Como Elis Regina, que faria 80 anos,
reinventou a MPB com emoção incomparável ao cantar
O primeiro disco de Elis Regina (1945-1982),
lançado em 1961 pela gravadora Continental, foi um grande fracasso.
Tinha o título de Viva a Brotolândia e trazia
uma coletânea de rocks ingênuos, numa tentativa de transformar aquela então
desconhecida gauchinha de apenas 15 anos em uma sucessora da consagrada Celly
Campello (1942-2003).
Mas quem na época comprou aquele disco —
talvez por mera curiosidade — e chegou em casa para ouvi-lo deparou-se com uma
mensagem na primeira faixa que podia funcionar como uma espécie de prenúncio de
quem seria aquela mulher para a música brasileira.
A música Dá Sorte, composta por Eleu Salvador
(1932-2007), diz: "Creio no supremo poder, gosto de quem gosta de mim,
serei tudo que quero ser".
Nesta segunda-feira, 17 de março de 2025,
Elis completaria 80 anos.
Com a vida abreviada por uma noite de
overdose quando tinha apenas 36 anos, Elis Regina chegou ao ápice da MPB — uma
MPB que ela ajudou a definir.
Segundo especialistas em música entrevistados
pela BBC News Brasil, a consagração fazia parte dos planos de Elis, que traçou
seu próprio caminho de forma autêntica.
"Ela foi muito solitária, mas sempre
soube muito o que queria. Antes, sabia o que não queria. Depois soube o que
queria", comenta à BBC News Brasil o jornalista e escritor Julio Maria,
autor da biografia Elis Regina: Nada Será Como Antes, lançada originalmente em
2015 mas que acaba de ganhar uma reedição revista e ampliada.
"E não fez parte de nenhuma turma.
Negou-se a ser da turma da Celly Campello, não foi da Jovem Guarda, não foi do
Tropicalismo, não foi do samba, não foi do rock, não foi da bossa nova…
Solitariamente, fez suas revoluções da voz e da música brasileira sabendo muito
bem o que queria."
Para o jornalista e crítico musical Jotabê
Medeiros, Elis deixou um legado que vai além da qualidade e "preparou a
própria eternidade".
"Elis não quis ser Janis Joplin, não
quis ser Ella Fitzgerald, não quis ser Billie Holiday. Ela quis mais, e
conseguiu", aponta Medeiros.
O estrelato foi consequência de uma busca
pessoal dela, acrescenta o historiador e jornalista Paulo César de Araújo,
especializado em MPB.
"O fato é que ela procurava um lugar na
grande constelação da Música Popular Brasileira. E brigou por isso", diz
ele à BBC News Brasil.
Danilo Casaletti, jornalista e pesquisador
musical, reforça que Elis "sempre soube onde pisar".
"Quando saiu de Porto Alegre, já em
busca de ser uma artista com personalidade, e não apenas uma cópia fabricada,
ela foi parar diretamente no cenário efervescente das boates do Rio de Janeiro
e de São Paulo, nas quais se apresentavam músicos modernos, que misturavam
samba, jazz e outras bossas", complementa.
"Por isso, ela nasceu para a vida
artística já como uma cantora moderna."
Mas, então, como foi o "nascimento"
dessa cantora? Vamos voltar a Porto Alegre.
• De
Porto Alegre para o Beco das Garrafas
Elis nasceu em Porto Alegre em 17 de março de
1945 e, desde criança, demonstrava talento musical.
Aos sete, foi levada pela mãe para participar
de um programa de rádio. A partir de 1958, aos 13 anos, passou a atuar
profissionalmente, contratada pela principal emissora do Rio Grande do Sul: por
isso, passou a ser chamada de "a estrelinha da Rádio Gaúcha".
Na mesma época, também começou a se
apresentar em casas noturnas de Porto Alegre.
Em 1961, foi descoberta por um funcionário do
selo Continental da gravadora brasileira GEL. Foi levada ao Rio e gravou seus
dois primeiros discos: Viva a Brotolândia, que sairia naquele mesmo ano, e
Poema de Amor.
Dois fracassos. O primeiro foi resultado de
uma tentativa de transformar Elis na sucessora de Celly Campello, cantora que
explodiu nacionalmente em 1959 e se tornou a voz e o rosto das pueris canções
do rock and roll que nascia no país.
O segundo álbum foi uma repaginada que tentou
fazer de Elis a voz dos boleros.
Na contracapa do álbum de estreia, o produtor
Carlos Imperial (1935-1992) escreveu que Elis era "um broto cantando
música de broto para você, broto, ouvir e dançar".
"Elis Regina é um broto, não só de
idade, como de espírito também", completou ele, usando gíria da época para
"jovem" ou "namorado(a)".
O contrato seguinte foi com a gravadora CBS,
por onde saíram seus dois discos seguintes, ambos em 1963. Ali, testou-se uma
Elis cantora de sambas popularescos, sem muita relevância.
Decepcionada pelos quatro primeiros discos —
obras que ela praticamente renegaria ao longo da vida —, Elis resignou-se à
vida de cantora de rádio e casas noturnas de Porto Alegre.
