“Se queremos construir territórios livres de
transgênicos e agrotóxicos, acabemos também com a violência às mulheres”
Violência, dupla jornada, desvalorização do
trabalho, falta de acesso a políticas de apoio ao cuidado, silenciamentos. A
esses problemas, que afetam a maioria das mulheres, acrescentem-se dificuldades
extras, como a disputa pela terra, a exposição à contaminação por venenos e a
exclusão dos padrões de beleza impostos pela sociedade patriarcal: eis um
retrato mais completo das condições de opressão que atingem as mulheres camponesas
no Brasil. A resposta a esse cenário vem sendo produzida com uma crescente
organização coletiva, que há décadas tem conquistado espaço no interior dos
movimentos sociais rurais e incidido sobre as formas de vida no campo e sobre
as políticas públicas. Nesta entrevista, a engenheira agrônoma Miriam Nobre,
militante da Sempreviva Organização Feminista (SOF) e da Marcha Mundial das
Mulheres e integrante do Grupo de Trabalho de Mulheres da Articulação Nacional
de Agroecologia (ANA), dá exemplos de reflexões e pautas que têm orientado a
concepção de um “feminismo camponês popular”, destaca a luta das mulheres para
terem seus conhecimentos e suas práticas de agricultoras reconhecidas e fala
sobre a relação das mulheres com a agroecologia.
LEIA A ENTREVISTA:
·
Vários movimentos
camponeses têm criado espaços para o debate e a organização específica das
mulheres militantes do campo. A que se devem essas iniciativas e por que elas
têm se mostrado necessárias?
[Essas iniciativas] não são recentes. Eu acho
que são constitutivas da própria organização dos movimentos. O movimento de
mulheres agricultoras iniciou com muita força nos anos 1980, atuando inclusive
na Constituinte para que os direitos das mulheres rurais fossem considerados.
As mulheres agricultoras inventaram a previdência para o sistema de seguridade
social para o campo, porque já identificavam a lacuna que existia por ele ser
estruturado pensando nos trabalhadores assalariados, com carteira assinada, e
não dar conta da realidade no campo. Desde a construção do Movimento Sem Terra
se teve a preocupação de ter a ciranda, que existe para o cuidado das crianças
e tem uma perspectiva de envolver a família toda no movimento, mas também tem
um impacto muito grande em garantir a participação das mulheres. O que eu quero
dizer é que as mulheres agricultoras que estão na base desses movimentos estão
na luta há muitos anos. E foram se constituindo para colocar a sua pauta, que
não era só uma questão de ter representação das mulheres. No início da Via
Campesina, que é a organização internacional da qual vários movimentos fazem
parte, essa questão também estava colocada. Em meados dos anos 2000, houve a
decisão de que nos processos internacionais a representação deveria ser
paritária. O que foi um pouco posterior foi a chegada das mulheres ao setor de
produção dos movimentos. E eu acho que, quando aconteceu, isso foi bastante
coincidente com a afirmação da agroecologia como constitutiva desse caminho
camponês. Nesse processo inicial de organização das mulheres, tinha muito a
questão de elas próprias se identificarem como agricultoras. Até hoje as
mulheres rurais chegam ao posto de saúde e a pessoa que está fazendo a ficha
nem pergunta qual a profissão delas e já coloca: ‘do lar’. A luta para que as
mulheres sejam reconhecidas na sua profissão de agricultora é constitutiva
desde o início dessa articulação nacional. A questão é que ser agricultora era
reconhecer as atividades que as mulheres já faziam nas suas unidades de
produção e que não eram consideradas como agricultura justamente porque não
estavam colocadas para fora. Muitas vezes suas atividades de agricultoras se
davam onde elas tinham mais domínio, mais propriedade, mais possibilidade de
decisão, que é na produção ao redor da casa, no quintal, na horta, no pomar, na
criação de pequenos animais. Mas isso estava invisível para o mundo externo e
para o interno também. O que muitas vezes acontecia era que o setor de produção
[dos movimentos sociais] se estruturava na ideia de melhorar as condições de
comercialização e o acesso a tecnologias para incrementar a produção. Foi a
chegada das mulheres a esses setores que, do meu ponto de vista, complexificou
a própria visão de produção dos movimentos sociais, ampliando esses espaços
[para incluir] a produção para o autoconsumo. No âmbito dos movimentos que
fazem parte da Via Campesina, isso também vai se juntando [ao esforço em torno
da] conceituação do princípio da soberania alimentar, a ideia de que os países
e as comunidades podem decidir como se alimentar e suas formas da produção.
