Uma quilombola contra as eólicas
Cleomar Ribeiro da Rocha é quilombola e
pescadora do território quilombola do Cumbe, habitado por aproximadamente 170
famílias (cerca de oitocentas pessoas), que vivem do mar, das dunas e do
mangue, localizado no município de Aracati, no litoral leste do Ceará, a cerca
de 160 quilômetros de Fortaleza. O território é atingido por uma usina eólica
da Companhia Paulista de Força e Luz Energia (CPFL), pela carcinicultura [criação
de camarões em cativeiro], por empreendimentos turísticos e pelo derramamento
de petróleo que afetou o litoral nordestino em 2020. Cleomar participou
ativamente dos cursos de extensão “Direitos e saberes feministas em tempos de
pandemia” (realizado em 2021) e “Mulheres em defesa do
território-corpo-terra-águas” (realizado em 2022). Durante este último,
organizamos um intercâmbio entre as mulheres participantes do curso e
referências dos territórios da nascente e foz do rio Jaguaribe, curso de água
que banha o Ceará. Cleomar foi uma das anfitriãs do encontro.
LEIA A ENTREVISTA:
• Cleomar,
conta para nós sobre você e seu território.
Cleomar: Sou Cleomar, mulher das águas, sou
quilombola, uma defensora dos direitos humanos. Somos a voz do território, quem
está aqui é um pedacinho do território, trazendo toda uma luta e resistência.
Sou do Ceará, Aracati, litoral leste, vivo no território quilombola do Cumbe.
Para quem não conhece, temos uma parte que é área de manguezal, outra que é
área de duna e mais uma que é de praia. Áreas com as quais sempre tivemos
relação, que me representam, porque sou uma mulher pescadora, uma marisqueira.
Este território é minha ancestralidade, um território-vivência, um
território-memória. Eu cresci aqui, conheço cada cantinho com muito amor, com
muito afeto. O pertencimento do cuidado, de ver o território como um professor,
como um educador. Digo que o território nos ensina muito, e, por termos acesso
a cada cantinho, nós pescávamos na lagoa, na praia; produzíamos nossa farinha,
assávamos os peixes. Então, esse território significa muito, ele é identidade!
Não sei falar de mim sem falar do território. E, como disse, sou a voz do
território! Falo sobre a relação com ele, com o manguezal, com as áreas de
dunas, com as lagoas, a praia, o mar… Vivi dentro do manguezal, de onde me
alimentei, esse território que me deu água quando tive sede, um território que
traz espiritualidade, encantaria. Inclusive, como temos pescas periódicas, no
inverno e no verão, o território é dinâmico, passa por mudanças constantes. A
gente acompanha todas as fases que o território naturalmente tem. Digo que a
gente vai de acordo com as marés. É o território que faz a leitura, a gente vai
sendo conduzida nesse processo. É essa relação que me faz, cada vez mais,
resistir e lutar! Porque dizemos que o território sofre, e nós sofremos, porque
somos território! Quando nosso território é impactado, degradado, destruído,
poluído, nós também somos! Sentimos os mesmos sintomas do território!
• Considerando
o que o território significa para você, como você analisa os impactos dos
grandes projetos de infraestrutura que estão acontecendo no Cumbe?
Vou falar sobre a chegada da usina eólica no
território quilombola do Cumbe para vocês entenderem como é instalado um
empreendimento desse porte, mesmo com a ideia de energia limpa, energia
renovável que vai melhorar a vida de todo mundo, uma energia que não destrói. É
essa a discussão, é esse o discurso do desenvolvimento que chega à comunidade.
Essa usina eólica chega com 67 aerogeradores. Fomos um dos primeiros
territórios no Ceará a padecer dos impactos negativos, com a chegada da notícia
de que a usina seria instalada em Canoa Quebrada, praia situada ao lado do
nosso quilombo. Então, começou assim, sem a gente saber se seria no Cumbe. E
como chega? Chega trazendo violência, violando os nossos corpos; os nossos
corpos estão oprimidos dentro do nosso próprio território, ao qual ficamos sem
acesso pleno.
A gente costuma dizer: “De que adianta um
povo livre num território preso?” Território ao qual estamos sem acesso.
Durante a instalação da usina, nossas crianças não iam mais para a escola
sozinhas; surgiram muitos bares e, com isso, bebida; mulheres e crianças
vulneráveis, expostas à exploração sexual, devido ao grande número de trabalhadores
homens vindos de outras cidades; muita poeira dos caminhões gerando problemas
respiratórios; problemas psicológicos. Tudo muito invasivo até hoje, com muitas
restrições ao mar, às dunas. E tem mais. Na década de 1990, a gente também
enfrentou a chegada da carcinicultura,1 o camarão criado em cativeiro que
domina toda essa área de manguezal. Área onde eu fui mais cuidada, mais
alimentada, e de onde até hoje eu me alimento. Nas áreas de praia e duna, tenho
uma relação com as enchentes que a gente tinha no território, e a gente tinha
que morar nas dunas. A gente criou uma relação, plantávamos na duna, pescávamos
nas lagoas e no mar, colhíamos frutas, tínhamos uma relação ancestral, um lugar
de afeto. Ahhh, muito afeto!
A cachaça do Cumbe era uma cachaça muito
afamada, conhecida. E, como o quilombo está localizado em uma região de um
coronelismo muito grande de terras, de novos engenhos, onde já se trabalhava
com a cachaça por muito tempo, diziam que o mangue não tinha importância, que a
duna não tinha importância. Não tinha importância para eles, né?! E é por tudo
isso que a gente discute o racismo, o racismo ambiental que afeta o nosso
território. E que afeta também a nossa saúde dentro de um lugar que está
destruído, fragmentado. Em poucas palavras, a carcinicultura nos tirou do
mangue, o parque eólico nos tirou da duna.
• Cleomar,
quais os impactos da usina eólica?
É tudo muito grande, muito gigante, você se
assusta com aquele poder. A usina entra em uma comunidade que não tinha
estrutura para receber um empreendimento desse tamanho. Por isso, lutamos de
todas as formas para impedir. Mas já estava tudo decidido antes mesmo de
chegarem aqui, até porque o processo foi escondido da gente, diziam que era em
Canoa Quebrada. Aí, quando a gente percebe, a usina está sendo construída
praticamente dentro do nosso território. Sofremos muito com isso, foi como se
nossa vida tivesse virado do avesso. Estamos falando de uma comunidade onde
muitas casas eram de taipa. E, com o empreendimento, muitas casas caíram. A
igreja quase caiu, a escola quase caiu. Tem o impacto de carros pesados indo e
vindo, o impacto das torres eólicas pesadas dentro do quilombo, dentro de uma
comunidade que não tem estrutura. Não tinha como se preparar para uma estrutura
dessas. Primeiro, entrou uma empresa para trabalhar nas dunas. O mais doloroso,
nesse período de construção, era ver a devastação do território, a devastação
das nossas lagoas sendo enterradas. Eles demarcaram toda a área, da estrada
onde passavam os caminhões até o local de instalação de todas aquelas hélices,
aquelas torres. E muitas dessas torres estão em lagoas tradicionais. Nós temos
várias lagoas tradicionais na comunidade em área de duna e eram nessas lagoas
onde passariam as estradas. Eles enterraram muitas lagoas. Não dava para
acreditar em tanta destruição, naquele rasgado no território gerado pela usina
eólica.
Como suportar tanta destruição de uma
“energia limpa”? Então, olha o papel dessa “energia limpa”: destruir
comunidades, destruir nossa vida, destruir nossas práticas e devastar o nosso
território. Muitas pessoas perguntam: “Cleomar, mesmo com esse processo de
construção, essa violência, essa degradação todinha, hoje é tranquilo?” Hoje, a
situação é ainda mais grave. Eles são muito rasteiros, são muito maus!
Os empreendimentos visam somente o lucro! E é
como se a gente não fizesse parte da terra, porque em nenhum momento nós somos
vistos. Oh, ali tem um povo, tem as práticas culturais deles, tem a relação
deles com o lugar, a cultura de ir à praia, de ir ao mangue, de ir às lagoas,
de colher fruta, de buscar lenha. Acabaram com nossas práticas culturais nas
dunas, até porque hoje a gente tem um campo minado de redes de fiação elétrica.
E é bom lembrar que as dunas móveis têm um papel, nem eles conseguem conter a
força delas. Eles têm máquinas trabalhando todos os dias, todos os dias, todos
os dias! Tem vezes que eles não controlam a força da duna, e de um dia para o
outro ela se move muito rápido. Por causa dessa destruição, por causa da usina
eólica, perdemos a nossa autonomia, a nossa identidade. A gente fica perdido no
território. Então, apesar de o discurso ser de produção de uma energia boa, de
uma energia limpa, de uma energia que não produz poluição, na prática ela está
destruindo comunidades, está destruindo ancestralidades.
Que isso fique explícito, porque a ideia é
que essa energia seja “limpa”, mas a gente contextualiza: “Olha, a energia não
me deixa passar no meu território, a energia não me deixa mais fazer minhas
práticas, a energia não me deixa mais usufruir das lagoas, pescar nas lagoas,
ir à praia!”. Olha o papel desta “energia limpa”! Ela é sustentável? Ela é
renovável? Destruindo mulheres, seus corpos, não só o meu, mas de quem vive na
comunidade. E aí, quando chegamos a esse nível de adoecimento é porque estamos
fragmentados, assim como o território! O território resiste até onde pode, e
nós, através da nossa relação com a terra, o lemos pedindo socorro. Como somos
território também, estamos sentindo. A gente reflete a dor, a destruição; a privatização
que a terra está sofrendo é a nossa privatização também. Porque eu não sou
liberta, sou escrava ainda, no sentido de não ter mais minha liberdade no
território. E a escravidão, a gente sabe que se renova dessa forma, esse tipo
de escravidão da gente acorrentada no próprio território, nós somos impedidos
de concluir nossas práticas. Tanto em áreas de manguezal, pela carcinicultura,
quanto em áreas de duna, pela usina eólica.
• Como
vocês lidam com o enfrentamento de um projeto construído usando o discurso da
energia limpa, como você mencionou anteriormente, em nome da transição
energética?
Como a energia eólica vem com esse discurso
de energia limpa, quem era doido de se dizer contra esse empreendimento? Os
empreendedores diziam na nossa cara: “Os movimentos pediam a energia limpa,
então chegou essa energia.” Tanto que hoje eles ainda dizem, eles
contextualizam isso, “é uma energia que vocês pediram.” Mas essa energia tem
que ser contextualizada, porque, como fomos o primeiro território quilombola a
receber esse tipo de empreendimento aqui no Ceará, fomos também a primeira
comunidade a contextualizar que energia limpa de fato era essa.
Como é que essa energia é limpa se vem
destruindo comunidades, vem destruindo povos, vem destruindo ancestralidade, vem
destruindo práticas? Eu não posso mais continuar com as minhas práticas
culturais, estou proibida, estou limitada, estou sendo expulsa de um território
que é tão importante para mim, para nossas práticas. Eu digo que o território é
estruturante, porque traz essa reprodução cultural, ancestral, social,
econômica, mas hoje a gente tem que viver de estratégias, incidências. Como
viver no território atingido por tantos projetos? Como se reinventar hoje para
ter um território para viver, para que a nossa ancestralidade, nossas práticas
não sejam todas exterminadas por conta de um parque eólico que se diz limpo?
Essa energia não é limpa. Nós estamos com os corpos destruídos, nossos corpos
estão fragmentados, nossos corpos estão oprimidos por um parque eólico que se
diz limpo. Para as empresas, as nossas vidas não importam, não são impactadas.
E a gente traz essa contextualização para afirmar que ele não é limpo, porque
está afetando um território que tem esse significado importantíssimo para a
gente.
• Diante
de todas essas violências, silenciamentos, violações, impedimentos de
praticarem suas atividades, seus modos de vida, como vocês se organizam?
A associação quilombola vem num processo
intenso de luta, em que costumamos dizer que o que está acontecendo hoje estamos
há tempos alertando. Estamos denunciando desde o início de nossa luta, falando
sobre o papel dessa “energia limpa” no nosso território. Para chegarmos à
praia, por exemplo, temos que ter um acordo. Isso porque precisamos circular,
precisamos passar para pescar, para acessar a praia, as nossas lagoas, as
nossas áreas. Então, é uma luta constante, uma luta diária, é uma luta para
gente se manter aqui, porque a eólica não nos deixa transitar.
Para eu chegar à praia ou às lagoas, tenho
que passar por essa usina eólica. E aí, se você for perguntar à direção da
empresa se somos impedidos, eles dizem: “Não, eles passam. O cuidado que a
gente tem é de orientar para que eles não corram nenhum risco.” Destaco que o
risco faz é tempo que estamos correndo, desde que escutamos falar destes
empreendimentos. A empresa é cada vez mais violenta. Para a gente passar, a
gente tem que brigar, brigar para chegar ao nosso cemitério. É tudo muito
agressivo por parte dessa usina, que se diz “limpa.” Para a gente chegar ao nosso
cemitério, que é um cemitério secular, considerado sagrado, temos que pedir
permissão. No início, tínhamos que escrever um ofício quando alguém morria. Nós
tínhamos um caminho para chegar ao cemitério que foi destruído pela
carcinicultura. Para irmos à duna, a gente tinha que fazer um ofício para a
empresa. Isso mudou depois que fizemos um acordo, um Termo de Ajuste de Conduta
(TAC), para que pudéssemos passar para enterrar nossos mortos, nossos entes
queridos. Então, não é qualquer dia que podemos ir ao cemitério.
