terça-feira, 18 de março de 2025

Jair de Souza: Procurando a luz no meio da escuridão

Ao analisar a situação prevalecente no Brasil e em quase todos os países de características similares, é impossível não concluir que as necessidades e as condições materiais para a adoção do sistema socialista estão mais presentes na atualidade do que nunca antes ao longo de toda a história da humanidade.

Ajudam a reforçar esta sensação a constatação de que, embora o aumento da produtividade já alcançado seja suficiente para erradicar completamente o flagelo da fome e melhorar o padrão de vida de todos nossos habitantes, assim como possibilitar uma redução importante em nosso tempo dedicado ao trabalho, a miséria ainda está espalhada em grande profusão por todas nossas cidades.

Além disso, os riscos reais de uma degradação irreversível do meio ambiente demonstram que a exploração dos recursos naturais precisa ser feita em conformidade com critérios que correspondam aos interesses vitais de toda a humanidade, e não apenas de alguns grupos privilegiados.

Apesar de soar como uma tremenda aberração, o fato é que o avanço tecnológico e a capacidade de produzir muito mais com muito menos esforço acabou se tornando um pesadelo e uma condenação a uma completa exclusão e, até mesmo, eliminação física para numerosos grupos de seres humanos.

O fato de se poder produzir mais do que antes no mesmo espaço de tempo acabou gerando uma quantidade enorme de seres que se mostram supérfluos para a manutenção do sistema vigente, em outras palavras, o capitalismo.

O exposto nos parágrafos anteriores serve para corroborar a ideia de que somente um sistema social voltado para o atendimento justo e sensato do conjunto da população poderia significar que a elevação da produtividade implique realmente em uma vida de mais conforto e dignidade para todas as pessoas.

Como sabemos, com a persistência do capitalismo, não se vislumbra nenhuma possibilidade de amenizar as dificuldades que estão se agravando, e nem de impedir as consequências funestas das catástrofes ambientais que ameaçam nossa própria existência.

Por isso, o socialismo passou a ser quase que uma condição sine qua non para a sobrevivência da espécie humana como tal.

Paradoxalmente, por outro lado, a compreensão de qual classe, ou grupo social, está em condições de encabeçar o árduo processo de lutas com vista a transformar as estruturas sociais em base de perspectivas socialistas vai se tornando algo cada dia mais nebuloso.

E, ao mencionar a dificuldade que temos em saber de maneira convincente quais classes ou setores sociais estão potencialmente aptos a comandar esta fase de transição, precisamos admitir que não nos referimos a uma dúvida de pouca relevância.

Pelo contrário, trata-se de um ponto de suma importância, visto que não é plausível que as transformações das bases estruturais de uma sociedade ocorram sem que haja grupos sociais dispostos a se engajar ativamente na luta pela conquista de tais objetivos.

É verdade que, até cerca de duas décadas atrás, a incerteza que agora estou trazendo à baila não passava pela mente de quase ninguém que estivesse dotado de um mínimo de conhecimentos teóricos do marxismo.

Todos nós estávamos convictos de que o avanço do modo de produção capitalista tinha decididamente gestado em seu bojo a classe social que se encarregaria de sepultá-lo, ou seja, o proletariado.

E era isto mesmo o que as principais características do modo de produção capitalista iam nos reiterando com o passar do tempo.

Entretanto, certas tendências mudaram e agora, ainda que todos os indicativos relacionados com as condições materiais continuem evoluindo em conformidade com as expectativas que conduziriam ao socialismo, o panorama já não se mostra tão evidente no que diz respeito à classe, ou grupo, social que tem condições de desempenhar o papel de vanguarda do processo que deveria redundar na derrubada do capitalismo e sua substituição pelo sistema sócio-político para o qual tanto as necessidades como a materialidade parecem estar apontando.

É que, com a passagem para uma etapa na qual se dá o uso intensivo da tecnologia digital na produção industrial e nas atividades econômicas de modo geral, a outrora numerosa e crescente classe operária foi perdendo muitas das características que a haviam elevado à condição de virtual coveira deste sistema social baseado na propriedade privada dos meios de produção e na apropriação da mais-valia.

Nos dias de hoje, está tornando-se cada vez menos comum a presença de grandes estabelecimentos fabris, aqueles espaços onde se reuniam enormes contingentes de trabalhadores, operando um ao lado do outro em ações articuladas e complementares para a gestação do produto final.

Em tais condições, o caráter solidário do trabalho e seu sentido coletivo se mostravam muito mais nítidos para todos.

