Da uberização à Economia Solidária
Digital
A
promessa de flexibilidade e autonomia impulsionou a expansão das plataformas
digitais dentro da gig economy. No entanto, essa aparente
modernização do trabalho esconde um modelo que intensifica a precarização e a
exploração. Em vez de ampliar oportunidades, os aplicativos tornaram-se
intermediários de um sistema em que os trabalhadores atuam sem vínculo
empregatício, sem garantias mínimas e submetidos a regras arbitrárias.
O
verniz tecnológico esconde um rígido sistema de controle que define quem recebe
trabalho, quanto ganha e quando será punido. Com algoritmos fechados sem
transparência ou regras objetivas, empresas regulam cada etapa do processo,
determinando desde o ritmo de trabalho até bloqueios automáticos sem
justificativa clara. O que se vende como autonomia e inovação, na prática, se
revela como submissão e instabilidade.
A
crença na neutralidade da tecnologia se desfaz diante da concentração de poder
econômico e político nas mãos de poucas corporações. Como resposta, cresce um
movimento que propõe um modelo alternativo: a Economia Solidária Digital. Inspirada no
software livre e na soberania digital, essa abordagem procura criar tecnologias
abertas e comunitárias, rompendo com a lógica de exploração das big
techs.
Fundamentada
na autogestão e cooperação, a Economia Solidária Digital estabelece
modelos de propriedade coletiva, nos quais os próprios trabalhadores controlam
as plataformas e definem suas condições de trabalho. Em vez de algoritmos
opacos e decisões automatizadas, propõe transparência, governança democrática e
valorização do trabalho acima do lucro.
Para o
professor Rafael Grohmann, da Universidade de Toronto, a resposta à
“uberização” não pode se limitar à criação de startups coopetivas. “O problema
não está apenas nos aplicativos e softwares, mas na propriedade das
infraestruturas e dos dados”, afirma. Para ele, é essencial que os próprios
trabalhadores detenham o controle da tecnologia, evitando a reprodução do
modelo de subordinação existente nas plataformas comerciais.
·
Uberização aprofunda desigualdades
A
chegada da Uber ao Brasil, em 2014, marcou uma transformação nas relações de
trabalho no país. O modelo da gig economy, antes
restrito ao transporte de passageiros, rapidamente se expandiu para outros
setores, como delivery, hotelaria, serviços domésticos, entre outros.
O
fenômeno da uberização intensificou a deterioração das condições de trabalho em
um mercado já marcado pela informalidade. Sem vínculo empregatício reconhecido,
os trabalhadores são tratados como prestadores de serviço, sem direitos
trabalhistas ou proteção social. Toda a responsabilidade e os riscos da atividade
são transferidos para o trabalhador, enquanto as empresas se eximem de qualquer
obrigação.
“Vimos
a realidade do trabalho se transformar rapidamente em um curto espaço de tempo.
Nos últimos dez anos, o mercado, especialmente nas grandes cidades, mudou de maneira
acelerada, com efeitos que precisam ser analisados”, avalia Daniel Santini,
coordenador de projetos na Fundação Rosa Luxemburgo.
Os mais
impactando são, sobretudo, os trabalhadores mais vulneráveis, especialmente
jovens negros nas grandes cidades. Os dados evidenciam como a “uberização”
reforça desigualdades estruturais. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (PNAD) do IBGE, 77% dos trabalhadores por aplicativos têm menos de
40 anos, sendo 48,4% entre 25 e 39 anos. No recorte racial, 59% dos
entregadores se autodeclaram pretos ou pardos, revelando que o modelo afeta
diretamente grupos historicamente marginalizados.
·
Algoritmos como barreira à mobilização
A
precarização avança junto com a ausência de proteção social, expondo os
trabalhadores à instabilidade financeira e à dependência total das plataformas.
Além das más condições de trabalho, esses trabalhadores enfrentam outro
obstáculo menos visível, mas essencial para a manutenção desse sistema: o
controle algorítmico.
Segundo
Renan Kalil, procurador do trabalho e doutor em Direito pela Universidade de
São Paulo (USP), o uso de algoritmos não apenas serve para organizar e
distribuir as demandas, mas também para limitar a mobilização coletiva.