Vejam a gravidade disso tudo! Mas isso parece
ser tão banal, tão certo. Para nós, é tão violento ter uma “energia limpa”, e
sermos maltratados por essa “energia limpa”! A gente está sendo destruído, a
gente está sendo expulso por essa “energia limpa”!
Mas seguimos resistindo. Organizamos, todos
os anos, a Festa do Mangue,2 que já era uma prática nossa, mas a oficializamos
como forma de resistir, como forma de luta, de fortalecimento, de dizer que
existimos, de identidade. Minha identidade é o mangue, minha identidade é o
território, e as consequências se refletem em nossos corpos, em nosso
adoecimento, em criminalização, perseguição. Assim, nos organizamos, como
associação, para também combater isso. Nós costumamos dizer que somos um povo
festeiro que gosta de dançar também. E a festa do mangue traz muito isso, essa
forma de combater toda a opressão que vivemos dentro do território. Então,
somos um povo quilombola, pescador oprimido por uma “energia limpa”. Uma outra
forma que temos de nos organizar é o Bloco Carambola, que também é uma festa, a
gente desfila no carnaval cultural. A gente criou uma agenda para ter, em cada
mês, uma comemoração, como, por exemplo, o Dia do Quilombo, dia da nossa
certificação. Também fazemos muita aula de campo perto da usina eólica. A gente
não entra, mas realiza as aulas, sabemos que há vigilância e também perseguição
à nossa ida. Uma das coisas que o empreendimento fez foi dividir a comunidade.
Vemos isso em vários territórios, a divisão imposta pelas empresas, que buscam
dividir para dominar. Dividir é uma estratégia colonialista.
• Como
tem sido o processo de luta em defesa do seu território e do seu corpo, como
mulher, quilombola, pescadora?
Dentro de um quilombo cheio de conflitos,
cheio de perseguição, a gente ainda tem a força para buscar nossa identidade,
nossa história e ancestralidade que o colonialismo tenta apagar. Digo que
estamos costurando nossa história apagada pelo colonialismo, pelos coronelismos
da região. E, por isso, é importante estarmos nesses espaços, não tem nada mais
verdadeiro do que trazermos a nossa realidade, falarmos por nós. A nossa
história foi sempre muito contada na visão do colonizador, e a gente precisa
contar nossa própria história, nossa própria realidade, e não deixar que falem por
nós. A colonização é um processo em que eu não posso ser, não posso pensar,
fazer outra leitura da vida, da história, não posso ser uma mulher rebelde, não
posso ser uma mulher de luta, não posso ser uma mulher que resiste. Meu
pertencimento, minha história, minhas práticas são mais gritantes do que tudo o
que me inferiorizou a vida inteira, em que tentaram impor que eu não tinha
condições. O patriarcado não me deixou estudar e cortou sonhos. O patriarcado
mata! Hoje, me orgulho de defender meu território, defender a mulher que sou,
as mulheres que estão na luta. Quero dar visibilidade à potência que somos, nós
mulheres somos potentes, mesmo sofrendo com a colonização, com o sistema
capitalista que se impõe sobre nossas vidas. A minha infância foi isso e me fez
essa mulher de luta, tenho pressa de lutar,
de mudar a história. Agradeço também às
organizações que nos apoiam, que nos acolhem, cuidam de nós quando saímos dos
territórios para encontros com outras mulheres, isso é muito bom! Sem dúvidas,
além do processo de enfrentamento dentro dos territórios, nos sentimos amadas e
cuidadas! Lá, com as empresas e as outras pessoas de fora da comunidade, o
cenário é outro. Parece que somos as vilãs, o povo do mal!
É esse o entendimento que é passado para nós.