Portanto, as características que marcavam o processo produtivo nas grandes empresas industriais contribuíam imensamente para que os operários se sentissem parte integrante de uma coletividade maior, na qual a interdependência era um fenômeno visível e facilmente detectável pelo conjunto de seus integrantes.

E isto seguramente era um dos principais fatores responsáveis pela geração de uma consciência de classe marcada pelo espírito do coletivismo e da compreensão do valor da unidade de ação. Em consequência, a própria ideia do socialismo se fazia sentir com mais naturalidade para boa parte desses trabalhadores.

Porém, nestes novos tempos de economia informatizada, a classe trabalhadora também está atravessando uma fase de verdadeira metamorfose, e vai adquirindo feições bastante diferenciadas. A outrora pujante classe operária vem reduzindo significativamente sua expressão numérica.

A chamada “uberização” do trabalho tem transformado em autônomos uma boa parcela dos que antes eram trabalhadores assalariados, com a consequente perda de direitos e garantias de que gozavam.

Se somarmos o potencial de manipulação propiciado pelas redes sociais digitais a essas dificuldades para a conscientização surgidas a partir da mudança na forma como a produção se desenrolava, poderemos entender as razões para que o que já era uma situação difícil se tornasse ainda mais complicado.

A propriedade e o controle das maiores plataformas de redes digitais por poderosos conglomerados privados dos centros imperialistas reforçaram as hostes do nazismo-fascismo com instrumentos muito eficientes para o desenvolvimento da habilidade que demonstrou ser o verdadeiro leitmotiv para o surgimento dessa corrente política de extrema direita: a técnica de manipular a bronca e a insatisfação dos setores populares para direcioná-las contra outros grupos também do campo dos explorados.

Longe de representar uma melhoria em seu padrão de vida, a nova situação só tem servido para vulnerabilizar as condições de subsistência da maioria desses trabalhadores.

Contudo, talvez a consequência mais negativa para as perspectivas de a classe trabalhadora se reafirmar como condutora do processo de transformação rumo ao socialismo seja a tendência ao aparecimento de sentimentos individualistas em seu seio, que resultam na quebra dos vínculos de pertinência e solidariedade entre os trabalhadores.

Em decorrência disto, cada trabalhador, precarizado e isolado do conjunto de sua classe, é instigado a ver seus análogos como concorrentes e não como companheiros de luta.

Assim que, em meu entender, não há motivos reais para questionamentos à importância ou necessidade do socialismo para avançarmos no rumo de um mundo mais justo, solidário e igualitário.

Minha maior dificuldade neste momento é ter clareza de quais os setores sociais do campo popular que estarão à cabeça do processo e como podemos contribuir para trazê-los efetivamente para a luta.

Seguramente, serão os trabalhadores os principais beneficiados com o advento do socialismo. Mas, as novas formas produtivas introduzidas com o uso de tecnologias digitais estão dificultando aos trabalhadores a compreensão do funcionamento do próprio capitalismo e a luta de classes que o permeia.

Por isso, cabe aos que se sentem comprometidos com o futuro da classe trabalhadora estudar com afinco a situação reinante nestes tempos difíceis para extrair deste estudo as respostas que nos deem de volta à certeza de que o mundo deve pertencer aos que o criam através de seu trabalho.

São os trabalhadores e somente eles os que saberão liderar a humanidade em conformidade com os requisitos mais justos para todos.

E aos que cultuamos alguma atividade de nível intelectual, nossa obrigação é colocar todo o instrumental teórico que possamos ter a serviço daqueles que estão chamados a livrar o mundo deste sistema intrinsecamente explorador do trabalho alheio.

 

¨      Questões sobre a ordem militar

Há uma colocação muito precisa feita por Heráclito Sobra Pinto a respeito dos militares brasileiras em que o jurista diz: “Tendo proclamado a República, [os militares] julgaram-se donos da República, e nunca aceitaram não serem os donos da República.” A colocação, popularizada hoje pelo podcast Medo e delírio em Brasília, não poderia ser mais precisa no que diz respeito ao pretenso papel que as forças armadas atribuíram a si mesmas desde o golpe de Estado que inaugurou a República em 1889.

Este foi, porém, apenas o primeiro de muitas tentativas de golpes, sendo que alguns foram de fato bem-sucedidos, afinal de contas, tal prática parece ser o modus operandi que tal facção armada da política brasileira usou durante cerca dos últimos 150 anos – chega a ser farsesco acompanhar esta história nos livros e teses que dissertaram sobre os militares no Brasil. Isso, contudo, não é tão cômico se nos lembrarmos o nível indescritível de violência que foi operado em tais atividades, para além de, claro, a prática cotidiana militar que é, em suma, violenta.