“O
sistema cria uma falsa sensação de autonomia, isolando os trabalhadores em uma
lógica competitiva que os impede de se reconhecerem como parte de uma mesma
categoria”, explica Kalil. Dessa forma, os trabalhadores são estimulados a
competir entre si, dificultando qualquer tentativa de organização coletiva.
Além
disso, algumas empresas adotam estratégias ativas para enfraquecer a
mobilização, impedindo que os trabalhadores reivindiquem melhores condições.
“Empresas como o iFood financiaram campanhas de desinformação, criando perfis
falsos de entregadores nas redes sociais para enfraquecer a mobilização e impor
sua narrativa”, denuncia Kalil.
Esse
controle invisível permite que as plataformas mantenham seu modelo altamente
lucrativo sem precisar lidar com demandas trabalhistas. O algoritmo, longe de
ser um mediador neutro, funciona como ferramenta de dominação, regulando o
acesso ao trabalho e minando qualquer forma de resistência.
A
reação a esse cenário de exploração, no entanto, veio das ruas…
·
A explosão do Breque dos Apps
A falta
de proteção social e de direitos trabalhistas tornou-se ainda mais evidente
durante a pandemia da Covid-19. Enquanto entregadores e motoristas eram
considerados essenciais para manter a população em casa e conter a disseminação
do vírus, seguiam sem acesso a direitos básicos, expondo a fragilidade desse
modelo de trabalho.
“Tem
trabalhador que dorme na rua, trabalha com fome e carrega pesos incompatíveis
com o esforço humano”, denuncia Galo em entrevista publicada no livro Mobilidade
antirracista, editado pela Fundação Rosa Luxemburgo em parceria com a
Autonomia Literária.
A
insatisfação cresceu à medida que os riscos da pandemia escancararam a ausência
de garantias trabalhistas. Em julho de 2020, a categoria organizou a primeira
grande paralisação nacional, conhecida como Breque dos Apps.
O
movimento exigia melhoria na remuneração, fornecimento de equipamentos de
proteção e o fim dos bloqueios arbitrários. A mobilização, articulada por
entregadores e motoristas em diversas cidades do Brasil, reacendeu o debate
sobre as condições de trabalho na economia de plataformas e demonstrou a
capacidade de organização dos trabalhadores mesmo diante das barreiras impostas
pelo controle algorítmico.
A
revolta dos trabalhadores evidenciou que o modelo das plataformas não é
sinônimo de liberdade, mas sim de dependência extrema de sistemas que operam
sem transparência e sem qualquer tipo de negociação.
Se por
um lado a “uberização” se consolidou como um problema, a Economia Solidária
Digital, um desdobramento do Cooperativismo de Plataforma, hoje se apresenta
como uma alternativa possível.
·
Do Cooperativismo de Plataforma à Economia Solidária
Digital
O
debate sobre alternativas à “uberização” ganhou força na Fundação Rosa
Luxemburgo em 2016, com a tradução de Trebor
Scholz, Cooperativismo de Plataforma, produzido pela
Fundação em parceria com as editoras Elefante e Autonomia Literária.
“O livro de Scholz apresenta, de forma
clara e estruturada, premissas para pensar um novo modelo de trabalho, com
exemplos concretos“,
explica Daniel Santini.
Com a
publicação da obra, a Fundação Rosa Luxemburgo ampliou o diálogo com
pesquisadores e organizações interessadas, estabelecendo uma forte conexão com
o Laboratório de Pesquisa DigiLabour, da Universidade de Toronto, liderado pelo
pesquisador Rafael Grohmann.
Dessa
articulação surgiu o conceito de Economia Solidária Digital, que incorporou
experiências brasileiras já consolidadas, como as políticas de Cultura Livre,
Software Livre e Economia Solidária.
“Percebemos
que o termo cooperativismo de plataforma não refletia toda a complexidade do
contexto brasileiro. Era mais adequado falar em Economia Solidária Digital, ou
até em uma Economia Solidária 2.0, que dialoga com nossa tradição”, avalia
Santini.
