Alexandre Francisco: “O fim do Estado é seu
fim”
Qual
tipo de sociedade temos hoje? Sociedade do consumo. O sucesso
individual está atrelado à ascensão social por meio do poder de compra do respectivo
consumidor. Há uma redução do indivíduo à sua capacidade
de consumo perante a sociedade.
A
defesa intransigente da propriedade privada, aliada ao avanço do
liberalismo e do neoliberalismo, sustenta a perigosa
noção de que a democracia e o Estado de Direito devem se abster de
qualquer regulação sobre o mercado, devendo deixar que os interesses
privados sempre vigorem sobre o interesse público.
Por
meio da ideia do livre mercado, há muito perdemos a capacidade de
estabelecer comunidades e demandas de interesse popular. Cada indivíduo deve
ganhar dinheiro para construir os muros que o protegem do mundo exterior.
Quanto
mais bens materiais o indivíduo adquire em sua jornada pela vida, mais feliz,
realizado e com mais poder para controlar seu destino e o dos outros. Tudo
funciona bem desde que ninguém se ponha em seu caminho. Percebemos então que a
dimensão do desejo humano é ilusoriamente suprimida pelas ofertas
do mercado de consumo.
Dessa
forma, quanto mais bem-sucedido se torna o indivíduo, mais isolado ele
fica, e mais dificuldade ele tem de enxergar na demanda do outro algo legítimo,
principalmente se o desejo do indivíduo A está em completa oposição à demanda
do indivíduo B. Melhor dizendo, o outro se torna um inimigo a ser exterminado.
Por
fim, o espaço democrático é fatalmente esvaziado diante do choque
entre duas demandas em oposição. A lógica do ódio disseminada
pelas Big Techs em
todo o mundo incendeia o pavio da discórdia entre as pessoas. O Estado e
a democracia, então, se tornam os únicos empecilhos entre o desejo
individual e o extermínio do diferente.
Assim,
nossa sociedade segue desgovernada para a autodestruição. Mas como poderíamos
virar o timão do Titanic para não darmos de cara com o iceberg?
- Para onde ir?
A
verdade é que caímos na armadilha do Estado mínimo. Mais além, pensamos
durante muito tempo que, para que o mercado e a iniciativa privada pudessem
funcionar, seria necessária a completa ausência de presença
do Estado sobre as empresas e seus negócios. A famosa “mão invisível” do
mercado daria
conta de tudo. Oferta e demanda seriam os únicos princípios categóricos.
A
teoria cai por terra com a ascensão da China e sua forma
particular de socialismo de
mercado.
Desta forma, o Ocidente, em sua trajetória neoliberal, construiu uma
narrativa onde o mercado livre e a democracia representativa seriam
indissociáveis. No entanto, a China apresenta uma contradição
incontornável a esse discurso: um Estado centralizado que, longe de sufocar a
economia, impulsiona seu crescimento. O modelo híbrido combina planejamento
estatal com mecanismos de mercado, permitindo um crescimento econômico acelerado
sem renunciar ao controle político do Partido Comunista Chinês.
Dessa
forma, a iniciativa privada chinesa não tem gerência sobre o governo, e suas
demandas individuais não se sobrepõem ao interesse do Estado chinês. Apesar de
antagonista ao modelo americano, Donald Trump mostra-se cada
vez mais seduzido por figuras como Xi Jinping e Vladimir Putin. Trump vê
nesses líderes a possibilidade de centralização democrática e autoritarismo.
Porém, diferente dos modelos orientais, o Ocidente está dominado por interesses
econômicos de empresas privadas, dado a aliança de Trump com líderes de Big
Techs, como Elon Musk.
O único
mérito de Elon Musk é ter uma ridícula quantia em sua conta bancária
que lhe permite comprar o acesso ao Salão Oval americano para pôr
suas demandas particulares ao povo americano que não o elegeu. Em minha
percepção, os Estados Unidos são hoje muito mais uma plutocracia do que
uma democracia, assim como o Brasil e boa parte dos países do Ocidente.
Não
estou dizendo aqui que o modelo de governo chinês é o ideal, mas me parece que
está mais próximo de um sistema democrático do que o próprio governo americano,
principalmente se levarmos em conta que Xi representa o interesse de
seus cidadãos e não de seus consumidores. A China não se dobra ao
interesse privado, mas o interesse privado se sobrepõe
ao interesse público.
