Bolsonarismo que apoia Frei Gilson é o mesmo
que já perseguiu católicos e vaiou padre no Santuário de Aparecida
E cá
estamos nós, novamente, disputando a magia. De repente, todo
mundo lembrou que o Brasil, apesar do fenômeno evangélico, é um país no qual
cerca de metade da população ainda é católica. Isso se deu após
cortes incluindo falas do Frei Gilson, sacerdote da Ordem dos Carmelitas
Mensageiros do Espírito Santo, viralizarem nas redes.
Neles,
ouvimos: “É claro ver que Deus deu ao homem a liderança. É claro ver que Deus
deu ao homem ser o chefe. Isso está na Bíblia. O homem é o chefe do lar, foi
dado a ele liderança (…) Mas a mulher tem o desejo de poder. Não é desejo de
serviço, desejo de poder. Repito a palavra: empoderamento. Essa palavra é do
mundo atual. A guerra dos sexos é ideologia pura e diabólica” .
Um
compartilhamento, dois compartilhamentos, milhões de compartilhamentos e BUM,
estava lançado aquele combustivelzinho gostoso para extrema direita e imprensa
voltarem a escrever “esquerda ataca”, “esquerda critica”, “esquerda erra” etc
(aliás, façamos um exercício: coloquem “esquerda erra” e “direita erra” em seus
buscadores e vejam que interessante e assimétrico é o resultado).
Duas
coisas sobre o episódio: primeiro, estamos falando de um pároco, um homem que
fez da pregação cristã sua profissão. E na Igreja Católica, principalmente em
suas alas mais conservadoras, o poder patriarcal e a família regida pelo homem
continuam sendo um pilar – embora no Brasil as mulheres chefiem, sozinhas, quase
metade das famílias. Sabemos que, quando se trata de religião, os dogmas
geralmente deixam, para azar de muita gente sofredora, os fatos no chinelo.
Eu
ficaria extremamente impressionada se um frei conservador falasse para seus
milhões de fiéis que as mulheres têm o mesmo poder e capacidade de liderança de
um homem. Se falasse que eles deviam se dedicar a serem melhores para suas
companheiras, filhas, sobrinhas, netas, colegas.
Seria
maravilhoso, principalmente em um momento no qual um novo recorde de violência em
relação a elas veio à tona: pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
(FBSP) ouviu mais de mil mulheres e mostrou que 37,5% delas já sofreram algum
tipo de violência. Da primeira edição do estudo, em 2017, até aqui, as
agressões cometidas por maridos, namorados ou companheiros foram de 19,4% para
40% dos casos, ou seja, mais do que dobraram. Mas não sei se o Frei Gilson,
apesar de acordar tão cedo, conseguiu ler essa notícia nos jornais.
A
segunda coisa extremamente natural, mas alardeada como se fosse o fim do mundo,
é que setores progressistas critiquem falas que promovam a subjugação do outro
– no caso, da outra. Deveríamos ficar assombradas se a esquerda aplaudisse e
desse vivas para as declarações do frei, afinal de contas.
É
evidente que elas irão provocar reações contrárias desses nichos, mas isso é comunicado
em sites e redes como se, de repente, milhões de pessoas vestidas de vermelho e
abraçadas aos fantasmas do comunismo e da lacração, estivessem cozinhando um
santo homem no óleo quente. O jornalismo que adora um genuflexório esquenta as
mãozinhas e começa a mandar ver no “comete deslize”, “se equivoca” e outras
mumunhas mais.
O ponto
central é que o Frei Gilson não representa toda a Igreja Católica, assim como
Silas Malafaia não representa todos os evangélicos.
Temos
líderes e grupos católicos ultraconservadores ao redor do mundo desde muito
antes de Keith Richards nascer: os Arautos do Evangelho, por exemplo, fazem parte desse
nicho. Em dezembro de 2021, eles apresentaram uma cantata de Natal para Jair
Bolsonaro, como mostra reportagem da BBC Brasil. Temos, ao mesmo
tempo, lideranças católicas que foram para as redes se opor ao que Frei Gilson
falou, como o franciscano Frei Sérgio Görgen, ligado a movimentos
sociais camponeses. No Instagram, ele lembrou ao colega em Cristo sobre os
altos índices de feminicídios no Brasil.
“Empoderamento
feminino é bíblico. Maria de Nazaré, Mãe de Jesus, é o principal exemplo, como
rezamos na Ave Maria e repetimos no terço, a qualquer hora do dia”, escreveu.
Vale dizer, é sempre bom lembrar, que há nichos progressistas entre
evangélicas/os, como demonstra pesquisa realizada por
Luísa Chada e Maria Eduarda Antonino, da Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE).
Embora
a maior parte da imprensa tenha preferido chicotear essa tal esquerda diabólica
que só faz, segundo a mesma, caçar like e errar, dois nomes contrários aos
pressupostos da extrema direita procuraram baixar a temperatura da polêmica no
debate digital: os deputados federais Tabata Amaral,
do PSB de São Paulo, e André Janones, do Avante de Minas
Gerais.
Tabata
deixou claro que discordava das falas machistas do frei, mas lembrou que sempre
frequentou a igreja católica e ali encontrou segurança e conforto – algo
parecido com a história de parte da minha família. Janones chamou atenção da
militância mais próxima ao PT para dizer que é preciso ter cuidado no
endereçamento das críticas, uma vez que a popularidade do presidente Lula está
claudicante. Acertaram.
O
deputado, ao endereçar corretamente a crítica, conseguiu a proeza de ser
manchetado positivamente pela Gazeta do Povo, enquanto Tabata recebeu um joinha da
vereadora de São Paulo Janaína Paschoal, do PP, por seu posicionamento. Na
Crusoé, a reação da parlamentar foi interpretada como um aceno da esquerda ao frei.
- Baderna no
santuário
É bem
importante lembrar que a parte do bolsonarismo que agora se mostra muito
oportunamente solidária ao Frei Gilson foi a mesma que vaiou padres e perseguiu
pessoas em um dos dias mais importantes para os católicos, o 12 de outubro de
Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil.
Naquele
dia, em 2022, o então presidente resolveu fazer política no santuário. Dezenas
de seus apoiadores, muitos deles vestidos de verde e amarelo, perseguiram fiéis
– especialmente um rapaz que vestia vermelho – e uma equipe de TV, atos
abertamente fascistas.
Ainda vaiaram o arcebispo Dom Orlando Brandes, que,
enquanto o ex-presidente e sua turma tumultuavam a festa, falou sobre vencer
“os dragões do ódio, da mentira, do desemprego, da fome”. Um ano antes, em 12
de outubro de 2021, Dom Orlando Brandes já havia dito que “para ser pátria
amada, não pode ser pátria armada”. “Para ser pátria amada, [seja] uma
república sem mentira e fake news. Pátria amada sem corrupção e pátria amada
com fraternidade”, disse, na ocasião, para milhões de pessoas que o
acompanhavam na celebração, TV e redes sociais.
Outra
pessoa vaiada foi o missionário Camilo Júnior, que rezava em praça pública e
também pedia pelo fim da fome e por proteção às crianças. Depois, o
missionário criticou a exploração
política do evento. “Deus tá aqui”, dizia um homem de verde e amarelo que bebia
cerveja e apontava para uma caneca decorada com uma foto de Bolsonaro. Passados
alguns dias, 450 padres que se declararam
antifascistas emitiram
uma nota contra o ato bolsonarista.
Apesar
do recente histórico de achaques contra católicos, a tropa bolsonarista, craque
em oportunismo, se capitalizou com o anacronismo de Frei Gilson. Contou
novamente com uma mãozinha do jornalismo, que perdeu a chance de, por exemplo,
manchetar as falas do padre confrontando-as com os índices de violência que
vitimizam as mulheres no Brasil de hoje.
Perdeu
a chance de reexibir o fascismo declarado dentro e nos arredores da Basílica de
Aparecida em 2022, expondo todo o oportunismo de nomes como o deputado federal
Nikolas Ferreira, do PL de Minas Gerais – ele, é claro, falou sobre o assunto
nas redes. Cochilou ainda o PT, um partido cuja origem tem também raízes na
igreja católica e nos preceitos da Teologia da Libertação (essa dissertação conta essa
história).
Faz
tempo que essa raiz e toda sua capilaridade foram deixando de ser adubadas pelo
partido. Com popularidade em declínio e 2026 à porta, é bom lembrar que, entre
tantos milhões de cristãos no Brasil, cerca de 50% deles ainda professam sua fé
para Gilsons, Sergios, Orlandos e Arautos.
