Os brasileiros que ganham de R$ 4 mil a R$ 46
mil para trabalhar em cruzeiros 'sem folga e férias'
Os navios gigantes que saem diariamente do
Porto de Santos fizeram parte da infância de Neil Costa, de 32 anos. Natural da
Baixada Santista, ele cresceu vendo as embarcações sumirem no meio do oceano,
sem imaginar que um dia poderia trabalhar em uma delas.
Tudo mudou após Neil voltar de um estágio de
um ano em uma rede de hotéis nos Estados Unidos.
A experiência fez com que ele, turismólogo de
formação, ficasse ainda mais apaixonado pela possibilidade de conhecer novas
culturas.
Mas viajar pelo mundo exigia dinheiro, e foi
então que surgiu a possibilidade de trabalhar a bordo.
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"Um dia, minha mãe estava lendo jornal e
viu um anúncio sobre vagas de trabalho em uma empresa que fazia cruzeiros. Ela
deixou em cima da minha cama e eu pensei: por que não tentar?", conta.
Em janeiro de 2015, Neil fechou seu primeiro
contrato de oito meses para trabalhar na equipe de animação de um cruzeiro da
empresa Royal Caribbean, com mais de 6 mil passageiros.
Desde então, já se foram mais de dez
contratos em oito tipos diferentes de navios.
"A primeira vez que embarquei, eu não
sabia o que esperar, não fazia ideia de que o navio era praticamente uma
cidade. Fiquei impressionado com a operação", lembra Neil, que completa
dez anos trabalhando em cruzeiros em 2025.
• 'Conheço
72 países e comprei meu apartamento'
A vida a bordo foi a maneira que Neil encontrou
para conhecer vários países sem gastar muito.
"Fiz temporadas no Caribe, na Europa,
Brasil, Austrália, países nórdicos. Visitei locais que jamais visitaria se não
fosse pelo meu trabalho", conta.
Com o tempo, ele percebeu que o trabalho em
alto-mar também poderia lhe proporcionar uma carreira de sucesso.
Em 2021, após cinco anos trabalhando na
equipe de animação, Neil foi promovido a gerente de atividades. Dois anos
depois, recebeu uma nova promoção e se tornou diretor assistente de cruzeiros.
Ele é responsável por coordenar o
entretenimento de um dos maiores navios do mundo.
"É uma operação gigantesca, entre
planejar, executar e ainda subir no palco como comunicador. Hoje eu cuido desde
a organização de bingos até espetáculos da Broadway", afirma Neil, que tem
como objetivo se tornar diretor de cruzeiro.
"Quero fazer carreira e continuar
crescendo profissionalmente. Trabalhar a bordo me deu a oportunidade de pagar
por vários sonhos que eu tinha. Me permitiu conhecer 72 países e conquistar meu
apartamento", destaca.
• Salários
podem chegar a R$ 46 mil
A parte financeira é um dos principais
atrativos destacados por quem trabalha em cruzeiros — o que envolve funções
diversas, desde a faxina a apresentações de música.
Segundo Marcelo Del Bel, recrutador-chefe da
Infinity Brazil, uma das principais agências de recrutamento para cruzeiros na
América do Sul, os salários são pagos em dólar e variam de US$ 700 a US$ 8 mil
(R$ 4 mil a R$ 46 mil na cotação atual), dependendo da vaga e da empresa.
A média salarial gira em torno de US$ 1,2 mil
(cerca de R$ 6,9 mil) para trabalhar na cozinha e restaurante, as funções com
mais vagas.
Os custos de vida dentro do navio também são
baixos, uma vez que acomodação e alimentação são fornecidas gratuitamente pelas
empresas, além de outros benefícios como academia e lazer.
"A pessoa vai gastar basicamente com
bebida no bar, internet, se quiser, ou com produtos para consumo próprio, como
shampoo e sabonete. Mas o preço para os tripulantes é infinitamente menor do
que o cobrado dos passageiros do navio", afirma Del Bel.
Entretanto, ele destaca que pessoas que
buscam esse trabalho tendo como grande motivação conhecer outros países podem
acabar se frustrando.
"Não é sempre que a pessoa vai poder
descer no porto. Há regras de segurança que estipulam que 30% da tripulação
precisa ficar no navio quando ele atraca", explica Del Bel.
O recrutador destaca também a importância do
planejamento financeiro, já que funcionários de cruzeiros costumam trabalhar
por contratos de seis a oito meses.
Quando um contrato acaba, é comum ficar cerca
de dois meses esperando o início do próximo — e, nesse intervalo, não há
salário.