Porque quando pensa em soberania alimentar, você está pensando na política
internacional, na política nacional, mas também no próprio território.
·
Os movimentos sociais do
campo têm utilizado o conceito de “feminismo camponês popular”. O que isso significa?
Por que é preciso adjetivar o feminismo para dar conta da realidade do campo?
Eu posso dar a minha opinião, mas acho que
essas mulheres têm uma propriedade muito maior para contar a história do ponto
de vista delas. Essa ideia de adjetivar o feminismo, na verdade, tem o sentido
de ampliar o feminismo, mostrando a diversidade dos sujeitos que o compõem. E
coloca o desafio estratégico de se ver, a partir de tudo isso, como é que se
consegue permanentemente ir reconstruindo as unidades que dão conta dessa
diversidade toda. Eu me lembro de ter bastante conversas com as mulheres da Via
Campesina sobre a ideia de feminismo e, num primeiro momento, elas terem
reticência a isso. O feminismo parecia uma ideia construída a partir da
experiência das mulheres urbanas. Eu me lembro de uma conversa em que elas
reivindicavam, por exemplo, não só o processo do plantio mas também da
preparação do alimento, a cozinha, enquanto, a partir da crítica da divisão
sexual do trabalho, o feminismo questionava muito essa ideia de
responsabilização das mulheres unicamente pelo cuidado da família, da casa e da
alimentação. Essa conversa levou à reflexão sobre outras coisas. Por exemplo,
sobre como o fato de as mulheres terem tido essa experiência [da preparação do
alimento, do cuidado…] – não porque é um dom da natureza, mas porque,
culturalmente, foram responsabilizadas por essa tarefa –, fez com que elas
tivessem um conhecimento muito grande sobre isso. E a gente tem que reivindicar
esse conhecimento. Então, como é que a gente faz para não responsabilizar as
mulheres que não vivem isso como uma obrigação ou uma sobrecarga? Eu estou
contando essa história para dar o exemplo de como, a partir da experiência
dessas mulheres de reivindicar a cozinha como um lugar de criação e de expressão,
onde elas queriam ficar mais – e não menos – tempo, a gente foi problematizando
a forma como o sistema alimentar acontece em nossas sociedades, fugindo de
respostas fáceis. Como é que o capital responde a essas coisas?
Terceirizando [o trabalho doméstico e do cuidado] para outras mulheres
contratadas, ou para dentro da família, para aquelas que estão numa posição
mais fragilizada. Ou com alimentos ultraprocessados. Como é que a gente foge
disso? Nesse processo, refletindo juntas, elas entenderam, por exemplo, que a
vertente feminista socialista tinha muito a contribuir e dialogar com elas, que
era uma vertente que passava pela experiência de construção de um sujeito
político das mulheres trabalhadoras que querem a superação do sistema
capitalista, que veem como o capitalismo e o patriarcado estão
interrelacionados, um alimentando o outro, junto também à questão racial e ao
colonialismo. Então, não é adjetivar simplesmente no sentido de criar várias
correntes [do feminismo] mas de ter um processo político em termos de
organização, reflexão e elaboração, de construir o que são as bases que
identificam essa experiência que elas têm hoje e que elas querem, o devir. Para
essas mulheres, foi importante isso se constituir como uma corrente, com um
nome, como uma teoria que se elabora a partir dos próprios sujeitos. As
políticas em relação à violência contra as mulheres foram muito pensadas
numa estrutura de serviços de delegacia, que acontece em um espaço urbano. Tem
que pensar isso no espaço rural.
·
Quais são as principais
pautas desse feminismo camponês popular?