¨
Editor do Intercept recebe ameaças de morte após
reportagem sobre bolsonarista foragido na Argentina
O jornalista
Paulo Motoryn, editor e repórter do Intercept Brasil em Brasília,
está recebendo incessantes ameaças de morte e violência física desde a última
quinta-feira, 13, quando publicou uma reportagem sobre um golpista condenado
pelo 8 de janeiro que está na Argentina.
Na
reportagem, mostramos que Josiel Gomes de Macedo, condenado a 16 anos de prisão
por incendiar uma viatura e comprar equipamentos militares para a tentativa de
golpe de estado, vive tranquilo e impune em Buenos
Aires apesar
de ter um mandado de prisão aberto no Brasil.
Segundo
o Supremo Tribunal Federal, o paradeiro de Josiel era desconhecido desde que
ele quebrou a tornozeleira, após a condenação em junho de 2024.
A
reportagem escancara não apenas a leniência das autoridades argentinas em
relação a um condenado pelo 8 de Janeiro – mas também a tensão diplomática
entre os governos do Brasil e o da Argentina.
Jair
Bolsonaro e seu filho, Eduardo, deputado federal pelo PL de São Paulo, se
envolveram pessoalmente no caso, com apelos para que o governo de Javier Milei
dê asilo político aos golpistas brasileiros.
Depois
da nossa reportagem, foi justamente um retuíte de Eduardo Bolsonaro que fez
crescer a onda de ódio contra Motoryn e o Intercept. Além dele, outras
personalidades e figuras públicas destilaram xingamentos, como “Judas” e
“rato”, e incitaram ódio ao dizer, por exemplo, que Motoryn “desperta instintos
primitivos”.
O
próprio Josiel, em uma live, também fez ameaças ao repórter. “Todo mundo agora,
a partir de agora, está de olho em você. Já sabe quem é você. Já sabe o que
você fez. E também vão atrás de você. Você pode ter certeza disso”, ele
disse.
Mas não
parou por aí. Sobretudo no X, bolsonaristas partiram para ameaças mais
agressivas. “Vamos arrancar sua cabeça”, “tu vai implorar pela anistia” e
“merece um banho bem dado com água sanitária” são algumas das ameaças
gravíssimas, que incluíram posts com endereço e informações pessoais do
jornalista, além de menções a membros da sua família.
A
campanha foi orquestrada por uma rede de defensores dos golpistas, que inclui
emissoras de rádio e televisão e perfis influentes, além de políticos e outras
personalidades. Além de escancarar a estrutura de proteção da extrema direita
aos golpistas de 8 de Janeiro, também evidencia que esse grupo é capaz de atos
violentos e criminosos para fazer valer sua posição política.
Para
quem alega que essas pessoas são “vítimas” e “reféns”, causa surpresa que
apelem para violência tão rapidamente por causa de uma reportagem.
Mas nós
não toleraremos. Um boletim de ocorrência foi registrado, e o Intercept já
encaminhou à polícia os posts com ameaças, verificados com uma ferramenta
forense, como provas. Esse tipo de ataque ao nosso trabalho e a um membro de
nossa equipe é inadmissível.
Ao
contrário de Josiel e outros golpistas condenados, Paulo Motoryn está fazendo o
seu trabalho: revelar fatos de interesse público. Ataques violentos como esse
são uma tentativa de intimidar e sufocar o jornalismo que tem coragem de bater
de frente com o bolsonarismo e chamar essas pessoas pelo que elas são:
golpistas que tentaram derrubar o estado de direito no Brasil.
Nós,
mais uma vez, seguiremos fazendo o nosso trabalho, mostrando como essa rede se
articula, se financia e ataca seus adversários. Agora, com ainda mais elementos
sobre a violência e a organização desse grupo.
Por
que, como a história já mostrou, se aceitarmos a impunidade, aceitaremos também
esse tipo de ameaça violenta como regra. Criminosos devem ser punidos, como
prevê a lei, e pagar pelo que fizeram. Neste caso, as vítimas foram o nosso
editor e o nosso jornalismo. Mas a ameaça é maior e paira sobre todos nós que
lutamos para garantir que nosso país seja livre e seguro para todos.
Fonte: Por Fabiana de Moraes, em The
intercept

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