• 'Quero
juntar R$ 1 milhão e viver de renda'
Foram as vantagens financeiras que fizeram
com que o músico Luca Alves, de 28 anos, decidisse mudar os planos
profissionais para trabalhar a bordo, em 2021.
Na época, ele se preparava para fazer um
mestrado no exterior, quando um amigo falou sobre uma vaga para tocar como
guitarrista na banda de um cruzeiro.
Inicialmente, Luca recusou, mas, após pesar
os prós e contras, resolveu arriscar.
"Não ia precisar pagar aluguel, eu teria
um público sempre presente me assistindo tocar, além de ganhar em dólar",
diz Luca.
Em menos de um mês, o músico fez os cursos
exigidos pela empresa, tirou o visto e embarcou para o primeiro contrato,
ganhando um salário mensal de cerca de US$ 2,5 mil (R$ 14,3 mil).
"Foi a primeira vez que saí da casa dos
meus pais. Saí de lá para viver no meio do oceano", conta Luca, que no fim
de abril embarca para o sexto contrato a bordo e hoje já não pensa mais em ter
uma carreira acadêmica.
"Pretendo ficar pelo menos mais uns dez
anos trabalhando a bordo, juntar dinheiro e conhecer o mundo. Quero juntar R$ 1
milhão, ter o máximo investido, e viver de renda", afirma.
Atualmente, Luca é diretor musical de um trio
de jazz e ganha aproximadamente o dobro do que recebia no primeiro contrato.
Apesar de o salário ainda ser o principal
motivo para trabalhar em cruzeiros, ele diz que se sente mais valorizado dentro
dos navios.
"A gente vê muitas pessoas emocionadas,
cantando as músicas que a gente toca, dançando. É muito diferente do trabalho
em terra, onde o público nem sempre está interessado", conta Luca.
"No cruzeiro, as pessoas pedem música,
jogam rosas no palco, tratam a gente como celebridade."
Ele também relata ter uma rotina diferente da
maioria dos tripulantes, que trabalham sete dias seguidos, sem folga.
"Antes de embarcar, a gente ensaia por
uma semana em um estúdio em Nova York. Quando chega no navio, o trabalho é
sempre à noite, fazendo, em média, cinco shows [por dia, de 45 min cada] em uma
escala 6 x 1", destaca.
• 'Não
tem folga, feriado ou férias'
O trabalho marítimo, como o realizado em
cruzeiros, é regulamentado por tratados internacionais.
De acordo com a Convenção sobre Trabalho
Marítimo (MLC 2006), um tripulante pode trabalhar, no máximo, 14 horas por dia
e deve ter 77 horas de descanso na semana.
De acordo com Del Bel, é preciso estar ciente
de que as jornadas de trabalho a bordo são intensas e que a rotina é diferente
de um trabalho de carteira assinada.
"A pessoa não vai ter folga, nem
feriado, nem 30 dias de férias. Na maioria das funções, ela vai trabalhar em
média 10 horas por dia, 7 dias na semana", explica.
No caso de Yasmin Stampe, de 26 anos, que há
três anos trabalha como guia de excursões em cruzeiros, as jornadas diárias
chegam a 14 horas e muitas vezes são imprevisíveis.
"Diferente de quem trabalha na cozinha,
não tenho uma rotina fixa. Não sei que horas vou trabalhar semana que vem e nem
quais passeios vou fazer", afirma Yasmin.
"Meu dia depende das excursões que os
passageiros escolhem, e eu me organizo a partir disso."
Isso também significa que em alguns dias ela
trabalha mais, em outros menos.
Além disso, Yasmin não tem folgas durante os
meses de contrato: são pelo menos sete meses ininterruptos a bordo, podendo
chegar a nove quando a temporada é fora do Brasil.
Mesmo com o ritmo intenso, a guia de
excursões vê vantagens: "A maior delas é poder viajar pelo mundo sendo
paga para isso".
"Claro que não é como se eu estivesse de
férias. Mas, mesmo com horários restritos, dá para sair do navio e conhecer
vários países", continua Yasmin, que quer juntar dinheiro para morar fora
do Brasil.
"Nunca foi um sonho trabalhar a bordo,
mas foi uma forma que encontrei de me preparar financeiramente para morar fora.
Em um trabalho tradicional, como eu tinha, eu não conseguia juntar dinheiro.
Gastava muito com plano de saúde, alimentação e moradia."
• Sem
privacidade e vida longe da família
Apesar de trazer inúmeros benefícios, a vida
a bordo requer renúncias. Yasmin destaca a privacidade, algo que ela afirma ter
perdido morando em um navio.
