quinta-feira, 20 de março de 2025

Há 40 anos, Brasil encerrava ditadura militar e caminhava para a redemocratização

Com o juramento constitucional de posse, o então vice-presidente da República, José Sarney, encerrava há 40 anos, em 15 de março de 1985, um capítulo sombrio da história brasileira – os 21 anos de ditadura militar. Tancredo Neves, eleito de forma indireta por um colégio eleitoral em 15 de janeiro daquele ano, foi internado para uma cirurgia no intestino na véspera da posse e morreu em 21 de abril.

Naquele momento conturbado, em que todos temiam a reação dos militares ainda no poder, a própria posse de Sarney foi motivo de muitos debates. Como explicaram alguns deputados no Plenário da Câmara dos Deputados, a Constituição em vigor era omissa em relação a quem deveria assumir a Presidência no caso de impedimento do eleito antes de chegar ao cargo.

“As principais lideranças da Nova República, ainda na vigência do Governo anterior, tiveram que se debruçar sobre o texto constitucional a fim de que, interpretando a Carta Magna, encontrassem um caminho certo para aquela surpreendente situação. Efetivamente, a Constituição brasileira não prevê a hipótese em seu texto, e foi através de uma interpretação por analogia que se chegou à conclusão de que se teria que dar posse ao vice-presidente eleito, José Sarney”, disse o então deputado Cássio Gonçalves (PMDB-MG), no dia 18 de março de 1985, durante a primeira sessão da Câmara depois da posse de Sarney.

Tancredo Neves foi internado às 22h30 do dia 14 de março. A conclusão de que José Sarney deveria assumir foi tomada por lideranças do Congresso na madrugada do dia 15, naquela que foi considerada por alguns a noite mais longa da República. Quem conta uma parte dessa história é o próprio ex-presidente José Sarney, em entrevista ao programa Roda Viva de 2009.

“Fizeram reuniões contra, ‘o Sarney não deve assumir’, fizeram outras reuniões que eu devia assumir, fizeram reuniões no Congresso, e às 3 horas da manhã lavraram uma ata dizendo que eu devia assumir a Presidência da República.”

Mas antes que a retomada do poder pelos civis se concretizasse houve pelo menos mais um lance inusitado nesse roteiro: a tentativa frustrada de um militar, o ministro do Exército do presidente João Batista Figueiredo, Walter Pires, de impedir a posse de Sarney. Ele próprio contou que soube do episódio por meio do ex-ministro da Casa Civil Leitão de Abreu.

“O ministro Leitão de Abreu me disse: ‘você sabe o que aconteceu naquela noite? Eu liguei a todo mundo para dizer o que estava decidido e então o ministro Walter Pires me disse, no telefone, que ia se deslocar para o ministério porque ia acionar o dispositivo militar”, contou Sarney. De acordo com ele, Leitão respondeu a Walter Pires: “O senhor não é mais ministro, porque os atos de exoneração dos ministros que deviam sair amanhã, por um engano, saíram hoje.”

  • O grande dia

Superado o último obstáculo, chegou o grande dia. Mas o Brasil sonhou com Tancredo e acordou com Sarney. Tancredo Neves representava a esperança de transformação. Era do PMDB, antigo MDB, o partido da oposição consentida à ditadura. José Sarney, ao contrário, era remanescente da Arena, partido dos militares. E esse representava mais um ponto de tensão.

Havia dúvidas se Sarney iria honrar os compromissos de redemocratização assumidos por Tancredo Neves durante a longa campanha popular pelo fim da ditadura. Também era incerta a reação do povo à chegada de um antigo colaborador do regime ao Palácio do Planalto no momento que deveria coroar a luta por democracia.

  • Aliança

Segundo alguns historiadores, a aliança entre Tancredo e Sarney diz muito sobre o processo de redemocratização do Brasil, controlado de perto pelos militares no poder. Um dos primeiros lances da abertura política já tinha deixado clara essa tendência: a aprovação da Lei da Anistia em agosto de 1979. Com a medida, os militares perdoaram os presos políticos considerados inimigos do regime, mas os próprios militares também foram anistiados por qualquer crime que pudessem haver cometido durante os anos de ditadura.

