Acervo da pandemia: a luta por memória,
justiça e reparação
No último dia 12 de março, completaram-se 5
anos da primeira morte por coronavírus no Brasil. Ocasião na qual o Instituto
Sou Ciência, da Universidade Federal de São Paulo, aproveitou para lançar o
Acervo da Pandemia de Covid-19, em evento realizado na Escola Paulista de
Medicina, na zona sul da capital paulista, e transmitido online. O acervo é um
trabalho de professores e pesquisadores desta instituição, do Centro de
Pesquisas em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo (Cepedisa/USP), da
Associação de Familiares de Vítimas da Covid (Avico) e conta com apoio do
governo federal através do MCTI e do Finep. Em seu site, também creditam-se
contribuições dos podcasts Medo e Delírio e Brasília e Camarote da República.
Diante de um auditório cheio, os responsáveis
pelo Acervo foram enérgicos na condenação do governo Bolsonaro, cuja conduta é
tratada como indiscutivelmente criminosa. Enquanto o relatório final da CPI da
Pandemia dorme nas gavetas do atual Poder Executivo, sua construção foi um
grito por justiça de quem jamais esquecerá de uma crise sanitária diretamente
responsável por pelo menos 712 mil mortes.
“O material coletado, arquivado e
disponibilizado na forma de acervo público e mapa multimídia busca contribuir
com o debate público e gerar novas colaborações, incluindo: campanhas
pró-vacina e em defesa do Sistema Único de Saúde (SUS) e da ciência; apoio a
processos judiciais e de reparação, que podem se beneficiar do uso dessas
evidências; ações de memória, museais e educativas; iniciativas curriculares,
para extrair aprendizados da pandemia para novos profissionais; além de servir
como base para pesquisas de futuros historiadores que se debruçarão sobre esses
anos terríveis da história brasileira”, resume o site oficial.
Na reflexão do historiador Fernando Atique,
“temos de monumentalizar não só aquilo que é apreciável, mas aquilo que é
doloroso também. Só quem sofreu perdas ou sequelas pode perceber que não parece
que já se foram 5 anos. A covid-19 foi fenômeno social causado pela crise
ecológica, com impactos por toda a sociedade”.
• Memória
e indignação
A tônica do evento de apresentação do Acervo
da Pandemia foi sobretudo de indignação. Esse era o sentimento expressado por
Soraya Smaili, reitora da Unifesp no momento da crise sanitária e presidente do
Sou Ciência, e principalmente por parentes das vítimas, que tomaram o microfone
após as falas de especialistas diversos.
“Tínhamos 30 leitos de UTI ocupados quando a
pandemia começou e logo no primeiro mês chegou-se a 160. O governo não deu
apoio nenhum a estudos e pesquisas. O Ministério da Educação nos chamou de
zebras gordas. As respostas foram propositalmente lentas. Apresentamos estudos
na CPI da Pandemia que demonstraram a intenção de não agir do governo”,
desabafou Soraya.
Quanto ao ex-ministro da Educação, Abraham
Weintraub, que se caracterizou por falas provocativas a alvos variados e
desfinanciamento do ensino superior público, foi demitido da Unifesp ao lado de
sua esposa em 2024, por conta das centenas de faltas injustificadas. Isso
porque recebeu convite para trabalhar num milionário cargo de diretoria do
Banco Mundial em Nova York enquanto o Brasil contava milhares de mortos. No
início deste ano, foi derrotado na justiça em ação na qual tentava recuperar o
emprego.
Ao se referir ao estudo, Soraya Smaili traz à
tona o trabalho do Cepedisa-USP, que ainda em 2021 fez um exaustivo trabalho de
compilação de todas as medidas tomadas pelo governo federal e seus ministérios,
no sentido de sabotar qualquer política sanitária recomendada pela comunidade
científica.
Como definido na página do Acervo e reiterado
no debate público, “houve um necrossistema que operou na Pandemia. Mas houve
resistência das instituições do país, a exemplo do que aconteceu nas
Universidades federais”. Repleto de vídeos, áudios, documentos oficiais, o
Acervo reforça a intencionalidade de Jair Bolsonaro e seus principais
subordinados no Ministério da Saúde.
Para os presentes na Unifesp, a pandemia foi
um crime cuja envergadura não pode permitir os velhos pactos de acomodação. A
agressividade e violência discursiva do bolsonarismo estão diretamente
relacionadas à mortalidade. Já a letargia do Estado, inclusive no governo Lula,
é fator que causa notória indignação nos envolvidos na luta por justiça e
reparação.
“Temos o maior hospital federal do Brasil e
não recebemos apoio do governo, padrão que se repetiu pelo país.
Epidemiologistas numerosos afirmam que metade dos 700 mil mortos poderiam ter
sido salvos”, afirmou Pedro Arantes, professor da Unifesp.
Para além da estrutura de saúde pública e sua
ação organizada, uma dor que ainda se sente é a do efeito da desinformação
dentro das famílias que perderam pessoas para a covid. “Trabalho em hospital
que foi referência de covid-19 na pandemia, e meu pai faleceu neste momento.
Temos motivos pra seguir em frente. Eram muitas batalhas, inclusive dentro de
nossas famílias, onde o negacionismo repercutiu. O governo tomou várias ações
que geraram o caos, a exemplo de seu discurso de que não tinha responsabilidade
na liderança política. Optou pela morte, em especial das classes
trabalhadoras”, atacou Rosângela Silva, assistente social e membro da Avico.
“A nossa luta cobra um preço alto. Amigos,
família, saúde mental, financeira… Não somos um movimento social reconhecido
pelo Estado ou partidos. Mas provamos nosso valor ao ser parceiros do
Ministério Público Federal em três inquéritos diferentes sobre a gestão da
pandemia que, se Deus quiser, se tornarão processos contra o governo Bolsonaro”,
complementou.
Na reta final, o microfone foi aberto para o
público e, como se pode ver no vídeo, outras pessoas manifestaram as dores
ainda presentes em suas vidas e também um sentimento de frustração com o
Estado, tanto na figura de Augusto Aras, então procurador geral da República,
como do próprio governo Lula. Por enquanto, nenhum processo foi aberto em
relação aos 71 indiciados no relatório final da CPI da Pandemia.
• Comunicação
em saúde, um novo desafio
Para além da punição ao negacionismo e dos métodos
violentos representados por um governo que fez ameaças variadas a profissionais
da saúde, Luana Araujo, médica celebrizada à época da pandemia justamente por
fazer frente à desinformação oficial com grande alcance em redes sociais,
destacou a importância em se ampliar os instrumentos de informação em saúde.
“Precisamos de comunicação em saúde. Depois
da CPI, fui projetada a este papel, até porque precisava me defender das
acusações e difamações contra a minha pessoa. E agora vejo que precisamos até
incluir a disciplina de comunicação em saúde em nossa formação médica”,
refletiu. “O Acervo da Pandemia não é só um repositório de documentos, mas o
registro histórico e testemunho de um dos momentos mais difíceis da história do
Brasil”, resumiu Soraya Smaili.
Fonte: Por Gabriel Brito, em Outra Saúde
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