quinta-feira, 20 de março de 2025

O fazendeiro peruano que desafia uma gigante da energia

Enquanto no verão Saúl Luciano Lliuya cultiva milho, batatas e quinoa, no inverno ele leva turistas às alturas geladas dos Andes. Mas agora o fazendeiro do lugarejo montanhês de Huaraz, no Peru, está no foco da atenção global. Pois do outro lado do mundo, na Alemanha, na cidade de Hamm, um tribunal superior regional julga o processo por riscos climáticos que ele abriu contra a companhia de eletricidade RWE.

"Estou um pouco animado, mas também preocupado", comenta Lliuya. Essa é a terceira vez que ele viaja à Alemanha para acompanhar o processo climático. Nove anos atrás, com o apoio de ONGs, fez história ao acusar a empresa alemã de ameaçar sua casa com a cheia do lago glacial acima da cidade.

Segundo o peruano, a RWE, uma grande emissora de gases do efeito estufa, estaria aumentando significativamente esse perigo ambiental com suas atividades poluidoras; portanto deveria assumir a responsabilidade e arcar com parte dos custos para a proteção de Huaraz.

Nas audiências dos próximos dias se decidirá se a casa do agricultor de fato corre perigo de inundação e, caso positivo, até que ponto a RWE pode ser responsabilizada. O primeiro processo de Lliuya, em 2015, foi rejeitado por um tribunal alemão, porém dois anos mais tarde uma instância regional mais alta permitiu o recurso.

Para o também guia turístico, trata-se de combater as mudanças climáticas e o consequente derretimento das geleiras, e de "acertar as contas com quem causou os danos". "Eu sinto uma grande responsabilidade."

Interpelada pela DW, a multinacional sediada na cidade de Essen contra-argumentou: "Se houvesse tal queixa sob a legislação alemã, todo motorista também poderia ser responsabilizado. Nós consideramos isso legalmente inadmissível, e a abordagem errada, de um ponto de vista sociopolítico."

A RWE, que não atua no Peru, assegura que sempre respeitou as regulamentações legais alemãs. Além disso, suas usinas estão submetidas ao Esquema Europeu de Comércio de Emissões, "sob o qual temos que pagar por cada tonelada de CO2".

•        "A gente tem que começar de algum lugar"

A comunidade andina de Huaraz fica num vale abaixo de um lago glacial cujo nível tem subido continuamente, devido ao degelo progressivo. Segundo um estudo internacional, realizado por cientistas da Suíça e dos Estados Unidos, só entre 1990 e 2010 o volume de água do lago multiplicou-se por 34.

Os autores do processo acrescentam que as temperaturas mais elevadas e o derretimento do permafrost – ou pergelissolo, a camada da crosta terrestre permanentemente congelada – também agravam o risco de blocos de gelo ou rocha caírem da parede montanhosa de 2 mil metros de altura para dentro do lago. E isso poderia ter consequências dramáticas para a casa de Lliuya e para os cerca de 50 mil habitantes da comunidade.

Em 1941, uma avalanche causou uma enchente devastadora em Huaraz, deixando cerca de 1,8 mil mortos. E o agricultor conta que recentemente uma precipitação de pedras encheu o lago até a borda.

O glaciar próximo ao vilarejo vem se dissolvendo continuamente há mais de 36 anos. Um estudo de 2021, publicado pela revista britânica Nature, concluiu que o fenômeno não é explicável sem a mudança climática.

Segundo uma análise de 2014 da Greenpeace e da ONG especializada em legislação ambiental Climate Justice Program, a RWE seria responsável por 0,47% de todas as emissões nocivas ao clima global desde o princípio da era industrial.

Por isso, Saúl Lliuya quer que a companhia alemã contribua com uma parcela proporcional, para financiar medidas protetoras. Estas incluiriam sistemas de drenagem para que a água do degelo escape da laguna do glaciar, e uma ampliação da barragem local. Uma simulação de 2016 demonstrou que um nível d'água mais baixo reduziria significativamente o risco para a comunidade, mesmo na eventualidade de uma queda de rochas ou avalanche.