Ao tratar, portanto, dos militares no Brasil seria o caso de reiterar tal dado a todo momento, quer dizer, que sua tutela no Estado sempre foi feita com muita coerção, em todos os níveis imagináveis. E, tão alinhados à história da República, seria também o caso de recordar como seu pensamento está organicamente alinhado a uma certa veio positivista, que fez fama na intelectualidade brasileira na segunda metade do século XIX – não à toa o lema inscrito na bandeira da República: “ordem e progresso”.

Tal tradição viu com muito maus olhos toda e qualquer marca que pudesse ser associada ao passado do país, numa busca incessante por apagamento e esquecimento dos traços profundamente enraizados dos tempos coloniais — ainda que se saiba muito bem como tais marcas não somente subsistem até hoje, mas, em verdade, formam a profundidade e a superfície do tecido social. Os esforços de modernização dos positivistas levaram ao famoso bota-abaixo na cidade do Rio de Janeiro do início do século passado, destruindo lugares como o primeiro colégio de jesuítas de Manoel da Nóbrega (que ficava no extinto morro do Castelo) e a casa de Machado de Assis na antiga rua do Cosme Velho.

Mas não é só isso: as políticas de embranquecimento, junto às leis de vadiagem estavam todas atreladas a tal imaginário positivista de modernização, que carregava a militaresca “ordem” contra as tradições entendidas como selvagens, primitivas, bárbaras – que, em verdade, se associavam fundamentalmente às formas de vida das camadas mais vulneráveis da população, como os antigos escravizados e os indígenas.

O uso da força brutal da coerção das massas se articula com o discurso eugenista, com as estruturas ideológicas deste positivismo; e a instituição das forças armadas, mergulhada completamente nesta formação, não somente adere ao pensamento como dá materialidade à ordem necessária para sua realização, a saber, o apagamento por meio do desaparecimento, assassinato, tortura, exílio, ocultamento de pessoas e tradições inteiras. O golpe de Estado aparece para as forças militares como apenas mais uma de suas atribuições, dada uma pretensa situação de “desordem” permanente em que a sociedade brasileira se encontra, pela presença ostensiva de grupos que tingem de manchas uma suposta unidade nacional que nunca existiu; o aparato militar usa de sua força armada, então, para empurrar goela abaixo uma ordem em nome de um progresso que avança por cima de pessoas, de histórias, de casas e de cidades inteiras.

Dos inúmeros exemplos que se pode levantar, gostaria de relembrar aqui o caso de Canudos, pela força pedagógica que a destruição do arraial da Bahia em 1897 tem em sentido de ilustrar tal atribuição dos militares; e, curiosamente, é um homem de formação positivista, num livro de estrutura e argumento positivistas que vai sugerir uma crítica profunda não somente aos militares em plena Primeira República, no calor do momento, mas à própria ideia de progresso, de civilização e de modernidade da qual sua própria obra bebe – Euclides da Cunha.

Não se trata de dizer que o argumento, a estrutura e o vocabulário d’Os sertões não seja positivista; e que tudo isto parte do princípio que os sertanejos seriam pessoas “destinadas a próximo desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização”, mas é notável perceber como há um tensionamento destes mesmos conceitos internamente à obra, o que a faz dialeticamente um texto da melhor natureza – afinal, em muitos momentos é esta mesma civilização aparece ironizada e contendo seu próprio negativo, a barbárie.

Neste sentido, a obra relata a destruição do arraial com uma ironia refinadíssima, que muitas vezes foge ao leitor desavisado. Desde o início se pode perceber algo assim: “Quando se tornou urgente pacificar o sertão de Canudos, o governo da Bahia estava a braços com outras insurreições.” Lembre-se como nada do avanço da civilização nos sertões foi pacífico, o que já tinha sido apontado no livro em outros momentos. Tais afirmações podem pegar o leitor de surpresa na medida em que uma ironia assim está esvaziada do tão famoso humour pelo qual ficarão conhecidos Machado de Assis e Drummond: resta em Cunha apenas a brutalidade do desvelamento da violência da pacificação do sertão de Canudos.