Uma questão importante que elas colocaram foi
essa ideia de alimentação saudável. Colocam também a crítica à forma como o
Estado desenvolve uma política que impõe os agrotóxicos como condição para evitar
desequilíbrios vários que se dão pelo próprio modelo da monocultura. Outra
coisa que eu acho bem importante que elas pautaram dentro da Via Campesina foi
a defesa das sementes crioulas. Começaram falando em ‘sementes, patrimônio da
humanidade’. Mas aí chegaram em algum evento internacional em que as empresas
falaram: ‘bom, então, se é da humanidade, nós também somos a humanidade’. Aí
elas fizeram a formulação das ‘sementes, patrimônio dos povos a serviço da
humanidade’, ressaltando que esse processo de seleção, escolha, guarda e troca
das sementes é cuidado pelos povos e em muitos povos são as mulheres que têm
essa responsabilidade. A outra questão é pensar plenamente as mulheres como
sujeitos. Se a gente quer construir territórios livres de transgênicos e
agrotóxicos, nós também queremos territórios livres de violência contra as
mulheres. Essa é outra questão que elas pautam: como essas relações
patriarcais, na sua manifestação extrema, que é a violência psicológica, física
e patrimonial contra as mulheres, não faz sentido numa ideia de sociedade que a
gente quer construir e que resgata valores camponeses mas também transforma o
sentido de pensar os sujeitos em sua plenitude. E isso também tem consequências
práticas porque as políticas em relação à violência contra as mulheres foram
muito pensadas numa estrutura de serviços de delegacia, que acontece em um
espaço urbano. Tem que pensar isso no espaço rural. Eu me lembro da Adriana
Mezzadri, do MMC [Movimento de Mulheres Camponesas], falando sobre como elas
estavam observando uma mudança no padrão de crueldade de como a violência
acontece. Aproximando da ideia de luta feminista de que a [antropóloga Rita]
Segato fala, de [entender] o controle sobre os territórios expresso no controle
sobre o corpo das mulheres, a crueldade não é gratuita, tem um sentido de
marcar o poder sobre aquele espaço, naturalizando o corpo das mulheres como
parte daquele território. E eu acho que tem no campo da saúde também uma
reflexão sobre as plantas medicinais, que coloca em xeque a questão da
apropriação dos conhecimentos de plantio, manejo e extração das plantas
medicinais pelas companhias transnacionais, que é coisa da biopirataria. E isso
traz também o debate de que essa seja uma política pública, incorporada no SUS
[Sistema Único de Saúde] e que se crie a possibilidade de compra direta [das
agricultoras e agricultores] – tipo um PAA [Programa de Aquisição de alimentos]
de plantas medicinais. Mas há também o vínculo das agricultoras que estão
produzindo aquelas plantas com o atendimento na saúde pensando num processo de
cura que seja de reconexão com a natureza.
·
São conhecidas as
opressões que recaem sobre as mulheres, envolvendo violência, jornadas duplas
ou triplas, responsabilidade sobre o cuidado com os filhos e a família, desvalorização
no trabalho e silenciamentos, entre outros. Existem diferenças e
especificidades dessas expressões do patriarcado na realidade do campo no
Brasil?
