Moradia, substantivo feminino: gênero e
política habitacional
No Brasil, 38,3 milhões de famílias são
chefiadas por mulheres e mais da metade da população é feminina, segundo o
último Censo do IBGE. Contudo, a abissal desigualdade de gênero persiste e se
manifesta nas mais variadas perspectivas, refletindo diretamente na dinâmica
social e na formação das cidades.
Nesse sentido, refletir sobre uma política
habitacional sob a perspectiva de gênero é fundamental para reduzir as
desigualdades que atingem as mulheres, especialmente as negras, como defende a
professora Tuize Rovere. Para a arquiteta e autora da tese Territórios de
(re)existência : cidades, mulheres e as redes de cuidado como subversão da
política pública habitacional, “pensar em cidades inclusivas para as mulheres
de forma interseccional é pensar em cidades que se preocupem com o cuidado com
as pessoas e com a vida humana”.
À medida em que a vida das mulheres está
suscetível a toda a sorte de violências, físicas e psicológicas, para atender
ao bem-estar de determinada parcela da população, “seus corpos são controlados
socialmente pelas construções de gênero e espacialmente através da segregação e
da modulação de seus locais de moradia pela política pública”, pontua.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail
ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Tuize ainda comenta como o programa
habitacional Minha Casa, Minha Vida atendeu aos interesses de proprietários
imobiliários, incorporadores e empreiteiras. “No Brasil os conjuntos
implementados a partir das políticas públicas habitacionais ainda obedecem às
dinâmicas da especulação imobiliária”, assinala. “Assim, em sua maioria, são
construídos em locais segregados, afastados dos centros urbanos e carentes de
infraestrutura e serviços públicos”, coloca. Para a urbanista, as “sociedades
capitalistas e patriarcais como a nossa resultam em cidades que servem à
circulação de trabalhadores e capital e ignora as necessidades da vida humana”,
assevera.
Tuize Rovere é professora do curso de
Arquitetura e Urbanismo do Instituto Federal do Rio Grande do Sul, além de
doutora e mestra em Planejamento Urbano e Regional/Desenvolvimento Regional
pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC, 2018 e 2023) com tese premiada
pelo Prêmio CAPES de Teses 2024. Atualmente cursa estágio pós-doutoral no
Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo Universidade Federal de
Pelotas (PPGRAU/UFPel) com bolsa CAPES de pós-doutoramento. Tem pós-graduação
em Gestão Ambiental pela Universidade do Oeste de SC (UNOESC, 2009). É graduada
em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Pelotas (FAUrb/UFPel,
2005).
<><> Confira a entrevista.
• Em
um país com uma desigualdade radical como o Brasil, qual o papel das políticas
habitacionais, como o Minha Casa, Minha vida – MCMV?
Tuize Rovere – O Brasil é um país de
desigualdades abissais e isso se reflete na formação das cidades, na medida em
que elas resultam das dinâmicas sociais. Nesse contexto, alguns grupos são
constantemente afastados de direitos básicos, como a moradia digna. Entre esses
estão as mulheres, especialmente as mulheres negras, que sofrem com a
precarização do trabalho e a falta de acesso a renda, o que resulta em
periferização e vulnerabilidade. As políticas públicas habitacionais, se forem
implementadas responsavelmente, inseridas na malha urbana, próxima de centros
providos de infraestrutura e serviços públicos urbanos, especialmente aqueles
que fazem parte da rede de suporte ao trabalho de cuidado, como creches,
escolas e postos de saúde, entre outros, trazem autonomia e possibilidade de
mobilidade social para essas mulheres.
• Quais
são, no contexto brasileiro, as principais potencialidades e limites das
políticas habitacionais?
Tuize Rovere – No Brasil os conjuntos
implementados a partir das políticas públicas habitacionais ainda obedecem às
dinâmicas da especulação imobiliária. Assim, em sua maioria, são construídos em
locais segregados, afastados dos centros urbanos e carentes de infraestrutura e
serviços públicos. Além disso, nos últimos anos, essa política vem se
concentrando em construções novas, deixando de lado outras possiblidades como o
aproveitamento de imóveis não utilizados nos centros da cidade. Esse último
fator vem sendo revertido timidamente. As políticas públicas habitacionais,
apesar de apresentarem um grande potencial de mitigação de questões sociais,
precisam ser implementados com responsabilidade e sempre atrelados a outras
políticas públicas.