A advogada do peruano, Roda Verheyen, afirma que seu cliente não está interessado numa indenização para si, mas sim que a RWE assuma sua parcela dos custos. Para a jurista, o caso se refere basicamente ao princípio de "o poluidor paga": "Alguém faz algo que pode ser permitido ou proibido, mas que acarreta consequências incrivelmente amplas e inaceitáveis, neste caso a mudança climática."

Em 2023, um tribunal ordenou uma inspeção in loco para avaliar o perigo. Numa audiência anterior, estabeleceu-se que os efeitos transfronteiriços da mudança climática criariam uma espécie de "relação de vizinhança global", mesmo que os danos ocorram a milhares de quilômetros do agente poluidor.

Verheyen reconhece que a RWE é apenas uma entre muitas poluidoras – apesar de, admitidamente, uma das maiores da Europa –, "mas a gente tem que começar de algum lugar".

•        Vitória não impedirá geleiras de derreter

Embora esteja sendo julgado na Alemanha, o caso tem o potencial de estabelecer um precedente internacional sério, comenta Petra Minnerop, professora de direito internacional da Universidade de Durham: "Se o tribunal deferir a queixa, será um sinal importante para outros grandes emissores de dióxido de carbono."

Desde o início da ação judicial, em 2015, uma série de processos transfronteiriços foram apresentados em outros países. Na Holanda, ONGs acusaram a Shell de atentar contra o direito à "proteção contra a mudança climática", mas não conseguiram uma ordem para que a multinacional do gás e petróleo reduzisse rapidamente à metade as suas emissões.

Na França, a gigante dos combustíveis fósseis TotalEnergies foi alvo de um processo que exige que a empresa alinhe suas práticas aos termos do Acordo do Clima de Paris, que visa limitar o aquecimento global a 1,5ºC acima dos limites pré-industriais – uma meta que muitos já dão por perdida.

Minnerop está convicta que, no longo prazo, não bastará negociar questões de responsabilidade pelos riscos climáticos num nível exclusivamente nacional: "Só atingiremos justiça climática se a encararmos como uma tarefa séria no âmbito das leis internacionais, e a perseguirmos com o grau de prioridade ditado pelas provas científicas."

Saúl Luciano Lliuya menciona planos das autoridades peruanas de construir um dique. Porém não há qualquer previsão para um início das obras, e o dinheiro da RWE seria útil, assim como uma atenção internacional intensa em relação ao projeto.

Os sentimentos do ativista do clima são ambivalentes: se perder, Huaraz ficará sem proteção perante as enchentes. Se ganhar, será um momento feliz, que significará "progresso no campo legal", mas que, por outro lado, "não vai impedir que as geleiras continuem a derreter".

•        Acúmulo de CO2 e temperatura do mar batem recorde em 2024

O ano de 2024 foi o mais quente desde que começaram os registros meteorológicos. A Organização Meteorológica Mundial (OMM) apontou "sinais claros de que a mudança climática provocada por ação humana alcançou novas alturas".

Nos últimos 12 meses, a temperatura atmosférica média global esteve 1,55ºC acima daquela registrada entre 1850 e 1900 – quando a humanidade começou a queimar combustíveis fósseis, como carvão mineral e petróleo, em escala industrial. O recorde anterior fora em 2023.

Os Estados signatários do Acordo do Clima de Paris se comprometeram em 2015 a empenhar-se para limitar o aquecimento global a bem menos de 2ºC acima dos níveis pré-industriais, de preferência mantendo-o abaixo de 1,5ºC. Essa limitação é necessária para evitar o colapso de ecossistemas.

Segundo o relatório anual da OMM sobre o estado do clima, o aquecimento de longo prazo está entre 1,34ºC e 1,41ºC. Como as temperaturas médias são aferidas ao longo de décadas, e não em anos isolados, a meta de Paris não foi, portanto, ultrapassada. Mas está quase chegando lá.