Reivindicar a beleza do corpo que trabalha é
parte da luta das mulheres camponesas, mas também das empregadas domésticas e
de muitas trabalhadoras Uma grande questão é o acesso à terra. Antigamente, na
pontuação das famílias acampadas [à espera de assentamentos da Reforma
Agrária], homens contavam mais pontos que mulheres. Então, teve toda uma batalha
para igualar as pontuações. Depois, [a luta foi] para que o título [de
assentamento] saísse no nome do casal e não do homem, também no nome do casal
homoafetivo, e para que, nos casos de separação, a terra ficasse com quem
ficasse com os filhos – mas aí depois a gente teve toda uma batalha porque,
muitas vezes, os homens reivindicavam ficar com os filhos para poder ficar com
a terra. Além disso, mesmo dentro de cada unidade de produção, muitas vezes as
mulheres ficam com áreas menores ou marginais. E a gente percebe isso mais em
relação às mulheres jovens. É importante pensar essa possibilidade de as
mulheres jovens irem experimentando ser agricultoras. Porque, no começo, as
crianças estão envolvidas com as atividades em geral, mas aí vai tendo uma divisão,
em que as meninas vão cuidar dos irmãos menores e das atividades da casa, e os
meninos começam a fazer seus experimentos [com a terra], vão começando a ser
agricultores. As meninas que querem ser agricultoras têm que ter um caráter
muito forte porque enfrentam muitas dificuldades. Outra coisa que elas colocam
é a imposição de padrões de beleza, que, no geral, são de mulheres que não
trabalham. Porque, como agricultora, meu corpo vai se desenvolvendo de uma
determinada maneira: o tamanho da minha mão, o tamanho da minha perna, essas
coisas me constituem como agricultora e estão fora do padrão de beleza imposto
pelo patriarcado. Reivindicar a beleza do corpo que trabalha é parte da luta
das mulheres camponesas, mas também das empregadas domésticas e de muitas
trabalhadoras. As mulheres rurais, as mulheres camponesas, de comunidades
tradicionais têm essa percepção de que o jeito de dar conta da vida é estando
em coletivo. O assunto da violência tem características diferentes. O seu
sustento ali [no campo] é feito junto à família, então, você fica mais
capturada pela dinâmica familiar. Eu vejo muitas mulheres que estão numa
relação ruim e não conseguem sair porque pensam em tudo que investiram de
energia de vida para constituir aquele sítio, aquele espaço. É uma separação
que não é só conjugal, é uma mudança do modo de vida. Além disso, os
assentamentos podem ter dinâmicas diferentes, mas muitas comunidades ainda
tratam muito mal mulheres sozinhas. A gente foi uma vez num mutirão de mulheres
ao sítio de uma mulher que era sozinha e ela falou sobre a dificuldade que
tinha para contratar trabalhador. Ela participava de uma organização mista e
contou que quando um mutirão da organização foi lá, ela não conseguiu que os
homens plantassem do jeito que ela gostaria… E ela ficou muito impressionada de
ver como o mutirão de mulheres funcionou para fazer o que ela estava querendo,
tinha respeito pela vontade dela sobre o que fazer naquela terra. Ainda existe
um machismo muito grande, de não confiar na habilidade das mulheres como
agricultoras e desqualificar suas iniciativas. Por isso a importância dessa
organização coletiva. A coisa boa disso é que, no campo, eu vejo as mulheres
muito mais organizadas coletivamente, no político, mas também na sua família,
em relações de parentesco, do que na cidade. Veja a Marcha das Margaridas: a
maior manifestação que a gente tem no Brasil, que envolve um processo
organizativo de muito tempo e muita dedicação. As mulheres rurais, as mulheres
camponesas, de comunidades tradicionais têm essa percepção de que o jeito de
dar conta da vida é estando em coletivo, em coletivo de mulheres. E a gente
consegue que esses coletivos sejam organizações políticas, que incidam na
conjuntura, que construam política pública, que modifiquem o jeito como a sociedade
funciona. Essas ideias conservadoras vão permeando inclusive as nossas
organizações, por isso é preciso combatê-las dentro do nosso campo.
·
A violência no campo
cresceu nos últimos anos no Brasil. O último relatório da Comissão Pastoral da
Terra mostra um aumento de violência contra mulheres no campo de 2022 para
2023. E, segundo o anuário brasileiro de segurança pública, 1,9% dos
feminicídios e 3,3% de outros crimes violentos (inclusive 3,2% dos estupros)
contra mulheres aconteceram na área rural. Qual o desafio dos movimentos de
mulheres em relação a essa realidade?
Tem uma coisa que a gente já vem percebendo
há alguns anos que é a utilização da violência contra as mulheres como uma
forma de quebrar a unidade e a coragem da comunidade que está em resistência.
