quarta-feira, 19 de março de 2025

Bolsonarismo que apoia Frei Gilson é o mesmo que já perseguiu católicos e vaiou padre no Santuário de Aparecida

E cá estamos nós, novamente, disputando a magia. De repente, todo mundo lembrou que o Brasil, apesar do fenômeno evangélico, é um país no qual cerca de metade da população ainda é católica. Isso se deu após cortes incluindo falas do Frei Gilson, sacerdote da Ordem dos Carmelitas Mensageiros do Espírito Santo, viralizarem nas redes. 

Neles, ouvimos: “É claro ver que Deus deu ao homem a liderança. É claro ver que Deus deu ao homem ser o chefe. Isso está na Bíblia. O homem é o chefe do lar, foi dado a ele liderança (…) Mas a mulher tem o desejo de poder. Não é desejo de serviço, desejo de poder. Repito a palavra: empoderamento. Essa palavra é do mundo atual. A guerra dos sexos é ideologia pura e diabólica” .

Um compartilhamento, dois compartilhamentos, milhões de compartilhamentos e BUM, estava lançado aquele combustivelzinho gostoso para extrema direita e imprensa voltarem a escrever “esquerda ataca”, “esquerda critica”, “esquerda erra” etc (aliás, façamos um exercício: coloquem “esquerda erra” e “direita erra” em seus buscadores e vejam que interessante e assimétrico é o resultado).

Duas coisas sobre o episódio: primeiro, estamos falando de um pároco, um homem que fez da pregação cristã sua profissão. E na Igreja Católica, principalmente em suas alas mais conservadoras, o poder patriarcal e a família regida pelo homem continuam sendo um pilar – embora no Brasil as mulheres chefiem, sozinhas, quase metade das famílias. Sabemos que, quando se trata de religião, os dogmas geralmente deixam, para azar de muita gente sofredora, os fatos no chinelo.

Eu ficaria extremamente impressionada se um frei conservador falasse para seus milhões de fiéis que as mulheres têm o mesmo poder e capacidade de liderança de um homem. Se falasse que eles deviam se dedicar a serem melhores para suas companheiras, filhas, sobrinhas, netas, colegas. 

Seria maravilhoso, principalmente em um momento no qual um novo recorde de violência em relação a elas veio à tona:  pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) ouviu mais de mil mulheres e mostrou que 37,5% delas já sofreram algum tipo de violência. Da primeira edição do estudo, em 2017, até aqui, as agressões cometidas por maridos, namorados ou companheiros foram de 19,4% para 40% dos casos, ou seja, mais do que dobraram. Mas não sei se o Frei Gilson, apesar de acordar tão cedo, conseguiu ler essa notícia nos jornais.

A segunda coisa extremamente natural, mas alardeada como se fosse o fim do mundo, é que setores progressistas critiquem falas que promovam a subjugação do outro – no caso, da outra. Deveríamos ficar assombradas se a esquerda aplaudisse e desse vivas para as declarações do frei, afinal de contas.

É evidente que elas irão provocar reações contrárias desses nichos, mas isso é comunicado em sites e redes como se, de repente, milhões de pessoas vestidas de vermelho e abraçadas aos fantasmas do comunismo e da lacração, estivessem cozinhando um santo homem no óleo quente. O jornalismo que adora um genuflexório esquenta as mãozinhas e começa a mandar ver no “comete deslize”, “se equivoca” e outras mumunhas mais.

O ponto central é que o Frei Gilson não representa toda a Igreja Católica, assim como Silas Malafaia não representa todos os evangélicos. 

Temos líderes e grupos católicos ultraconservadores ao redor do mundo desde muito antes de Keith Richards nascer: os Arautos do Evangelho, por exemplo, fazem parte desse nicho. Em dezembro de 2021, eles apresentaram uma cantata de Natal para Jair Bolsonaro, como mostra reportagem da BBC Brasil. Temos, ao mesmo tempo, lideranças católicas que foram para as redes se opor ao que Frei Gilson falou, como o franciscano Frei Sérgio Görgen, ligado a movimentos sociais camponeses. No Instagram, ele lembrou ao colega em Cristo sobre os altos índices de feminicídios no Brasil. 