• Em
que sentido uma política habitacional se converte, como você propõe em sua
tese, em uma biopolítica?
Tuize Rovere – Na medida em que se transforma
em mais um mecanismo de controle de corpos no espaço, determinando
indiretamente (ou diretamente) quem pertence ou não a determinados lugares na
cidade, quem pode ou não acessar determinados bens e serviços urbanos,
segregando e estigmatizando os moradores destes bairros e residenciais.
Em Santa Cruz do Sul [interior do Rio Grande
do Sul], por exemplo, um dos conjuntos do MCMV construído na periferia mais
empobrecida da cidade é chamado pelos moradores do centro de “Carandiru” e as
pessoas que moram lá encontram dificuldade de acessar empregos e outros
serviços centrais.
As mulheres são as mais afetadas por este
tipo de controle na medida em que ainda são afetadas pela divisão sexual do
trabalho e suas intersecções de raça, fazendo com que recaia sobre elas a maior
parcela do trabalho não remunerado de cuidados. Também são elas a maior parte
das titulares dos imóveis financiados através da política pública habitacional
voltada a rendas mais baixas.
• De
que maneira esta biopolítica afeta, especialmente, as mulheres? E como
subvertê-la?
Tuize Rovere – As mulheres são as mais
afetadas por este tipo de controle na medida em que ainda são afetadas pela
divisão sexual do trabalho e suas intersecções de raça, fazendo com que recaia
sobre elas a maior parcela do trabalho não remunerado de cuidados. Também são
elas a maior parte das titulares dos imóveis financiados através da política
pública habitacional voltada a rendas mais baixas. Assim, seus corpos são
controlados socialmente pelas construções de gênero e espacialmente através da
segregação e da modulação de seus locais de moradia pela política pública.
Uma das formas de subversão desta dinâmica é
a formação de redes de cuidado e ajuda entre elas, atuando onde o Estado é
ineficaz ou se isenta. As redes de ajuda entre mulheres muitas vezes permitem
que acessem o mercado formal ou informal de trabalho (mulheres que se dividem o
trabalho de cuidados com os filhos) aumentando as suas possiblidades de
autonomia e mobilidade social.
• Como
reconhecer modos de vida, sobretudo da população empobrecida e marginalizada,
pode se converter em “fazer-cidade”? O que está por trás desta ideia? O que isso
significa?
Tuize Rovere – Na medida em que a cidade é
também resultado das dinâmicas das sociedades, e se as sociedades são diversas,
é natural que cada diferente grupo social tenha as suas próprias demandas. O
direito à cidade, como colocam teóricos como David Harvey, envolve o direito de
configurar a cidade de acordo com suas próprias necessidades. Assim, os
diferentes grupos sociais, como mulheres, idosos, populações racializadas,
pessoas com deficiências e população LGBTQIA+ atuam para transformar o espaço
urbano de acordo com suas próprias necessidades, fazendo cidades diferentes
dentro da mesma cidade institucionalizada.
Conforme o poder público reconhece essas
diferenças e passa a buscar atender a essas demandas, a cidade é transformada e
se torna uma cidade mais justa e equânime. Essa é a importância de as políticas
públicas urbanas olharem para os territórios, para as pessoas ali presentes e
suas realidades distintas. Também é a importância da efetiva participação
popular nas decisões.
• Como
o recrudescimento do conservadorismo político e o período pandêmico do Covid-19
impactaram na realidade das mulheres brasileiras, especialmente as da
periferia?
Tuize Rovere – O conservadorismo atua no
sentido de manter as mulheres subalternizadas, majoritariamente responsáveis
pelo trabalho doméstico não remunerado e pertencentes ao mundo/espaço privado.
Isso vulnerabiliza ainda mais as mulheres, dificultando seu acesso a emprego e
renda e deixando-as mais suscetíveis à violência doméstica e ao empobrecimento.
Além disso, na política, o conservadorismo busca reverter direitos alcançados a
duras penas pelos movimentos feministas, como o direito ao aborto legal.
• Muitos
são autores, entre eles Henri Lefebvre, que trabalham a noção de que a cidade é
um produto social e resultante de práticas sociais diversas. Poderia explicar
melhor o que isso significa e que tipo de cidade emerge desta concepção?
