Há 40 anos, Brasil encerrava ditadura militar
e caminhava para a redemocratização
Com o juramento constitucional de posse, o
então vice-presidente da República, José Sarney, encerrava há 40 anos, em 15 de
março de 1985, um capítulo sombrio da história brasileira – os 21 anos de
ditadura militar. Tancredo Neves, eleito de forma indireta por um colégio
eleitoral em 15 de janeiro daquele ano, foi internado para uma cirurgia no
intestino na véspera da posse e morreu em 21 de abril.
Naquele momento conturbado, em que todos
temiam a reação dos militares ainda no poder, a própria posse de Sarney foi
motivo de muitos debates. Como explicaram alguns deputados no Plenário da
Câmara dos Deputados, a Constituição em vigor era omissa em relação a quem
deveria assumir a Presidência no caso de impedimento do eleito antes de chegar
ao cargo.
“As principais lideranças da Nova República,
ainda na vigência do Governo anterior, tiveram que se debruçar sobre o texto
constitucional a fim de que, interpretando a Carta Magna, encontrassem um
caminho certo para aquela surpreendente situação. Efetivamente, a Constituição
brasileira não prevê a hipótese em seu texto, e foi através de uma
interpretação por analogia que se chegou à conclusão de que se teria que dar
posse ao vice-presidente eleito, José Sarney”, disse o então deputado Cássio
Gonçalves (PMDB-MG), no dia 18 de março de 1985, durante a primeira sessão da
Câmara depois da posse de Sarney.
Tancredo Neves foi internado às 22h30 do dia
14 de março. A conclusão de que José Sarney deveria assumir foi tomada por
lideranças do Congresso na madrugada do dia 15, naquela que foi considerada por
alguns a noite mais longa da República. Quem conta uma parte dessa história é o
próprio ex-presidente José Sarney, em entrevista ao programa Roda Viva de 2009.
“Fizeram reuniões contra, ‘o Sarney não deve
assumir’, fizeram outras reuniões que eu devia assumir, fizeram reuniões no
Congresso, e às 3 horas da manhã lavraram uma ata dizendo que eu devia assumir
a Presidência da República.”
Mas antes que a retomada do poder pelos civis
se concretizasse houve pelo menos mais um lance inusitado nesse roteiro: a
tentativa frustrada de um militar, o ministro do Exército do presidente João
Batista Figueiredo, Walter Pires, de impedir a posse de Sarney. Ele próprio
contou que soube do episódio por meio do ex-ministro da Casa Civil Leitão de
Abreu.
“O ministro Leitão de Abreu me disse: ‘você
sabe o que aconteceu naquela noite? Eu liguei a todo mundo para dizer o que
estava decidido e então o ministro Walter Pires me disse, no telefone, que ia
se deslocar para o ministério porque ia acionar o dispositivo militar”, contou
Sarney. De acordo com ele, Leitão respondeu a Walter Pires: “O senhor não é
mais ministro, porque os atos de exoneração dos ministros que deviam sair
amanhã, por um engano, saíram hoje.”
- O
grande dia
Superado o último obstáculo, chegou o grande
dia. Mas o Brasil sonhou com Tancredo e acordou com Sarney. Tancredo Neves
representava a esperança de transformação. Era do PMDB, antigo MDB, o partido
da oposição consentida à ditadura. José Sarney, ao contrário, era remanescente
da Arena, partido dos militares. E esse representava mais um ponto de tensão.
Havia dúvidas se Sarney iria honrar os
compromissos de redemocratização assumidos por Tancredo Neves durante a longa
campanha popular pelo fim da ditadura. Também era incerta a reação do povo à
chegada de um antigo colaborador do regime ao Palácio do Planalto no momento
que deveria coroar a luta por democracia.
- Aliança
Segundo alguns historiadores, a aliança entre
Tancredo e Sarney diz muito sobre o processo de redemocratização do Brasil,
controlado de perto pelos militares no poder. Um dos primeiros lances da
abertura política já tinha deixado clara essa tendência: a aprovação da Lei da
Anistia em agosto de 1979. Com a medida, os militares perdoaram os presos
políticos considerados inimigos do regime, mas os próprios militares também
foram anistiados por qualquer crime que pudessem haver cometido durante os anos
de ditadura.