No ano passado, teve o assassinato da mãe Bernadette e daquela Pajé da Bahia
[Maria de Fátima Muniz, conhecida como Nega Pataxó]… O assassinato de mulheres
que têm esse lugar de cuidado do conjunto da comunidade é uma forma de
desestruturar a comunidade. Tem também o uso da violência contra as mulheres
para desmoralizar os homens. É essa ideia patriarcal de que as mulheres
pertencem aos homens e, então, num conflito, uma forma de desmoralizá-los é
destruir as mulheres que são vistas como extensão deles próprios. Muitas vezes
a violência é política – porque as mulheres estão identificadas pelo seu papel
político –, mas é ‘vendida’ como se fosse violência doméstica, passional. Mas
tem também a violência patriarcal familiar. E isso eu acho que tem a ver com o
aumento do conservadorismo na nossa sociedade, essa ideia da família
tradicional, do papel do homem e da mulher, do que as mulheres têm que cumprir,
da maternidade colocada como destino. Todas essas ideias se tornaram tão
hegemônicas que vão entrando também nos setores populares e de esquerda. Eu
vejo a manifestação [desse conservadorismo] em lideranças, pessoas que você não
esperava que tivessem essas ideias de comportamento, de posse, de controle, o
chamado ciúme. Ciúme, na verdade, é a ideia de que aquela pessoa pertence a
mim, eu decido como ela tem que se comportar, o que ela tem que fazer, como ela
tem que se envolver e, se ela não corresponde a isso, eu posso agredi-la. Essas
ideias conservadoras vão permeando inclusive as nossas organizações, por isso é
preciso combatê-las dentro do nosso campo. Não adianta só falar da violência
quando ela acontece, a violência é tipo uma manifestação extrema, um sintoma de
um adoecimento muito maior. A gente tem que cuidar, tem que pensar sobre isso.
·
Como as mulheres
contribuem para a construção da agroecologia e como a agroecologia pode
contribuir para a transformação dessas relações desiguais?
A gente trabalha por relações respeitosas
entre as pessoas, entre os não humanos e com o território, então, nenhuma
violência é aceitável. Estando perto de muitas mulheres agricultoras, a gente
vai vendo a forma como elas produzem e o cuidado que elas têm no manejo do
solo, na construção da fertilidade do solo, a diversidade que elas produzem…
Nesses espaços pequenos que têm ao redor da casa, elas plantam tudo misturado.
É impressionante o conhecimento que as mulheres têm dessa combinação entre
plantas, dessa diversidade, de como funciona uma ao lado da outra… O que eu
quero dizer é que as mulheres guardaram e desenvolveram um conhecimento de como
fazer agricultura o mais próximo da natureza possível. Se elas não tivessem
feito isso, talvez a gente não tivesse tantas variedades hoje para continuar
experimentando. Isso tem a ver também com uma coisa curiosa, que é positivar
uma situação de discriminação. Porque na lógica patriarcal, tem essa ideia de
uma família em que o homem é o provedor e a mulher é a cuidadora. O homem tem
que garantir o dinheiro, tem que vender, tem que estar ligado no mercado. Ele é
o agricultor. Inclusive a relação com o Estado, com a assistência técnica, é
dirigida aos homens. As mulheres contam muito dessa situação de discriminação
de o agrônomo bater na porta da casa, ela abrir e ele perguntar: ‘tem alguém em
casa?’. As mulheres têm o entendimento da economia que vai além do vender e
receber o dinheiro. Tem uma agricultora lá da Paraíba, por exemplo, que fala
que às vezes a gente vende galinha caipira para comprar frango congelado. As
mulheres não só guardaram esse conhecimento, como foram observando com bastante
desconfiança tudo que esse pacote tecnológico da Revolução Verde causava de
adoecimento nas suas próprias famílias, no entorno, no ambiente. Quando a
agroecologia chega como um conhecimento estruturado que tem muito a ver com o
conhecimento que elas já têm, com como elas entendem as coisas, faz bastante
sentido e elas se colam mais [nessa perspectiva]. Só que precisava ver, no
movimento agroecológico, como a gente trazia as mulheres para o centro. Porque
a gente também foi vendo o movimento agroecológico reproduzir essa ideia de uma
família patriarcal, de conversar e levar em consideração só o que era
preocupação dos homens. Por isso foi importante as mulheres se auto-organizarem
no movimento agroecológico, para ganharem protagonismo. E nisso entra o
conjunto das questões que preocupam as mulheres, inclusive a violência. Acho
que a Rede Xique Xique, do Rio Grande do Norte, foi uma das primeiras a colocar
dentro da organização, do seu regimento interno, a proibição da violência
contra as mulheres e a expulsão dos integrantes no caso de isso vir a
acontecer. Acho que no segundo ENA [Encontro Nacional de Agroecologia], que foi
lá em Recife, a gente já tinha uma palavra de ordem que era ‘não maltratem as
formigas e nem as mulheres’, colocando a indissociabilidade das relações entre
as pessoas e das pessoas com o território onde elas vivem, [defendendo] que a
gente trabalha por relações respeitosas entre as pessoas, entre os não humanos
e com o território, então, nenhuma violência é aceitável.