- E o Brasil?
Certa
vez, assisti a uma entrevista da ex-presidente Dilma Rousseff, afirmando
que o caminho do Brasil tem de ter seu “próprio caminho”. Com isso, ela estava
se referindo ao país ter seu próprio modelo político-econômico. Devo dizer que
concordo plenamente com a fala. Não devemos de forma nenhuma, na tentativa de
nos desvencilharmos da hegemonia americana, cair nos braços da hegemonia
chinesa. O Brasil já sofreu muito com o imperialismo global, e está na hora de
assumirmos as rédeas de nosso próprio futuro.
Ocorre
que há, sim, no Brasil uma falência democrática
institucional,
bem como o avanço da sociedade de consumo, do neoliberalismo e
da iniciativa privada sobre a vida dos brasileiros. A título de
exemplo, um debate que vem ganhando tração nos últimos meses é como a nova
geração de brasileiros enxerga os empregos via CLT. Há toda uma mística
por trás do empreendedorismo de
si,
ou seja, a precarização do
trabalho está
glamourizada pela classe média e pelos mais pobres, enquanto os empregos de
carteira assinada são julgados como “empecilhos” para o desenvolvimento da
iniciativa privada.
No
texto “‘Crianças demonizam CLT’: carteira assinada vira ofensa entre os
jovens…” (disponível clicando aqui), Camila
Corsini expõe como a visão sobre o trabalho formal tem mudado entre os
mais novos. Essa tendência é um reflexo direto da valorização da economia
informal e do empreendedorismo
individual,
impulsionados pela ideologia neoliberal que prega a independência financeira
como sinônimo de liberdade. Contudo, essa mesma ideologia mascara a ausência de
segurança e direitos trabalhistas, tornando o trabalhador vulnerável.
@fabi.bubu Jovens, que
papo é esse? Vocês estão com a visão distorcida das coisas #clt #emprego #adolescentes ♬ som original - Fabibubu
O
fenômeno revela não apenas uma mudança de percepção entre os jovens, mas também
uma crise estrutural do Estado e da democracia. A construção de um
discurso que associa estabilidade e direitos trabalhistas à mediocridade e ao
fracasso pessoal favorece exclusivamente os interesses privados,
desobrigando empresas e governos de garantir condições justas de trabalho.
Assim, o indivíduo passa a acreditar que sua própria existência econômica é
responsabilidade exclusiva sua, não do Estado ou da sociedade.
Esse
deslocamento de responsabilidade, no entanto, não ocorre de forma espontânea.
Trata-se de um projeto deliberado de desmonte do Estado enquanto
agente regulador e garantidor do bem-estar social. Desde as reformas neoliberais implementadas
nos anos 1990, a ideia de que o Estado é um entrave ao desenvolvimento
econômico tem sido amplamente difundida, preparando terreno para um modelo em
que a maximização do lucro das corporações se sobrepõe aos direitos
básicos da população.
A
partir desse quadro, a pergunta central permanece: qual o caminho para o
Brasil? Se a submissão a um modelo de mercado desregulado conduz à precarização
e à fragilidade da democracia, e a centralização estatal nos moldes
chineses não parece compatível com nossas estruturas políticas e culturais,
como podemos construir uma alternativa?
A
resposta talvez resida na reconstrução de uma concepção democrática que vá além
do sufrágio universal e da alternância de poder. A democracia precisa
ser compreendida como um processo contínuo de participação e de
controle popular sobre
as instituições e a economia. Para tanto, é fundamental fortalecer políticas
públicas que garantam direitos sociais e
reduzam as desigualdades, permitindo que o desenvolvimento econômico seja
acompanhado por justiça social.
Isso
exige uma revisão profunda do papel do Estado brasileiro. O país não pode se
contentar com uma administração burocrática que apenas regula ou assiste
passivamente à população, mas sim atuar ativamente na construção de um modelo
de crescimento inclusivo. A experiência histórica já demonstrou que o
mercado, quando deixado sem restrições, não se autorregula de maneira justa.
