao “jeito petista de governar”, que termina de tomar forma com o lulismo.

No governo, o PT perde completamente os traços de partido militante, que foi sua característica distintiva nos anos oitenta, e passa a subsistir de maneira atenuada como parte do movimento petista nos anos noventa. Hoje, pouco ou nada restou do velho militante petista que arriscou a vida na formação do partido e nas grandes greves combativas. O PT, do ponto de vista da composição social, mudou completamente. As lideranças se aburguesaram e são sócias de empresas, ganham milhões com palestras e tem suas poupanças milionárias aplicadas em títulos da dívida pública, enquanto o grosso da militância é de funcionários, seja das administrações, dos mandatos, dos sindicatos ou dos movimentos sociais. O trabalhador real, aquele que trabalha, já não militante petista, ou quando se torna, logo também se transforma em funcionário. Não resta nada de esquerda aí e a aproximação do PSOL ao PT no momento em que esse não só está morto como partido de esquerda, mas que apodrece a olhos vistos, mostra como a evolução do PSOL realmente concentra todos os males do PT (incluído um transformismo mais acelerado e alienante) sem nenhumas das suas qualidades - a composição operária na sua origem e a sua ampla base social na classe trabalhadora tradicional.

Esse morto ainda caminha graças aos ataques da extrema direita e da ausência de uma alternativa à sua esquerda, o PSOL pela sua adaptação ao próprio PT, e o PSTU pela sua concepção que radicaliza a ideia morenista de que todo movimento de massas independente das suas demandas e das suas direções pode desencadear revoluções, que o levou a ser parte da esquerda lavajatista em 2016 e que hoje o leva à adaptação sindical. Pois é o que mais interessa ao bolsonarismo e ao mal chamado “centro neoliberal” que o PT continue sendo sempre a “esquerda realmente existente”, que pode ser chutada por eles como um cachorro morto, muito hábil para impedir o surgimento de novas alternativas, mas que há muito tempo não tem dentes para morder.

·        E a batalha por uma nova esquerda, operária, revolucionária e comunista

Podemos decretar mil vezes a morte do PT como partido de esquerda. Enquanto não formos capazes de organizar uma alternativa - nesse momento traduzida numa forte oposição de esquerda, política, social, sindical e intelectual ao governo do PT - o historiador ainda poderá argumentar que essa é a única esquerda realmente existente. Só que os historiadores não fazem a história. Cabe aos setores ativos da nossa classe - que está nas lutas do cotidiano em todas as frentes de batalha, vendo como em cada uma delas, em cada sindicato e movimento social o PT atua contra o movimento e na defesa do seu governo de aliança com financistas e latifundiários - enterrar nossos mortos e abrir caminho para o novo.

A crise pela qual passa o PSOL nesse momento é uma das crises associadas a esse grande processo histórico de experiências da classe trabalhadora e da juventude com o PT e com Lula. É verdade que a classe não vai abandonar a ferramenta com tanto custo construída, por mais enferrujada e carcomida que se encontre, se não vislumbrar uma possibilidade superior. Só meia verdade, no entanto. Pois se ninguém levantar a voz para proclamar a morte do PT e de Lula e se declarar como uma oposição de esquerda inimiga e irreconciliável com esse governo, se ninguém convocar a luta contra o Arcabouço Fiscal, o Plano Safra e todas as medidas neoliberais desse governo, sempre será essa a esquerda existente.

 

Fonte: Esquerda Diário

 

Nenhum comentário: