O PT ainda é um partido de esquerda?
A imagem do governador da Bahia junto aos policiais
por trás da chacina que marcou o fim de um carnaval já marcado pela repressão
policial fala por si mesma de que lado estão os governos petistas. No entanto,
o debate prossegue, e sem uma compreensão do significado histórico do PT seria
impossível oferecer as bases de um projeto que pretenda ser sua superação
revolucionária.
Em uma entrevista ao portal ICL, o
historiador Lincoln Secco, autor do livro “História do PT”, responde
essa pergunta em termos relativos. De que a pergunta de se o PT é ainda um
partido de esquerda precisa ser respondida em termos práticos. O PT seria a
“esquerda realmente existente” até que surja uma nova experiência de massas que
o substitui praticamente.
O filósofo Vladimir Safatle, aceitando
tacitamente os termos da discussão colocada do ponto de vista da própria
intelectualidade petista, afirma que a esquerda morreu. À sua maneira, ambos
estão corretos. O PT não vai deixar o palco da história sem que seja
praticamente superado por uma nova organização de massas da classe trabalhadora.
No entanto, como mostra a foto de Rui Costa ao lado da PM em apoio a chacina
cometida, o PT está morto há muito tempo enquanto projeto de esquerda, e os
quase dezesseis anos no comando do Estado capitalista não passaram sem provocar
mudanças em grande escala no PT. Ao fim do artigo retomaremos a discussão sobre
a esquerda para além do PT, dentro e fora dele.
O que queremos tomar como ponto de partida é
a figura desse morto/vivo, do partido que já teve sua morte decretada muitas
vezes, a esquerda e a direita e que, no entanto, ainda caminha entre nós,
governa o país, estados e municípios, e alguns dos sindicatos mais fortes e
influentes do Brasil. Esquerda, direita, nenhum dos dois, ou as duas coisas ao
mesmo tempo?
·
Esquerda e direita
Os termos esquerda e direita são sempre
termos relativos e também na política não é diferente. Como é conhecido,
surgiram pela posição que ocupavam na Assembléia Nacional da Revolução Francesa
os partidos da monarquia, à direita do presidente da assembleia, e os partidos
da revolução, à sua esquerda. Acontece que a revolução seguiu e também o
Terceiro Estado se dividiu, e foi sua ala radical, os jacobinos, que levaram a
revolução até o seu ápice. A cada fase da revolução, esquerda e direita
indicaram as posições relativas entre os partidos que resolviam suas
divergências através da guilhotina.
No Manifesto Comunista, Marx vai além desses
termos relativos e das oposições gerais radicais/moderados, partido da
ordem/partido da revolução, ao traçar a relação entre o Partido Comunista e os
demais partidos opositores. Insere a determinação de classe por trás das
denominações partidárias e das posições relativas de cada partido na dinâmica
da luta de classes, e nos fala de vários tipos de socialismo e comunismo. Do
socialismo reacionário de setores desgarrados da nobreza e da aristocracia
destronadas pela revolução francesa, até o socialismo próprio de uma classe
trabalhadora ainda em formação, da Conspiração dos iguais Gracchus Babeufe em
1776 que foi o último levante dos pobres de Paris na revolução e do socialismo
utópico da primeira metade do século XIX.
Uma das características do PT é que, a partir
do seu surgimento em 1980, passou a abrigar todos os setores da esquerda e das
diversas frações da classe trabalhadora e das classes médias progressistas, do
campesinato e dos movimentos sociais. Os PCs e agrupações do campo stalinista
que ficaram de fora mantendo a aliança política com o MDB confirmaram a sua
derrocada histórica depois da derrota de 1964.
·
O PT e os partidos
operários-burgueses
Até agora, no entanto, não dissemos muita
coisa sobre a definição deste morto/vivo que caminha entre nós. Se de esquerda
ou não, a resposta só pode ser relativa, como o próprio termo. Quando
confrontado com os interesses das grandes maiorias populares não resta nada de
esquerda no PT, em cada um dos aspectos fundamentais, ele se coloca ao lado da
ordem capitalista decadente. Quando atacado pelo bolsonarismo e pelo
imperialismo trumpista, algo de “esquerda” aparece no PT, algo dessa esquerda realmente
existente de que nos fala Lincon Secco e que para Safatle já morreu, mas que a
extrema direita insiste em ressuscitar uma e outra vez. O PT se transformou em
um partido da ordem, um dos pilares de sustentação da dominação capitalista no
Brasil, e é só para melhor defender essa ordem que adota em determinadas
circunstâncias e demagogicamente um discurso de esquerda.
Indo para além dos termos relativos da
Revolução Francesa e chegando até a ciência revolucionária de Marx, nos
perguntamos: qual a definição de classe do Partido dos Trabalhadores? É preciso
indagar como se define o caráter de classe de um partido. Pela sua composição
social, pelo seu programa, pela sua política, pela sua tradição. Por todos
esses fatores juntos, somados ao nada secundário elemento de como ele é visto
pelas classes e frações de classe, seja as que pretende representar, sejam as
do campo que pretende combater.
Com todos esses pressupostos, podemos avançar
em uma definição que, no entanto, como a própria realidade, não pode ser fixa.
O PT pode ser definido como um partido operário/burguês, esse tipo novo de
partido surgido das novas condições do capitalismo na sua fase imperialista e
do advento da burocracia sindical, surgida da classe trabalhadora para se
tornar um dos pilares da dominação burguesa - fenômeno que Marx não teve tempo
de conhecer e portanto, não está abordado no Manifesto Comunista, a que fizemos
referência, ou em outros escritos posteriores.
Não é objetivo neste artigo comparar o PT com
os outros partidos do mesmo tipo na Europa, basta apontar que nessa hibridez o
PT não representa nenhuma novidade e é inclusive mais débil e menos
desenvolvido do que suas contrapartes européias. A grande novidade do PT é seu
caráter tardio se configurando como o último dos grandes partidos
operários-burgueses surgidos no século XX.
No caso do PT podemos dizer que na sua quinta
administração do Estado capitalista o pólo burguês está crescentemente
sufocando o pólo operário, que existe como tal apenas no passado. O PT pode ser
considerado operário pelo seu surgimento, pela tradição dos seus primeiros
tempos e ainda pela composição dos seus apoiadores, ainda que cada vez menos
pela composição da sua direção, dos seus diretórios e dos seus militantes. E
pelo seu programa, pela sua política e pelos governos que encabeça é cada vez
mais burguês.
Essa definição matizada é fundamental para
dar conta das próprias contradições do PT e de Lula e atuar corretamente sobre
elas. Quem permanece, como o PSOL, compondo o governo atual em aliança com o PT
não pode ser considerado de esquerda, apenas se quisermos, a esquerda da ordem,
ala esquerda do regime capitalista e da sua democracia agonizante, mas não mais
como uma projeto de esquerda que tem como perspectiva a superação da ordem
capitalista, ainda que por vias eleitorais como era o reformismo dos partidos
socialistas europeus antes de 1914. A grande tarefa urgente da esquerda
brasileira de todos os matizes é construir uma oposição de esquerda a esse
governo ajustador, precarizador, aliado ao agronegócio e destruidor do que
resta dos biomas brasileiros, que cada vez mais abre espaço e adota posições da
própria extrema direita. Essa oposição de esquerda não pode cair no erro dos
setores que em 2016 se tornaram lavajatista, como o PSTU ou o MES/PSOL. Esse
último por sua vez consegue oscilar entre a adaptação ao lavajatismo entre
2015/18 com a adaptação à Frente Ampla e a integração do PSOL ao governo.
O PT não é como qualquer outro partido
burguês normal. Para que ele conclua sua transformação nesse sentido, são
necessários ainda grandes processos de luta e de reorganização da classe
trabalhadora e uma alternativa que o supere pela esquerda. Por ora, para
construir essa alternativa, é preciso saber combater os ataques da burguesia ao
PT de forma independente, já que em geral visam o que resta de operário neste
partido, que não quer se defender, ao menos não com os métodos da classe
trabalhadora que ele há muito tempo abandonou. A experiência histórica já
mostrou que os golpes da direita e da burguesia por si só são impotentes para
destruir o PT, ao contrário, cada ataque que sofre da extrema direita acaba por
reabilitar o PT como a “esquerda realmente existente” aos olhos de amplos
setores da sua base tradicional e inclusive da juventude.
·
O fenômeno do
transformismo petista…
Um dos conceitos de Gramsci mais presentes
nas discussões sobre a história do PT sem dúvida é o de transformismo, para dar
conta de um partido que surgiu da classe trabalhadora e que subiu ao poder
representando a hegemonia às avessas descrita por Chico de Oliveira. No
entanto, não raras vezes a ideia de transformismo é tomada parcialmente ou de
maneira equivocada, já que em Gramsci aparece ligada a outro conceito forte, o
de revolução passiva.