A primeira metade da década de 1980 foi
marcada por campanhas pela volta da democracia. O auge dessa luta foi a
campanha das Diretas Já, que teve Tancredo Neves como uma das figuras centrais.
“Me entregam a mais alta e a mais difícil
responsabilidade de minha vida pública. Creio não poder fazê-lo de melhor forma
do que perante Deus e perante a Nação, nesta hora inicial de itinerário comum,
reafirmar o compromisso de resgatar duas aspirações que nos últimos 20 anos
sustentaram com penosa obstinação a esperança o povo. Esta foi a última eleição
indireta do País”, discursou Tancredo durante a campanha por eleições diretas.
Fortalecido pela campanha e com forte apoio
popular, Tancredo Neves surgiu como nome forte para enfrentar o candidato
escolhido pelos militares para concorrer à eleição presidencial de 1984. No
entanto, sozinho, o então governador de Minas Gerais não tinha votos
suficientes no colégio eleitoral.
Mesmo com o crescimento vertiginoso do PMDB
em 1982, quando elegeu 200 deputados federais e nove governadores, os partidos
de oposição ainda eram minoria do Congresso. Além disso, o colégio eleitoral
também contava com deputados estaduais, e o processo era controlado pelos
militares no poder.
A aliança com José Sarney, então, foi a
estratégia encontrada por Tancredo para derrotar os militares. José Sarney
tinha sido presidente do PDS e conhecia a maioria dos delegados que votariam no
colégio eleitoral, especialmente os da Região Nordeste. Os votos de dissidentes
do PDS seriam a única possibilidade de vitória.
O resultado do processo mostrou que Tancredo
estava certo em sua aposta. A chapa formada por ele e Sarney saiu consagrada
com 480 votos, contra 180 dados a Paulo Maluf. Dezessete delegados se
abstiveram de votar.
Começava, assim, uma nova etapa da longa
transição brasileira rumo à retomada da democracia. Uma fase que seria difícil
e tortuosa, como adiantou o presidente da sessão que elegeu Tancredo, o então
senador Moacyr Dalla (PDS-ES).
“Perigoso será, no entanto, supor caminhos
fáceis, pois difíceis são os tempos que vivemos. Cabe-nos, a todos, enfrentar a
realidade como ela se apresenta, com a determinação de um povo, consciente de
sua força humana e da grandeza e da riqueza da terra que habita”, disse.
- Legitimidade
do governo
Devido à transição negociada e à eleição
indireta, os escolhidos para assumir a Presidência da República já chegariam ao
poder com pouca legitimidade. A morte precoce de Tancredo colocava ainda mais
pressão sobre o novo ocupante do Planalto, José Sarney.
Não faltavam problemas e desafios. O “milagre
econômico” promovido pelos militares na década de 1970 às custas de
financiamento externo apresentava sua conta. E ela chegou na forma de uma
dívida externa explosiva e inflação.
Em dezembro de 1986, o então deputado
Raymundo Asfóra (PMDB-PB) denunciou que a dívida com credores estrangeiros
dragava um terço da poupança nacional. Em 1984, último ano dos militares no
poder, o país registrou uma inflação oficial de 224%.
Assim como muitos parlamentares da época,
tanto de apoio ao governo quanto de oposição, o deputado Hermes Zaneti
(PMDB-RS) defendeu a suspensão do pagamento da dívida em discurso em novembro
de 1986.
“O Brasil continua pagando a dívida externa,
e são 12 bilhões de dólares por ano apenas a título de juros para a dívida
externa brasileira. Continua pagando isto com a fome, a miséria e a desgraça,
enfim, do povo trabalhador brasileiro. Apresso-me a dizer que a única solução
cabível é suspendermos o pagamento e realizarmos uma auditoria sobre a dívida
externa brasileira.”
Nos próximos anos, o País veria um ciclo de
pacotes econômicos na tentativa de melhorar a economia. Entre 1986 e 1994, a
moeda nacional mudou de nome quatro vezes, em seis tentativas diferentes de
conseguir a tão sonhada estabilização econômica.