Pelo contrário, concentra riqueza e amplifica
desigualdades. Afinal, o objetivo de toda empresa é o lucro, independente
dos preceitos morais.
O
desafio é encontrar um equilíbrio entre a participação estatal e a dinamização
da economia privada, assegurando que os interesses coletivos estejam
sempre acima das ambições particulares de pequenos grupos econômicos.
É neste
que escreve a professora de filosofia na UFSCar Monica Loyola Stival, em
artigo publicado no site A Terra é Redonda (disponível aqui), ao analisar o
pensamento da cientista política pós-marxista belga Chantal Mouffe, ela estabelece
que Mouffe “procura responder à esquerda que defende a renúncia às
instituições democrático-liberais e, por isso, propõe uma radicalização.
Acontece que é possível renunciar ao liberalismo sem renunciar às instituições
democráticas. É isso que, acredito, precisamos tomar como ponto de partida para
uma nova esquerda. Chantal Mouffe se agarra ao ideário liberal
supondo que bastaria realizar os ideais de liberdade e igualdade, como se o
sentido último que adquirem no modelo liberal fosse equivalente ao sentido que
idealmente têm – ou podem ter – para a democracia.”
A
questão se torna complexa se levarmos em conta a perspectiva
marxista clássica, de que seria necessária a superação do Estado burguês
de maneira completa por meio da revolução proletária. Apresentei brevemente a
questão no texto “Reforma ou
Revolução? Parte I”,
publicado aqui no IHU. Infelizmente, não consegui chegar a uma conclusão
sobre o tema. Me parece digna a proposta da reforma do Estado, de dentro
para fora, através da sucessiva conquista de direitos e fortalecimento das
instituições democráticas. Mas a contradição é: até que momento a estrutura do
Estado nos permitirá fazer isso? E até que instância os interesses dos
financeiramente abastados são efetivados antes dos interesses dos pobres pelas
cartas constitucionais e legislações ordinárias?
Talvez
a resposta esteja de fato em um estudo sistemático da democracia e seus
fundamentos mais intrínsecos, bem como a participação ativa de
diferentes grupos populares em busca da efetivação de seus direitos e
garantias. Ademais, seja por revolução, seja por reforma, é indispensável a
retomada da dimensão do espaço político público, bem como a superação
imediata do indivíduo consumidor pelo cidadão.
Que a
praça pública nos sirva de inspiração e símbolo de um espaço democrático
universal, onde todas as vozes são ouvidas independentemente do tamanho das
contas bancárias, e que a demanda das minorias possa ser tão importante quanto
as da maioria.
¨ “A democracia uma
prática política em declínio”. Por Marcos Roitman Rosenmann
Não
vivemos na democracia, se por isso entendemos uma conduta fundada na busca
do bem comum, da justiça social e
da igualdade. Existe uma contradição entre um projeto democrático e a
manutenção de relações sociais de exploração. E não só no que diz respeito à
exploração de seres humanos por seres humanos, mas também à exercida contra a
natureza. Refere-se à degradação do nicho ecológico, à especulação alimentar, à
apropriação dos recursos hídricos, às epidemias de fome produzidas por
bloqueios, ao patrocínio de guerras, à privatização da pesquisa científica ou
limitando o acesso a medicamentos e vacinas às maiorias sociais.
Todos
os fatos enunciados, além de questionarem a existência de uma ordem
internacional enraizada na paz, evidenciam uma deflação democrática. Neste
contexto em que prevalece o capitalismo, devemos somar as instituições que há
séculos sobrevivem, como o patriarcado, o racismo, as
desigualdades econômicas, o poder das castas, a nobreza, os proprietários de
terras e os mandachuvas.
Sem
pensar em uma visão idílica da democracia, a realidade social nos leva a
acreditar que o futuro da democracia é incerto, quando não contrário aos seus
princípios. A origem da democracia, um modo de vida e de governo, encontra-se
nas lutas sociais pelo reconhecimento dos direitos dos cidadãos em seu sentido
mais amplo. A democracia busca, ao mesmo tempo, equilibrar o poder exercido
pelas plutocracias e combater as desigualdades sociais e econômicas
por meio da participação política na tomada de decisões. Em outras palavras,
que os cidadãos decidam por plebiscito sobre a guerra e a paz, promulguem as
leis, controlem os poderes de facto, possam ser eleitos, além de
evitar os abusos de poder daqueles que gozam da representação popular.