A primeira metade da década de 1980 foi marcada por campanhas pela volta da democracia. O auge dessa luta foi a campanha das Diretas Já, que teve Tancredo Neves como uma das figuras centrais.

“Me entregam a mais alta e a mais difícil responsabilidade de minha vida pública. Creio não poder fazê-lo de melhor forma do que perante Deus e perante a Nação, nesta hora inicial de itinerário comum, reafirmar o compromisso de resgatar duas aspirações que nos últimos 20 anos sustentaram com penosa obstinação a esperança o povo. Esta foi a última eleição indireta do País”, discursou Tancredo durante a campanha por eleições diretas.

Fortalecido pela campanha e com forte apoio popular, Tancredo Neves surgiu como nome forte para enfrentar o candidato escolhido pelos militares para concorrer à eleição presidencial de 1984. No entanto, sozinho, o então governador de Minas Gerais não tinha votos suficientes no colégio eleitoral.

Mesmo com o crescimento vertiginoso do PMDB em 1982, quando elegeu 200 deputados federais e nove governadores, os partidos de oposição ainda eram minoria do Congresso. Além disso, o colégio eleitoral também contava com deputados estaduais, e o processo era controlado pelos militares no poder.

A aliança com José Sarney, então, foi a estratégia encontrada por Tancredo para derrotar os militares. José Sarney tinha sido presidente do PDS e conhecia a maioria dos delegados que votariam no colégio eleitoral, especialmente os da Região Nordeste. Os votos de dissidentes do PDS seriam a única possibilidade de vitória.

O resultado do processo mostrou que Tancredo estava certo em sua aposta. A chapa formada por ele e Sarney saiu consagrada com 480 votos, contra 180 dados a Paulo Maluf. Dezessete delegados se abstiveram de votar.

Começava, assim, uma nova etapa da longa transição brasileira rumo à retomada da democracia. Uma fase que seria difícil e tortuosa, como adiantou o presidente da sessão que elegeu Tancredo, o então senador Moacyr Dalla (PDS-ES).

“Perigoso será, no entanto, supor caminhos fáceis, pois difíceis são os tempos que vivemos. Cabe-nos, a todos, enfrentar a realidade como ela se apresenta, com a determinação de um povo, consciente de sua força humana e da grandeza e da riqueza da terra que habita”, disse.

  • Legitimidade do governo

Devido à transição negociada e à eleição indireta, os escolhidos para assumir a Presidência da República já chegariam ao poder com pouca legitimidade. A morte precoce de Tancredo colocava ainda mais pressão sobre o novo ocupante do Planalto, José Sarney.

Não faltavam problemas e desafios. O “milagre econômico” promovido pelos militares na década de 1970 às custas de financiamento externo apresentava sua conta. E ela chegou na forma de uma dívida externa explosiva e inflação.

Em dezembro de 1986, o então deputado Raymundo Asfóra (PMDB-PB) denunciou que a dívida com credores estrangeiros dragava um terço da poupança nacional. Em 1984, último ano dos militares no poder, o país registrou uma inflação oficial de 224%.

Assim como muitos parlamentares da época, tanto de apoio ao governo quanto de oposição, o deputado Hermes Zaneti (PMDB-RS) defendeu a suspensão do pagamento da dívida em discurso em novembro de 1986.

“O Brasil continua pagando a dívida externa, e são 12 bilhões de dólares por ano apenas a título de juros para a dívida externa brasileira. Continua pagando isto com a fome, a miséria e a desgraça, enfim, do povo trabalhador brasileiro. Apresso-me a dizer que a única solução cabível é suspendermos o pagamento e realizarmos uma auditoria sobre a dívida externa brasileira.”