“Empoderamento feminino é bíblico. Maria de Nazaré, Mãe de Jesus, é o principal exemplo, como rezamos na Ave Maria e repetimos no terço, a qualquer hora do dia”, escreveu. Vale dizer, é sempre bom lembrar, que há nichos progressistas entre evangélicas/os, como demonstra pesquisa realizada por Luísa Chada e Maria Eduarda Antonino, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Embora a maior parte da imprensa tenha preferido chicotear essa tal esquerda diabólica que só faz, segundo a mesma, caçar like e errar, dois nomes contrários aos pressupostos da extrema direita procuraram baixar a temperatura da polêmica no debate digital: os deputados federais Tabata Amaral, do PSB de São Paulo, e André Janones, do Avante de Minas Gerais. 

Tabata deixou claro que discordava das falas machistas do frei, mas lembrou que sempre frequentou a igreja católica e ali encontrou segurança e conforto – algo parecido com a história de parte da minha família. Janones chamou atenção da militância mais próxima ao PT para dizer que é preciso ter cuidado no endereçamento das críticas, uma vez que a popularidade do presidente Lula está claudicante. Acertaram. 

O deputado, ao endereçar corretamente a crítica, conseguiu a proeza de ser manchetado positivamente pela Gazeta do Povo, enquanto Tabata recebeu um joinha da vereadora de São Paulo Janaína Paschoal, do PP, por seu posicionamento. Na Crusoé, a reação da parlamentar foi interpretada como um aceno da esquerda ao frei.

  • Baderna no santuário

É bem importante lembrar que a parte do bolsonarismo que agora se mostra muito oportunamente solidária ao Frei Gilson foi a mesma que vaiou padres e perseguiu pessoas em um dos dias mais importantes para os católicos, o 12 de outubro de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil. 

Naquele dia, em 2022, o então presidente resolveu fazer política no santuário. Dezenas de seus apoiadores, muitos deles vestidos de verde e amarelo, perseguiram fiéis – especialmente um rapaz que vestia vermelho – e uma equipe de TV, atos abertamente fascistas.

Ainda vaiaram o arcebispo Dom Orlando Brandes, que, enquanto o ex-presidente e sua turma tumultuavam a festa, falou sobre vencer “os dragões do ódio, da mentira, do desemprego, da fome”. Um ano antes, em 12 de outubro de 2021, Dom Orlando Brandes já havia dito que “para ser pátria amada, não pode ser pátria armada”. “Para ser pátria amada, [seja] uma república sem mentira e fake news. Pátria amada sem corrupção e pátria amada com fraternidade”, disse, na ocasião, para milhões de pessoas que o acompanhavam na celebração, TV e redes sociais. 

Outra pessoa vaiada foi o missionário Camilo Júnior, que rezava em praça pública e também pedia pelo fim da fome e por proteção às crianças. Depois, o missionário criticou a exploração política do evento. “Deus tá aqui”, dizia um homem de verde e amarelo que bebia cerveja e apontava para uma caneca decorada com uma foto de Bolsonaro. Passados alguns dias, 450 padres que se declararam antifascistas emitiram uma nota contra o ato bolsonarista.

Apesar do recente histórico de achaques contra católicos, a tropa bolsonarista, craque em oportunismo, se capitalizou com o anacronismo de Frei Gilson. Contou novamente com uma mãozinha do jornalismo, que perdeu a chance de, por exemplo, manchetar as falas do padre confrontando-as com os índices de violência que vitimizam as mulheres no Brasil de hoje. 

Perdeu a chance de reexibir o fascismo declarado dentro e nos arredores da Basílica de Aparecida em 2022, expondo todo o oportunismo de nomes como o deputado federal Nikolas Ferreira, do PL de Minas Gerais – ele, é claro, falou sobre o assunto nas redes. Cochilou ainda o PT, um partido cuja origem tem também raízes na igreja católica e nos preceitos da Teologia da Libertação (essa dissertação conta essa história).

Faz tempo que essa raiz e toda sua capilaridade foram deixando de ser adubadas pelo partido. Com popularidade em declínio e 2026 à porta, é bom lembrar que, entre tantos milhões de cristãos no Brasil, cerca de 50% deles ainda professam sua fé para Gilsons, Sergios, Orlandos e Arautos.