<><> Mortos por eventos extremos podem chegar a centenas de milhares

O gás dióxido de carbono (CO2) – liberado quando se queimam combustíveis fósseis para alimentar a indústria, aquecer residências ou movimentar automóveis – é um dos principais fatores para o incremento da temperatura global, e os níveis recentemente registrados são os mais altos dos últimos 2 milhões de anos.

A secretária-geral da OMM, Celeste Saulo, classificou o novo estudo como "um toque de despertar de que estamos aumentando os riscos para nossas vidas, economias e para o planeta". Eventos meteorológicos extremos continuam tendo "consequências devastadoras por todo o mundo": apenas a metade dos países estaria atualmente equipada com sistemas de alerta precoce adequados, e "isso precisa mudar".

Numa outra pesquisa publicada no fim de 2024, a iniciativa acadêmica Atribuição Climática Global (WWA), baseada no Reino Unido, relatou que, em apenas 26 eventos meteorológicos examinados, as mudanças climáticas "haviam contribuído para pelo menos 3.700 mortes e o desalojamento de milhões".

Entretanto, como não se levaram em consideração quase 200 outros episódios de inundação, seca ou intempérie extrema, a conclusão é que o número real de mortos possa estar na casa "das dezenas ou centenas de milhares".

<><> Terra "envia sinais de socorro"

Baseado em contribuições científicas de diversos grupos de especialistas, o relatório da OMM também citou como fator agravante a transição do eventoLa Niña, que baixa as temperaturas, para El Niño, que aquece. No entanto, enfatizou que as temperaturas atmosféricas são apenas uma peça de um quadro maior.

Com os mares absorvendo 90% do calor atmosférico excessivo, 2024 teve as taxas mais altas de aquecimento oceânico em 65 anos de registros. Isso impacta os ecossistemas marinhos, reduzindo a biodiversidade e a capacidade do mar de absorver carbono. Oceanos mais quentes estão ainda relacionados a tempestades tropicais e níveis mais elevados de acidificação, os quais prejudicam os habitats aquáticos e, consequentemente, o setor pesqueiro.

Como a água quente se expande e precisa de mais espaço, o fato também contribui para o aumento do nível do mar, o qual "tem impactos em cascata sobre ecossistemas e infraestruturas litorâneos, além de provocar danos por inundações e contaminar a água subterrânea com o sal oceânico.

"Nosso planeta está enviando mais sinais de socorro", comentou em comunicado o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, ressalvando: "Mas esse relatório mostra que ainda é possível limitar a 1,5ºC o acréscimo da temperatura global no longo prazo." Caberia aos líderes "agir para fazer que isso aconteça", ao "aproveitarem os benefícios das energias renováveis baratas, limpas, para seu povo e economias".

<><> Energia renovável em alta – mas vai bastar?

Em 2023, as fontes renováveis geraram um recorde de 30% da eletricidade global, com a solar, eólica e geotérmica à frente. Mesmo os Estados Unidos estão apresentando crescimento continuado no setor solar – apesar das medidas de Donald Trump para fazer retroceder as normas de proteção climática em favor de mais extração de combustíveis fósseis.

Com o avanço na instalação de unidades de produção e na infraestrutura de armazenamento, atualmente o sol cobre mais de 7% da demanda de energia do país. O custo da energia limpa também caiu drasticamente nos EUA na última década.

Durante a apresentação de uma análise de custos, em fins de 2024, o diretor-geral da Agência Internacional de Energias Renováveis (Irena, na sigla em inglês), Francesco la Camera, enfatizou que o custo da energia renovável caíra tanto, que "os preços não são mais uma desculpa, pelo contrário".

Apesar dessa mudança de marcha em favor das fontes renováveis, os cientistas seguem alertando sobre a necessidade de ação muito mais ampla e mais rápida, assim como de remover CO2 da atmosfera – se é para haver ainda alguma chance de manter o aquecimento do planeta abaixo da marca de 1,5ºC.

 

Fonte: DW Brasil

 

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