Nos próximos anos, o País veria um ciclo de pacotes econômicos na tentativa de melhorar a economia. Entre 1986 e 1994, a moeda nacional mudou de nome quatro vezes, em seis tentativas diferentes de conseguir a tão sonhada estabilização econômica.

Na busca por mais liberdades democráticas, o governo de Sarney, que ficou no poder entre 1985 e 1990, foi marcado também por mudanças na legislação rumo à liberdade de organização sindical e política. Mas o feito mais importante do período foi a convocação da Assembleia Nacional Constituinte, que finalmente, enterraria o chamado “entulho autoritário”.

 

¨      Grupo Globo, que apoiou o golpe de 64, se apropriou da memória da ditadura. Por Francisco Fernandes Ladeira

Recentemente, escrevi alguns artigos no Observatório da Imprensa sobre o centenário do Grupo Globo. Destaquei que, atualmente, o principal setor que se opõe ao conglomerado de mídia da família Marinho é a extrema direita, sobretudo no que se refere à chamada pauta dos costumes. Para a extrema direita, a “Globo Lixo” é parte do sistema globalista, adepta da lacração. Por outro lado, o presente contexto também marca o melhor momento da relação entre Grupo Globo e a esquerda (que, sem agenda própria, está completamente adaptada ao status quo).

Esta estranha realidade tem permitido ao Grupo Globo ocultar seu passado (e também presente) conservador; se vendendo como progressista e democrático. “Se a Globo combate o bolsonarismo, está do nosso lado”, pode pensar um esquerdista ingênuo e desavisado.

Assim, com a esquerda a reboque, com os chiliques da extrema direita e o sucesso de seu filme “Ainda Estou Aqui”, o Grupo Globo conseguiu o que, há algum tempo, parecia inimaginável: se apropriou da memória sobre a ditadura militar no imaginário social brasileiro (diga-se de passagem, um regime que teve no Grupo Globo um de seus principais apoiadores).

No entanto, no atual imaginário social, como as principais viúvas da ditadura estão na extrema direita, e o Grupo Globo (supostamente) se opõe ao bolsonarismo, logo também é contra qualquer tipo de autoritarismo. A esse falso silogismo, soma-se o álibi de a extrema direita, principalmente por causa da adesão à cultura woke, considerar a Globo “de esquerda”. Portanto, como “força progressista”, não pode ter relação com a ditadura militar.

Mas é no apoio de parte considerável da esquerda que o Grupo Globo conseguiu reciclar seu passado golpista. Após a conquista da estatueta no Oscar, a produção do Grupo Globo “Ainda Estou Aqui” se transformou na “obra oficial” sobre a memória brasileira em relação à ditadura militar. Evidentemente, um filme produzido pelo Globoplay não trará nenhum tipo de incômodo para a família Marinho. Assim, nesse novo imaginário social sobre a ditadura militar, não houve qualquer participação do Grupo Globo no golpe de 1964, tampouco o consequente apoio à ditadura que durou duas décadas.

Nas redes sociais, imagens do filme “Ainda Estou Aqui” acompanham praticamente todas as postagens que apresentam frases como “Ditadura nunca mais!”, “Sem anistia!” “Viva a democracia” e “Um povo que não conhece sua História está fadado a repeti-la”. E essa estratégia midiática tem dado tão certo que até o presidente Lula, em seu discurso em defesa da democracia, durante a programação que marcou os dois anos do “8 de janeiro”, afirmou: “Hoje é dia de dizermos em alto e bom som: ainda estamos aqui. Estamos aqui para dizer que estamos vivos e que a democracia está viva”.

Nem o mea culpa feito em editorial de O Globo, em agosto de 2013, admitindo que o “apoio ao golpe de 64 foi um erro”, surtiu tanto efeito positivo. Uma década atrás, a família Marinho ainda precisava se desculpar pelo seu caráter golpista. Hoje, se apropriando da memória da ditadura, não precisa mais. Seu passado golpista foi sumariamente apagado do imaginário social. O que é pior: com o apoio total da esquerda

 

Fonte: O Cafezinho/Observatório da Imprensa

 

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