·
Queria que você traçasse
um panorama sobre as políticas públicas que existem hoje para a população do
campo, analisando o quanto elas reconhecem ou não a realidade das mulheres
agricultoras.
Eu vou começar com o PAA, o Programa de
Aquisição de Alimentos, que se aproxima muito da forma como as mulheres
produzem. É um programa que começou a ter políticas de ação afirmativa em
relação às mulheres, mas no qual ainda não está colocada, por exemplo, como tem
no PNAE [Programa Nacional de Alimentação Escolar], a possibilidade de compra
dos grupos informais. Eu acho que o PAA tem um papel grande agora, por exemplo,
em relação à questão do aumento do preço dos alimentos e à dificuldade das
pessoas trabalhadoras pobres da cidade de acessarem alimentação de qualidade.
Mas a gente precisa que o PAA tenha um orçamento muito maior e não se pode
naturalizar, como eu já escutei algumas pessoas falando, as iniciativas de
prefeituras e cooperativas conseguindo emendas parlamentares para executar o
PAA. Do meu ponto de vista, isso é um tapa-buraco. O jeito bom de funcionar é
ter uma política nacional com orçamento público que não seja uma resposta
fragmentada, que consiga ser uma proposta de conjunto, olhando para as
diferentes realidades. O programa dos Quintais Produtivos foi uma reivindicação
da Marcha das Margaridas que o governo começou a responder, já teve duas
chamadas. Mas, desde os movimentos sociais, está-se construindo a demanda de
uma política que vai além, que elas estão nomeando como Quintais das Margaridas
para o Bem Viver. O que se propõe a mais é colocar recursos para processos
coletivos porque o programa é bastante focado em recursos para estruturar os
quintais, que são necessários, mas a gente acha que também é importante ter um
acompanhamento técnico político e a possibilidade de intercâmbio e organização
dos espaços coletivos. A agroecologia é um jeito de produzir alimento que
combina saúde do solo à saúde das plantas, dos animais e das pessoas, que olha
para a saúde de forma integral
·
Como você vê a relação
entre agroecologia e saúde?
A primeira coisa é que a gente tem um
problema alimentar gigante. A gente está falando da insegurança alimentar mas
também das doenças decorrentes da má alimentação, do sobrepeso, da obesidade… A
agroecologia é um jeito de produzir alimento que combina saúde do solo à saúde
das plantas, dos animais e das pessoas, que olha para a saúde de forma
integral. Mas além disso, a gente tem que pensar na questão das condições de
vida, na saúde mental. As mulheres falam muito sobre trabalhar na agricultura,
seja no campo ou na cidade, como uma possibilidade de se concentrar, de pensar
as coisas de outra maneira, de esfriar a cabeça, lidando com a questão de saúde
mental de outro jeito. Tem também a questão dos agrotóxicos e das condições de
trabalho. Muitas mães desestimulam as filhas jovens a irem para a agricultura
pensando nas sequelas que ficaram no seu corpo pelo trabalho pesado. A gente
precisa pensar se é possível ter máquinas ou outros instrumentos de trabalho
que diminuam essa penosidade, esse estresse sobre o corpo, sem destruir o solo,
sem utilizar petróleo… Da forma como as mulheres produzem, com tudo misturado,
acho difícil que esse trabalho seja substituído por uma máquina, mas a gente
ainda não colocou as estruturas para pensar em máquinas que funcionem com esses
objetivos. Hoje elas são desenvolvidas para aumentar o ritmo da produção e do
trabalho e não para diminuir a penosidade do trabalho. São opções que a gente
precisa fazer para pensar uma agricultura que seja saudável para quem está
produzindo e para quem está consumindo esse alimento.
Fonte:
Entrevista com Miriam Nobre, à Cátia Guimarães, EPSJV/Fiocruz
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