A obra vai, como se sabe, desmontar como o argumento do governo da República contra Canudos – que lutava contra uma insurreição monarquista – era falso. O capítulo em que se narra a quarta expedição a Canudos na terceira parte do livro destrincha em seu início como os homens da capital construíram tal falso argumento, potencializado pelos grandes jornais da época, como A Gazeta de Notícias e O Estado de S. Paulo, lembrando-nos como o discurso jornalístico mainstream funciona a favor dos aparatos de repressão e violência, se servindo de invenções disparatadas ao gosto do que hoje se chama de “fake news” nos grupos de WhatsApp; nas palavras do livro: “A mesma toada em tudo. Em tudo a obsessão do espantalho monárquico, transmudando em legião – coorte misteriosa marchando surdamente na sombra — meia dúzia de retardatários, idealistas e teimosos.”

Diante da derrota do militar Moreira César, a quarta expedição se organizou ao redor de um discurso que buscava a falsa afirmativa de uma revolta monarquista, apontando também para uma suposta inferioridade sub-humana dos sertanejos. O que chama a atenção do autor, porém, é outro dado: “A rua do Ouvidor valia por um desvio das caatingas. A correria do sertão entrava arrebatadamente pela civilização adentro. E a guerra de Canudos era, por bem dizer, sintomática apenas. O mal era maior. Não se confinara num recanto da Bahia. Alastrara-se. Rompia nas capitais do litoral. O homem do sertão, encourado e bruto, tinha parceiros porventura mais perigosos.”

O escritor percebe como aquilo que ora se distingue como selvageria está no interior daquilo que se chama civilização. A condição da cidade civilizada é, em verdade, não muito distinta dos sertões de Canudos; e, no final, Euclides da Cunha chega inclusive a argumentar uma racionalidade própria na resistência sertaneja, óbvia até: “Estes, ao menos, eram lógicos. Insulado no espaço e no tempo, o jagunço, um anacronismo étnico, só podia fazer o que fez – bater, bater terrivelmente a nacionalidade que, depois de o enjeitar cerca de três séculos, procurava levá-lo para os deslumbramentos da nossa idade dentro de um quadrado de baionetas, mostrando-lhe o brilho da civilização através do clarão de descargas.”

Esta é, enfim, a face da civilização: uma força armada devastadora que destruiu Canudos, que assassinou brutalmente seus moradores; algo que se inicia por uma disputa por modos de vida; de linguagem, de desejo e de trabalho. Neste sentido os patriotas decidiram agir, e, nas palavras de Cunha, “agir era isto – agremiar batalhões.”

O exército brasileiro, portanto, encabeça o massacre criminoso de Canudos (que é assim mesmo nomeado no livro – um crime), usando dos mais brutais subterfúgios para matar e destruir o arraial. Considerando-se os donos da República, os militares, buscando uma prova do fim da insurreição e da desordem, ao final da campanha, exumam o cadáver de Antônio Conselheiro e tiram a famosa foto que hoje conhecemos do profeta; mas, não satisfeitos, cortam-lhe a cabeça, para seguiram portando-a numa parada em festa no Rio de Janeiro.

Ao terminar seu relato, a obra traz um tom de assombramento diante da violência que significou a expedição militar em nome da civilização, da ordem e do progresso. O avanço da civilização apareceu como um assalto armado contra uma população cuja história era já de exílio, abandono e violência. A ação militar foi, de certo modo, destruir as tinturas desta mancha, a marca de seu próprio passado violento; e o que chama a atenção de Cunha é como tal campanha tenha sido levada a cabo por “filhos do mesmo solo”, diferentes dos sertanejos por atuarem como “mercenários inconscientes” que vivem na capital sob a ideologia do progresso europeu.

Diante de um exemplo tão eloquente, seria o caso de lembrar que os militares jamais foram responsabilizados por seus sucessivos atos de violência contra a própria população. Parafraseando Julio Strassera em seu discurso final no julgamento que condenou os chefes militares argentinos da última ditadura, a nossa oportunidade é agora. Não se trata, porém, de meramente condenar generais de quatro estrelas, mas de forçar esta instituição a uma refundação: destituir todo seu comando, suas escolas, seus tribunais, suas aposentadorias especiais – lembrá-los de sua condição de servidores públicos a serem tratados com o mesmo estatuto que todos; forçarem a estudar conosco e terem uma formação em uma escola como qualquer outro.

Mais do que isso, que sejam, como na Argentina, julgados pela justiça comum – não estamos em guerra para que exista um tribunal militar. Só assim será possível dizer que há alguma justiça, memória e luto por todos aqueles que morreram pela despropositada ordem das baionetas.

 

Fonte: Viomundo/A Terra é Redonda

 

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