Na busca por mais liberdades democráticas, o
governo de Sarney, que ficou no poder entre 1985 e 1990, foi marcado também por
mudanças na legislação rumo à liberdade de organização sindical e política. Mas
o feito mais importante do período foi a convocação da Assembleia Nacional Constituinte,
que finalmente, enterraria o chamado “entulho autoritário”.
¨ Grupo Globo, que
apoiou o golpe de 64, se apropriou da memória da ditadura. Por Francisco Fernandes Ladeira
Recentemente, escrevi alguns artigos no
Observatório da Imprensa sobre o centenário do Grupo Globo. Destaquei que,
atualmente, o principal setor que se opõe ao conglomerado de mídia da família
Marinho é a extrema direita, sobretudo no que se refere à chamada pauta dos
costumes. Para a extrema direita, a “Globo Lixo” é parte do sistema globalista,
adepta da lacração. Por outro lado, o presente contexto também marca o melhor
momento da relação entre Grupo Globo e a esquerda (que, sem agenda própria,
está completamente adaptada ao status quo).
Esta estranha realidade tem permitido ao
Grupo Globo ocultar seu passado (e também presente) conservador; se vendendo
como progressista e democrático. “Se a Globo combate o bolsonarismo, está do nosso
lado”, pode pensar um esquerdista ingênuo e desavisado.
Assim, com a esquerda a reboque, com os
chiliques da extrema direita e o sucesso de seu filme “Ainda Estou Aqui”, o
Grupo Globo conseguiu o que, há algum tempo, parecia inimaginável: se apropriou
da memória sobre a ditadura militar no imaginário social brasileiro (diga-se de
passagem, um regime que teve no Grupo Globo um de seus principais apoiadores).
No entanto, no atual imaginário social, como
as principais viúvas da ditadura estão na extrema direita, e o Grupo Globo
(supostamente) se opõe ao bolsonarismo, logo também é contra qualquer tipo de
autoritarismo. A esse falso silogismo, soma-se o álibi de a extrema direita,
principalmente por causa da adesão à cultura woke, considerar a Globo “de esquerda”.
Portanto, como “força progressista”, não pode ter relação com a ditadura
militar.
Mas é no apoio de parte considerável da
esquerda que o Grupo Globo conseguiu reciclar seu passado golpista. Após a
conquista da estatueta no Oscar, a produção do Grupo Globo “Ainda Estou Aqui”
se transformou na “obra oficial” sobre a memória brasileira em relação à
ditadura militar. Evidentemente, um filme produzido pelo Globoplay não trará
nenhum tipo de incômodo para a família Marinho. Assim, nesse novo imaginário social
sobre a ditadura militar, não houve qualquer participação do Grupo Globo no
golpe de 1964, tampouco o consequente apoio à ditadura que durou duas décadas.
Nas redes sociais, imagens do filme “Ainda
Estou Aqui” acompanham praticamente todas as postagens que apresentam frases
como “Ditadura nunca mais!”, “Sem anistia!” “Viva a democracia” e “Um povo que
não conhece sua História está fadado a repeti-la”. E essa estratégia midiática
tem dado tão certo que até o presidente Lula, em seu discurso em defesa da
democracia, durante a programação que marcou os dois anos do “8 de janeiro”,
afirmou: “Hoje é dia de dizermos em alto e bom som: ainda estamos aqui. Estamos
aqui para dizer que estamos vivos e que a democracia está viva”.
Nem o mea culpa feito em editorial
de O Globo, em agosto de 2013, admitindo que o “apoio ao golpe de
64 foi um erro”, surtiu tanto efeito positivo. Uma década atrás, a família
Marinho ainda precisava se desculpar pelo seu caráter golpista. Hoje, se
apropriando da memória da ditadura, não precisa mais. Seu passado golpista foi
sumariamente apagado do imaginário social. O que é pior: com o apoio total da
esquerda
Fonte: O Cafezinho/Observatório da Imprensa

Nenhum comentário:
Postar um comentário