"Sempre tem gente em todos os lugares, o
tempo todo. E você divide tudo, inclusive a cabine em que dorme, na maioria dos
casos. As pessoas não costumam respeitar o seu espaço", diz ela.
Para Neil, trabalhar em cruzeiros significou
perder momentos importantes com a família e amigos.
"O Natal de 2024 foi o primeiro que
passei no Brasil em dez anos de trabalho a bordo", diz ele.
Já Luca conta que, por ficar meses no navio,
acabou se afastando de muitas pessoas e projetos que fazia no Brasil.
"Perdi muito contato com os alunos que
tinha e com as bandas em que tocava, porque saí para trabalhar a bordo e alguém
assumiu meu lugar. Isso é normal, mas sinto falta dessa conexão", destaca.
Como uma forma de se conectar com as pessoas,
ele passou a produzir conteúdos para as redes sociais.
Hoje, ele tem um canal no Youtube com mais de
230 mil inscritos, além de perfis no TikTok e no Instagram, onde fala sobre
como é trabalhar em cruzeiros e viver em um navio. Alguns de seus vídeos chegam
a mais de 16 milhões de visualizações.
• Mercado
de cruzeiros está em expansão
No mundo, o setor de cruzeiros mostra uma
tendência de crescimento contínuo.
Segundo dados da Cruise Lines International
Association (Clia), um total de 20,4 milhões de pessoas viajaram em cruzeiros
em 2022.
Esse número foi superado em 2023, quando 31,7
milhões de viajantes foram registrados. Para 2024, a previsão era de 34,7 milhões.
Além do número de passageiros, a quantidade
de cruzeiros também vai aumentar. A previsão da Clia é que 56 novas embarcações
sejam lançadas até 2028, quando o número de viajantes deve atingir 40 milhões.
O Brasil é considerado um mercado em expansão
neste setor. Segundo estudo da Clia em parceria com a Fundação Getúlio Vargas
(FGV), na temporada brasileira de 2023/2024, nove navios percorreram 15
destinos no Brasil.
Foram transportados um total de 844.462
viajantes, maior número da série histórica iniciada em 2004/2005.
Na temporada 2023/2024, a indústria de
cruzeiros injetou um recorde de R$ 5,2 bilhões na economia brasileira e gerou
80.311 empregos. Isso representa um resultado 0,94% superior ao apurado na
temporada anterior. Do total de postos de trabalho, 1.572 foram de tripulantes
brasileiros.
Apesar dos números positivos, o Brasil ainda
está distante de outros mercados, como o Caribe e o Mediterrâneo, já
consolidados no setor de cruzeiros.
Só em 2023, O Caribe recebeu 12,9 milhões de
viajantes, enquanto o Mediterrâneo teve 5,5 milhões.
• O
que é preciso para trabalhar a bordo?
Para trabalhar a bordo, normalmente é preciso
passar por um processo seletivo que inclui análise de currículos e entrevista,
feita em inglês.
"É o idioma que o tripulante vai falar
no navio, então, precisa ter inglês avançado ou fluente", afirma Del Bel.
Além do domínio da língua, outro requisito é
ter pelo menos 18 anos — algumas companhias exigem mínimo de 21 anos.
Cumprindo os requisitos da vaga, o candidato
deve se cadastrar no site das agências de recrutamento ou das próprias empresas
de cruzeiros.
O processo seletivo pode durar de um a seis
meses. Esse período inclui a análise do currículo e, dependendo da vaga, cerca
de uma ou duas entrevistas.
Se o candidato for aprovado e aceitar a vaga,
começa o chamado procedimento de embarque, o que inclui tirar passaporte,
visto, fazer exames médicos e curso de segurança.
"Algumas empresas arcam com gastos,
outras não. E o deslocamento até o porto de embarque é pago pela
companhia", explica o recrutador da Infinity Brazil.
Tripulantes precisam obter um tipo específico
de visto para trabalhar a bordo, dependendo do porto de embarque e da rota do
navio.
Del Bel explica que a maioria das empresas
pede o visto C1/D dos Estados Unidos, porque os tripulantes fazem escala em
portos americanos frequentemente.
O recrutador destaca que o bom momento deste
mercado tem impulsionado a demanda por trabalhadores.
"É um setor em franco crescimento, que
tem lançamentos de navios todos os anos. As companhias estão sempre precisando
de gente, principalmente em vagas como restaurante, limpeza e atendimento ao
público."
Fonte: BBC News Brasil

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