A
partir desse movimento, diversas organizações iniciaram um diálogo com o poder
público, levando à aproximação com a Secretaria Nacional de Economia Popular e
Solidária, vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego.
A
Economia Solidária Digital, portanto, não é apenas um conceito acadêmico, mas
um movimento concreto, que une pesquisadores, trabalhadores e organizações para
a construção de um modelo alternativo de trabalho e tecnologia.
·
Economia Solidária Digital: uma proposta concreta
Diante
da lógica predatória das grandes plataformas, a Economia Solidária Digital
desponta como um modelo alternativo, baseado em cooperação, autogestão e
governança democrática. Nessa abordagem, os trabalhadores são os donos e
gestores das plataformas que utilizam, garantindo mais autonomia e condições de
trabalho justas.
Mais do
que uma simples adaptação do cooperativismo de plataforma, proposto pelo
pesquisador estadunidense Trebor Scholz, a economia solidária digital amplia o
conceito, incluindo a propriedade coletiva de dados e infraestruturas digitais.
Isso significa que as plataformas não apenas pertencem aos trabalhadores, mas
também operam com transparência e controle democrático, eliminando as barreiras
impostas por algoritmos opacos e decisões automatizadas.
Para
Emanuele Rubim, advogada, pesquisadora e coautora do livro Economia
Solidária Digital, essa proposta representa um passo essencial rumo a um
desenvolvimento econômico mais inclusivo e sustentável. A obra foi publicada em
2024 pela Fundação Rosa Luxemburgo em parceria com Digilabor e Ministério do
Trabalho e Emprego. Rubim defende que, ao contrário da lógica das grandes
plataformas, a economia solidária digital considera aspectos como território,
meio ambiente e relações sociais e tecnológicas.
Ao
promover tecnologias abertas e comunitárias, a Economia Solidária Digital
propõe um modelo que subverte a dinâmica tradicional das plataformas
proprietárias, garantindo que o uso da tecnologia sirva aos trabalhadores e às
comunidades, e não apenas ao lucro de grandes corporações.
·
Experiências de Economia Solidária Digital no Brasil e no
mundo
Projetos
em diversos países demonstram que alternativas às grandes plataformas já estão
sendo construídas. Essas iniciativas rompem com a lógica das Big Techs,
promovendo modelos mais justos, nos quais os trabalhadores têm voz ativa na
gestão da tecnologia que utilizam.
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Brasil: Cooperativas e tecnologia para autonomia
- Señoritas Courier –
Cooperativa de mulheres e pessoas trans em São Paulo que atua no setor de
entregas de bicicleta. Além de oferecer um modelo de trabalho mais justo,
desenvolve tecnologia própria para gestão e organização do serviço,
evitando a dependência de plataformas privadas.
- Núcleo de Tecnologia do MTST – Grupo vinculado
ao Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), responsável por criar
plataformas digitais voltadas para a autogestão do trabalho. Entre os
projetos, destaca-se o Contrate Quem Luta, um chatbot que conecta
trabalhadores da construção civil a clientes sem intermediários.
- Liga Coop –
Federação que reúne cooperativas de motoristas como alternativa ao Uber e
99. Desenvolve um aplicativo próprio, garantindo maior controle sobre os
ganhos dos trabalhadores e evitando a exploração imposta pelas grandes
plataformas de mobilidade.
<><>
Europa e América do Norte: Redes de cooperativas e tecnologia livre
- CoopCycle (Europa) – Federação de cooperativas
de entregadores espalhadas por várias cidades europeias. A plataforma
utiliza software livre, permitindo que diferentes grupos operem serviços
de delivery sem intermediários privados.
- Drivers’ Seat (EUA) –
Cooperativa de motoristas que coleta e vende seus próprios dados para
órgãos públicos, reduzindo a dependência de plataformas privadas na
formulação de políticas de transporte.
- Means TV (EUA) – Plataforma de streaming
cooperativa e autogerida, que oferece conteúdos progressistas como
alternativa à Netflix e outras empresas comerciais.