 

¨      Editor do Intercept recebe ameaças de morte após reportagem sobre bolsonarista foragido na Argentina

O jornalista Paulo Motoryn, editor e repórter do Intercept Brasil em Brasília, está recebendo incessantes ameaças de morte e violência física desde a última quinta-feira, 13, quando publicou uma reportagem sobre um golpista condenado pelo 8 de janeiro que está na Argentina. 

Na reportagem, mostramos que Josiel Gomes de Macedo, condenado a 16 anos de prisão por incendiar uma viatura e comprar equipamentos militares para a tentativa de golpe de estado, vive tranquilo e impune em Buenos Aires apesar de ter um mandado de prisão aberto no Brasil. 

Segundo o Supremo Tribunal Federal, o paradeiro de Josiel era desconhecido desde que ele quebrou a tornozeleira, após a condenação em junho de 2024. 

A reportagem escancara não apenas a leniência das autoridades argentinas em relação a um condenado pelo 8 de Janeiro – mas também a tensão diplomática entre os governos do Brasil e o da Argentina. 

Jair Bolsonaro e seu filho, Eduardo, deputado federal pelo PL de São Paulo, se envolveram pessoalmente no caso, com apelos para que o governo de Javier Milei dê asilo político aos golpistas brasileiros. 

Depois da nossa reportagem, foi justamente um retuíte de Eduardo Bolsonaro que fez crescer a onda de ódio contra Motoryn e o Intercept. Além dele, outras personalidades e figuras públicas destilaram xingamentos, como “Judas” e “rato”, e incitaram ódio ao dizer, por exemplo, que Motoryn “desperta instintos primitivos”.

O próprio Josiel, em uma live, também fez ameaças ao repórter. “Todo mundo agora, a partir de agora, está de olho em você. Já sabe quem é você. Já sabe o que você fez. E também vão atrás de você. Você pode ter certeza disso”, ele disse. 

Mas não parou por aí. Sobretudo no X, bolsonaristas partiram para ameaças mais agressivas. “Vamos arrancar sua cabeça”, “tu vai implorar pela anistia” e “merece um banho bem dado com água sanitária” são algumas das ameaças gravíssimas, que incluíram posts com endereço e informações pessoais do jornalista, além de menções a membros da sua família.

A campanha foi orquestrada por uma rede de defensores dos golpistas, que inclui emissoras de rádio e televisão e perfis influentes, além de políticos e outras personalidades. Além de escancarar a estrutura de proteção da extrema direita aos golpistas de 8 de Janeiro, também evidencia que esse grupo é capaz de atos violentos e criminosos para fazer valer sua posição política. 

Para quem alega que essas pessoas são “vítimas” e “reféns”, causa surpresa que apelem para violência tão rapidamente por causa de uma reportagem. 

Mas nós não toleraremos. Um boletim de ocorrência foi registrado, e o Intercept já encaminhou à polícia os posts com ameaças, verificados com uma ferramenta forense, como provas. Esse tipo de ataque ao nosso trabalho e a um membro de nossa equipe é inadmissível.

Ao contrário de Josiel e outros golpistas condenados, Paulo Motoryn está fazendo o seu trabalho: revelar fatos de interesse público. Ataques violentos como esse são uma tentativa de intimidar e sufocar o jornalismo que tem coragem de bater de frente com o bolsonarismo e chamar essas pessoas pelo que elas são: golpistas que tentaram derrubar o estado de direito no Brasil. 

Nós, mais uma vez, seguiremos fazendo o nosso trabalho, mostrando como essa rede se articula, se financia e ataca seus adversários. Agora, com ainda mais elementos sobre a violência e a organização desse grupo.

Por que, como a história já mostrou, se aceitarmos a impunidade, aceitaremos também esse tipo de ameaça violenta como regra. Criminosos devem ser punidos, como prevê a lei, e pagar pelo que fizeram. Neste caso, as vítimas foram o nosso editor e o nosso jornalismo. Mas a ameaça é maior e paira sobre todos nós que lutamos para garantir que nosso país seja livre e seguro para todos.

 

Fonte: Por Fabiana de Moraes, em The intercept

 

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