A democracia é
uma proposta de organização social e política. Supõe um programa para a vida em
comum, um projeto no qual as prioridades sejam determinadas pelas necessidades
coletivas que fazem com que a pessoa, um ser humano, tenha as necessidades
básicas atendidas e uma qualidade de vida digna. Tudo isto envolve pensar em um
nós coletivo.
Na democracia,
cada decisão tem efeitos sobre o tecido social. Construir hospitais, escolas,
proteger as crianças, punir a violência de gênero, promover o investimento
público em obras sociais e infraestruturas faz parte da democracia. Seu
contrário é aprovar uma redução na tributação para as grandes fortunas,
elaborar leis antissociais que favoreçam a demissão livre, leis trabalhistas
leoninas, limites ao gasto social, criminalizar o protesto social, entregar as
riquezas naturais a empresas privadas, vender o patrimônio público aos capitais
de risco, reduzir a maioridade penal e favorecer a desregulamentação do capital
financeiro e bancário.
As
medidas antissociais e os cortes nas liberdades democráticas são cada vez mais
comuns, o que nos fala de um processo de oligarquização do poder. A
situação de saúde democrática das sociedades atuais é crítica e o diagnóstico
futuro não é encorajador. Lentamente, impõe-se uma ordem de dominação dirigida
pelas plutocracias em consonância com o poder de
um cibercapitalismo que aumenta o seu controle graças à guerra
neocortical, cuja capacidade para anular a consciência e a reflexão aumenta o
grau de submissão e o conformismo social.
O risco
de involução política no planeta é uma realidade a curto prazo. O triunfo
das direitas antidemocráticas e o ressurgimento de propostas
castradoras dos direitos sociais são um indício a mais do renascimento do
fascismo societal. Não se trata do triunfo de uma crítica aos chamados
“excessos da democracia” levantados por Hayek, mas uma rejeição à
democracia como forma de governo e de vida em comum.
A democracia está
sendo atacada e tem aliados em setores sociais que mais deveriam lutar por ela.
Renunciar à democracia como projeto societal supõe abrir mão da ideia
de uma vida digna, carecer de um sistema de saúde, moradia, educação, ter
acesso ao lazer, a uma aposentadoria justa e simplesmente fazer três refeições
por dia. Com a desigualdade, qualquer projeto democrático é uma quimera.
Para
percebermos o quão longe estamos de viver na democracia, basta citar
o Relatório da Oxfam
de 2023,
ao apontar que apenas no biênio pós-pandemia (2020-2022), 1% da
população mundial monopolizou dois terços da nova riqueza gerada em escala
global, o dobro dos 99% restantes da humanidade. É cada vez maior a população
mundial arrastada para a exclusão social, cuja existência se situa na
fronteira do subumano.
Sem
medo de errarmos, uma economia e sociedade de mercado construídas sobre a
competitividade e a meritocracia destroem qualquer opção de forjar uma ordem
democrática. O capitalismo, em seus 500 anos de
história, não foi um exemplo em forjar um poder democrático. Contudo, foi em
suas entranhas que as lutas democráticas ganharam protagonismo, constituindo
barreiras à sua ação predatória.
No
entanto, a luta é desigual. Multiplica-se a existência de partidos políticos
cujos programas fomentam o ódio, o racismo, a xenofobia, o negacionismo e a
necropolítica, ganham adeptos, e o mais preocupante, suas declarações são seguidas
por milhões de pessoas. Personagens como Donald Trump, Jair Bolsonaro, Javier Milei, Nayib Bukele, Giorgia Meloni governam ou governaram. São tempos
difíceis.
O
sucesso das políticas que levantam muros, a desumanização dos imigrantes, o uso
da mão dura e o endurecimento das condenações são testemunho da insatisfação
democrática. Mentir, enganar, sentir-se acima da lei, estuprar, sonegar
impostos, rir das instituições, hoje, não têm consequências políticas. A
sociedade não penaliza os comportamentos corruptos. Em conclusão: sem
consciência democrática não há poder democrático.
Fonte: IHU/La Jornada

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