As
iniciativas demonstram que, embora ainda enfrentem desafios, alternativas às
grandes plataformas já são uma realidade em diversos países. A Economia Solidária
Digital não só oferece melhores condições de trabalho, como também aponta para
um modelo tecnológico mais inclusivo e democrático.
·
Desafios para uma Economia Solidária Digital
Apesar
do seu potencial transformador, a Economia Solidária Digital enfrenta barreiras
econômicas, organizacionais, tecnológicas e legais que dificultam sua
consolidação e expansão.
Desafios
Econômicos. A
principal barreira para iniciativas de Economia Solidária Digital é a falta de
recursos para investimentos em tecnologia, infraestrutura e capacitação.
Diferente das grandes plataformas, que contam com capital de risco e subsídios
de investidores, essas iniciativas precisam buscar alternativas financeiras
sustentáveis para se manterem competitivas.
Além
disso, a concorrência desleal imposta pelas big techs agrava o cenário.
Empresas como Uber e iFood recorrem a práticas como dumping, oferecendo
serviços a preços artificialmente baixos para eliminar concorrentes. Sem
políticas públicas de incentivo, como linhas de crédito, financiamento para
pesquisas e apoio governamental, muitas iniciativas enfrentam dificuldades para
se consolidar e crescer.
Desafios
Organizacionais. A
autogestão e a governança democrática são pilares centrais da Economia
Solidária Digital, mas sua implementação exige mudanças culturais profundas. O
modelo tradicional de trabalho, baseado em hierarquias rígidas e relações
individualistas, dificulta a transição para estruturas coletivas e
descentralizadas.
Além
disso, a gestão compartilhada requer formação contínua, participação ativa dos
trabalhadores e processos decisórios eficientes. Sem capacitação adequada e
tempo para amadurecimento, a estrutura organizacional pode se tornar
burocrática e ineficiente, comprometendo a sustentabilidade das iniciativas.
Desafios
Tecnológicos. A
dependência de tecnologias proprietárias desenvolvidas por grandes corporações
limita a autonomia digital das cooperativas e coletivos. Sem infraestrutura
própria, muitas iniciativas acabam utilizando plataformas comerciais, o que
pode reproduzir as mesmas lógicas de controle e precarização.
Outro
desafio é a falta de profissionais capacitados para desenvolver soluções
digitais alinhadas aos princípios da Economia Solidária. O fortalecimento desse
setor exige investimentos na formação de trabalhadores em tecnologia, além da
construção de infraestruturas digitais abertas e compartilhadas.
Desafios
legais. A
falta de um marco regulatório específico para a Economia Solidária Digital no
Brasil cria dificuldades burocráticas para a formalização e captação de
recursos. Atualmente, cooperativas e plataformas autogeridas não possuem um
enquadramento jurídico adequado, o que pode gerar entraves fiscais e
trabalhistas.
Além
disso, a regulação do trabalho digital ainda está em disputa, e sem uma
legislação específica, há o risco de que cooperativas sejam tratadas como
plataformas tradicionais, ignorando as particularidades desse modelo
alternativo.
·
O caminho para um trabalho digital justo
A
“uberização” consolidou um modelo de trabalho precarizado, no qual os riscos
são transferidos aos trabalhadores enquanto as plataformas maximizam seus
lucros. No entanto, a Economia Solidária Digital surge como um caminho
alternativo, pautado na autogestão, cooperação e governança democrática.
Experiências
no Brasil e no mundo demonstram que é possível construir plataformas coletivas,
mas sua expansão ainda enfrenta desafios econômicos, tecnológicos e
regulatórios. Para que essas iniciativas prosperem, é fundamental a
implementação de políticas públicas, financiamento adequado e um marco legal
que reconheça suas especificidades.
A
tecnologia não precisa ser uma ferramenta de exploração e controle. Ela pode
ser utilizada para fortalecer a autonomia dos trabalhadores e garantir relações
de trabalho mais justas. O desafio, portanto, é consolidar modelos que coloquem
a tecnologia a serviço da coletividade, garantindo soberania digital e
dignidade no trabalho.
Fonte:
Por Rute Souza e Katarine Flor, no Le Monde

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