A gente defende a vida; ao mesmo tempo, parece que a luta de nós, mulheres, em
defesa do território, é marginalizada. Tive que sair do mangue, trabalhando com
marisco, para defender o território, para defender o mangue. Era o meu
autocuidado: trabalhar na maré, ver as marés, a cheia, a seca. Nós temos os
processos dentro dos territórios, somos cuidadas, até para trabalhar! O
manguezal cuida, cuida de nós. No trabalho, não sentimos que estamos
trabalhando, nos sentimos cuidadas. Dali, a gente leva o alimento. Tive que
sair para fazer esse papel do cuidado. E, como disse, nós somos o território,
essa dor está em nós. E aí, você faz a leitura da terra, o mangue está sendo
degradado, as nossas águas estão sendo poluídas, os nossos oceanos estão sendo
privatizados, porque a eólica também diz que é dona das nossas praias. Nos
períodos de inverno, temos as pescas, temos uma relação muito grande com
aquelas dunas, com as lagoas, vamos buscar ervas e não vamos mais para esses
lugares. Isso é muito doloroso, isso traz adoecimento!
Estamos aqui com áreas de manguezal sendo
destruídas, são mais de dez hectares ocupados pela carcinicultura, perdemos o
acesso. Às vezes, dizem assim: “nós somos frágeis!” Mas são essas situações que
nos fragilizam! E para a gente sair de nossas origens, de nossas práticas,
enfrentar outros cenários, estar em outros lugares, para defender esse
território, que é importante para as gerações que vêm, precisamos estar
fortalecidas. Enquanto digo que estou sendo expulsa, estou sendo oprimida, a
energia eólica diz ser uma “energia limpa”! Quem está mentindo? Porque não
somos vistas, e, muitas vezes, acham que somos uma fraude quando digo que estou
sendo expulsa, que estou sendo oprimida dentro de um território por uma energia
que se diz limpa!
É um sofrimento muito grande. Eu choro. Cada
dia é um desafio. É tão forte, é tão doloroso! Acho que passar meus sentimentos
de indignação, da injustiça que sentimos dentro dos territórios é importante. O
território tem uma representação muito grande em minha vida! O mangue sofreu,
em grandes períodos, por ser um lugar fedido, nojento! Mas ele me alimentou a
vida inteira, me alimenta! O mangue é o berço da vida, para termos nossos
peixes nos oceanos, precisamos cuidar dos nossos manguezais! Às vezes, em
alguns momentos, quando não conseguimos falar, nos abraçamos, porque a fala não
sai, a dor é grande! E a gente revê nossas estratégias: “como é que a gente vai
fazer?” Tem hora que a gente não tem saída, mas a gente também avalia onde está
o problema, a gente identifica onde está, como rebater tudo isso? Que crime eu
cometo por defender meu território? Qual é o crime?
É um direito meu viver o meu modo de vida, é
regra para mim, o que minha comunidade me ensinou para mim é regra! Cuidar do
meu quintal produtivo, ir para a minha pesca, ir para o meu passeio, porque o
território faz esse autocuidado. Eu fui, a vida inteira, cuidada por um
território que me proporcionou tudo o que eu queria! A luta me ensinou muito a
ter esse papel de mulher dentro do território, mas saímos de lá, do quilombo,
muitas vezes criticadas, aquele preconceito do racismo de dizer “o que essas
mulheres estão fazendo lá no Rio de Janeiro?”. Se o meu filho está, por
exemplo, com alguma dificuldade no colégio, dizem que ele está ruim porque a
mãe dele não pára em casa. Isso mexe, isso dói! O processo que nós, mulheres,
enfrentamos para estar na luta! Eu já ouvi dizer “coisa feia, mulher estar na
luta, mulher brigando!”.
Aprendi e aprendo muito, muito, com outras
mulheres em luta. Cada mulher, que escuto falar da sua luta, me fortalece no
meu território. O processo de defesa do território não é fácil, é muito
adoecedor! É constante, é constante a injustiça! O carcinicultor, os
empresários da usina eólica apontam o dedo na nossa cara constantemente! Somos
vigiadas dentro do nosso território o tempo todo! Para eu andar no território,
andar nas dunas, tem vigília atrás de mim! Queria eu poder tirar aquelas
torres, eu não posso carregar uma torre daquela! Então, aqueles vigias são para
quem? São para nós, para nos vigiar e nos criminalizar! E a gente responde
processos judiciais. É por isso que estamos no programa de defesa dos direitos
humanos, porque somos constantemente ameaçadas, porque fazemos nossa defesa,
nossa luta. Por fim, a minha formação foi a do território, essa formação que me
deixou mais humana, e que eu, como mulher negra pescadora, tenho que ter, tenho
que fazer algo, não sou covarde, tenho que lutar por esse território, mesmo
adoecida, mesmo com esse processo violento que estamos vivendo! Adoecida, eu
estou lutando!
Fonte: Por Cleomar Ribeiro da Rocha, em
entrevista a Elisangela Paim e Fabrina P. Furtado, em Outras Palavras

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