O transformismo, no caso brasileiro, sem
revolução passiva, é marcado por essa conversão política, seja de indivíduos,
seja de todo um setor ou fração de classe, que passa de ocupar a posição dos
radicais para aderir aos conservadores ou moderados, que ocorreu somente de
maneira subsidiária nos anos oitenta e noventa. Essa afirmação contradiz grande
parte das leituras que falam em transformismo no PT, dado que é evidente a
mudança operada no partido dos anos oitenta para os anos noventa. Só que não se
tratou de transformismo, não houve mudança significativa na posição social,
programática ou ideológica dos núcleos dirigentes do PT. O salto à direita se
deve mais à mudança operada no regime político. Por fora do regime ditatorial,
a direção reformista do PT foi parte da construção do pacto social de 1988 e da
construção da chamada Nova República. Lula e a direção majoritária do PT foram
sempre defensores da ordem. Primeiro nos anos convulsivos da fundação e do
ascenso nos anos oitenta, trata-se de conter a radicalização de massas e
garantir a transição segura para a burguesia. Depois, trata-se de garantir, a
partir da oposição, a estabilidade do novo regime democratico neoliberal
surgido do pacto de 1988 e do Consenso de Washington de 1992.
O grande processo de transformismo do PT, no
sentido do seu aburguesamento, da passagem do reformismo operário e grevístico
ao reformismo burguês e administrativo vai se dando molecularmente ao longo dos
anos noventa, a partir da gestão das prefeituras e dos governos de estado e o
“jeito petista de militar” vai dando cada vez mais lugar ao “jeito petista de
governar”, que termina de tomar forma com o lulismo.
No governo, o PT perde completamente os
traços de partido militante, que foi sua característica distintiva nos anos
oitenta, e passa a subsistir de maneira atenuada como parte do movimento
petista nos anos noventa. Hoje, pouco ou nada restou do velho militante petista
que arriscou a vida na formação do partido e nas grandes greves combativas. O
PT, do ponto de vista da composição social, mudou completamente. As lideranças
se aburguesaram e são sócias de empresas, ganham milhões com palestras e tem
suas poupanças milionárias aplicadas em títulos da dívida pública, enquanto o
grosso da militância é de funcionários, seja das administrações, dos mandatos,
dos sindicatos ou dos movimentos sociais. O trabalhador real, aquele que
trabalha, já não militante petista, ou quando se torna, logo também se
transforma em funcionário. Não resta nada de esquerda aí e a aproximação do
PSOL ao PT no momento em que esse não só está morto como partido de esquerda,
mas que apodrece a olhos vistos, mostra como a evolução do PSOL realmente
concentra todos os males do PT (incluído um transformismo mais acelerado e
alienante) sem nenhumas das suas qualidades - a composição operária na sua origem
e a sua ampla base social na classe trabalhadora tradicional.
Esse morto ainda caminha graças aos ataques
da extrema direita e da ausência de uma alternativa à sua esquerda, o PSOL pela
sua adaptação ao próprio PT, e o PSTU pela sua concepção que radicaliza a ideia
morenista de que todo movimento de massas independente das suas demandas e das
suas direções pode desencadear revoluções, que o levou a ser parte da esquerda
lavajatista em 2016 e que hoje o leva à adaptação sindical. Pois é o que mais
interessa ao bolsonarismo e ao mal chamado “centro neoliberal” que o PT continue
sendo sempre a “esquerda realmente existente”, que pode ser chutada por eles
como um cachorro morto, muito hábil para impedir o surgimento de novas
alternativas, mas que há muito tempo não tem dentes para morder.
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E a batalha por uma nova
esquerda, operária, revolucionária e comunista
Podemos decretar mil vezes a morte do PT como
partido de esquerda. Enquanto não formos capazes de organizar uma alternativa -
nesse momento traduzida numa forte oposição de esquerda, política, social,
sindical e intelectual ao governo do PT - o historiador ainda poderá argumentar
que essa é a única esquerda realmente existente. Só que os historiadores não
fazem a história. Cabe aos setores ativos da nossa classe - que está nas lutas
do cotidiano em todas as frentes de batalha, vendo como em cada uma delas, em
cada sindicato e movimento social o PT atua contra o movimento e na defesa do
seu governo de aliança com financistas e latifundiários - enterrar nossos
mortos e abrir caminho para o novo.
A crise pela qual passa o PSOL nesse momento
é uma das crises associadas a esse grande processo histórico de experiências da
classe trabalhadora e da juventude com o PT e com Lula. É verdade que a classe
não vai abandonar a ferramenta com tanto custo construída, por mais enferrujada
e carcomida que se encontre, se não vislumbrar uma possibilidade superior. Só
meia verdade, no entanto. Pois se ninguém levantar a voz para proclamar a morte
do PT e de Lula e se declarar como uma oposição de esquerda inimiga e
irreconciliável com esse governo, se ninguém convocar a luta contra o Arcabouço
Fiscal, o Plano Safra e todas as medidas neoliberais desse governo, sempre será
essa a esquerda existente.
Fonte: Esquerda Diário
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