Tuize Rovere – Acho que mais ou menos já
citei como funciona o fato de as cidades serem resultado das dinâmicas que se desenvolvem
nas sociedades. Sociedades capitalistas e patriarcais como a nossa resultam em
cidades que servem à circulação de trabalhadores e capital e ignoram as
necessidades da vida humana. Se o trabalho reprodutivo recai, ainda hoje,
majoritariamente sobre as mulheres, e o espaço urbano serve à circulação de
capital e não de pessoas, é evidente que esse grupo tem seus direitos
espoliados, por exemplo.
• Por
que a periferia não deve ser vista e interpretada apenas como um espaço de
pobreza, mas também, ou sobretudo, como um território de possibilidades e
inventividade?
Tuize Rovere – No que diz respeito ao
urbanismo e ao planejamento urbano, nas periferias existem tecnologias que
surgem das necessidades humanas. Tecnologias e saberes de vida cotidiana, que
podem ser grandes exemplos de humanização das cidades. Não se trata de
romantizar a pobreza, mas de reconhecer esses saberes que trazem vitalidade e
atuam no sentido de ajustar os espaços às diferentes demandas humanas.
• Como
estes territórios na composição com os corpos que o habitam produzem
temporalidades urbanas que são próprias de nossa realidade social? O que essas
temporalidades revelam sobre o mundo que vivemos?
Tuize Rovere – Não se pode afirmar que
vivemos em uma única temporalidade. O tempo e o espaço são diferentes para os
grupos sociais. Essas dinâmicas espaço-temporais são imbricadas com a
materialidade dos diferentes corpos. Um exemplo: diferente dos homens, muitas
mulheres deixam de frequentar determinados espaços ou mesmo de circular em determinados
horários ou lugares por medo da violência de gênero. Da mesma forma, a
população LGBTQIA+ tem sua presença em determinados espaços constrangida. Esses
fatores podem implicar inclusive em tempos maiores de deslocamentos para
acessar o trabalho ou o lazer. Isso são temporalidades espaciais diferentes que
implicam em maior ou menor dificuldade dentro das cidades e se tratam de
fatores que não podem deixar de ser levados em consideração nas políticas
públicas urbanas.
• Como
resolver o problema do déficit habitacional no Brasil levando em conta as
especificidades regionais e da população assistida?
Tuize Rovere – Além do que já foi dito,
acredito que olhar para os territórios e ouvir as pessoas que neles habitam é
crucial. Nesse contexto, o papel do poder público municipal como implementador
das políticas públicas habitacionais é fundamental. A inversão do modelo atual
também é uma solução importante: primeiro conhecer o público que será usuário
da política habitacional, para só então pensar em projeto e implementação dessa
política de acordo com as diferentes realidades. Para isso, a política deve ser
transformada em política social, e deixar de obedecer ao mercado imobiliário.
Parece difícil, mas é muito possível, com
investimento e qualificação técnica. Com a diminuição dos problemas sociais que
são efeitos colaterais dessas políticas no contexto atual, os investimentos em
outras políticas mitigatórias seria cada vez menor, assim como o abandono dos
imóveis pela população que não se sente atendida por este modelo de produção de
habitação.
• Como
pensar uma política habitacional a partir de uma perspectiva de gênero?
Tuize Rovere – Levando em consideração a
realidade material das mulheres na sociedade atual. Promovendo o apoio e
distribuição do trabalho não remunerado de cuidado, a facilitação da mobilidade
espacial urbana, o acesso ao emprego e renda, entre outras medidas que atuem no
sentido da efetiva emancipação das mulheres. Isso se refletiria, na prática, em
conjuntos habitacionais horizontais, próximos aos centros melhor providos de
infraestrutura e serviços públicos, serviços públicos em quantidade e qualidade
suficiente, segurança pública, qualidade construtiva etc.
• Deseja
acrescentar algo?
Tuize Rovere – Pensar em cidades inclusivas
para as mulheres de forma interseccional é pensar em cidades que se preocupem
com o cuidado com as pessoas e com a vida humana, o que inclui todos os grupos
sociais, inclusive os homens.
Fonte: Entrevista com Tuize Rovere, para IHU
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