Foi quando um produtor da Phillips, então a
maior gravadora estabelecida no país, assistiu a uma de suas apresentações e
gostou muito. Deixou o cartão e a recomendação de que ela o procurasse em
breve.
Em conversa com a família, Elis decidiu se
mudar para o Rio, então o centro da indústria fonográfica do país. Chegou à
Cidade Maravilhosa exatamente no dia que ficaria marcado pelo golpe militar: 31
de março de 1964.
Logo estava trabalhando na TV Rio. Esta
aparição televisiva acabou abrindo portas: no mesmo ano, Elis começou a fazer
apresentações no Beco das Garrafas, uma travessa de Copacabana que concentrava
as casas noturnas da época.
Segundo Araújo, na véspera dessa fase, Elis
estava "meio perdida, vagando de um lado para o outro tentando encontrar
um espaço".
"Um fator que vai contribuir para a
grande virada na carreira foi o Beco das Garrafas. […] Ela vai travar contato
com os grandes músicos brasileiros, que se apresentavam lá. Isso certamente
mexeu com a sensibilidade dela", afirma o historiador e jornalista.
"Ela estabeleceu contatos, fez amizades
com pessoas que a ajudaram inclusive a entender melhor o que estava acontecendo
no Brasil."
Em paralelo, também passou a se apresentar em
São Paulo, principalmente na boate Djalma's, que ficava na Praça Roosevelt.
Naquela época, esta era a região da bossa
nova em São Paulo, conforme caracterizou o musicólogo Zuza Homem de Mello
(1933-2020) ao Jornal da Tarde.
No ano seguinte, Elis decidiu se mudar para a
capital paulista.
• O
papel da TV na carreira, rumo à consagração
Em São Paulo, ela acabou se aproximando da TV
Record, emissora que começava a se destacar pela qualidade da programação
musical.
Elis coapresentou o programa O Fino da Bossa
ao lado de Jair Rodrigues (1939-2014) e finalmente ganhou projeção nacional.
No mesmo ano, ganhou o I Festival de Música
Popular Brasileira, promovido pela TV Excelsior — defendendo a música Arrastão,
composição de Edu Lobo e Vinícius de Moraes (1913-1980).
Para Araújo, a TV ajudou a moldar o sucesso
de Elis.
"Enquanto alguns cantores se perdem [por
não se adaptar ao vídeo], com a Elis foi o contrário: ela se adequou bem à
televisão, cresceu na televisão", explica.
"Isso contribuiu para que, a partir da
metade dos anos 1960, Elis se tornasse a mais poderosa e influente cantora do
Brasil, comandando um programa de audiência e liderando o movimento musical
brasileiro a partir da TV Record."
De 1965, seu quinto álbum, Samba - Eu Canto
Assim, trazia pérolas como Reza, de Ruy Guerra e Edu Lobo, e uma faixa com três
composições de Baden Powell (1937-2000) e Vinícius de Moraes. Dali em diante,
era a Elis que fez história.
Araújo lembra que esse disco teve
"grande repercussão": "Revelou uma cantora moderna, cantando
sambas modernos e com temática social."
Os anos 1970 marcaram sua maturidade técnica
e vocal — e ela continuou se esmerando na escolha meticulosa dos repertórios,
uma de suas marcas.
Em 1974, lançou com Tom Jobim (1927-1994) o
álbum Elis & Tom, aclamado como um dos mais importantes da história musical
brasileira.
Para os críticos, é notório que houve ali uma
evolução, embora a essência de sua voz já estivesse presente no início da
carreira.
"A primeira fase, muito jovem e num
mundo masculino hegemônico, foi traiçoeira. O primeiro disco foi tutelado por
Carlos Imperial, um equívoco de repertório, de posicionamento", ressalta
Medeiros.
"Mas isso é normal quando se é muito
jovem e estamos buscando um lugar ao sol. Ela soube sacudir a poeira, retomar
as rédeas da carreira e da vida", completa, dizendo que Elis era uma
"mulher em avançado processo de emancipação pessoal".
Para Araújo, o fracasso dos primeiros discos forçou
Elis a buscar sua identidade como artista: "A mudança de cantora pop
estilo Celly Campello para grande estrela da MPB aconteceu de forma
gradual."
E essa identidade era múltipla, acrescenta
Casaletti.
"Elis foi se lapidando. Transformava-se
a cada disco. Ou, dentro de um mesmo disco ou show, era várias", destaca o
jornalista e pesquisador musical.
• Engajamento
político
Também desaflorou com o passar dos anos uma
Elis engajada politicamente.
Em 1967, ela liderou uma passeata em São
Paulo que ficou conhecida como Marcha contra a Guitarra Elétrica, um protesto
de artistas — muitos deles tropicalistas — contra a "invasão da música
internacional".
Mais tarde, ela própria mudaria de ideia e,
assim como os artistas tropicalistas, passaria a aceitar a inclusão de
instrumentos como a guitarra.
"Ela estava comprometida com essa ideia
de música brasileira e por isso teve uma postura de rejeição ao rock,
resultando nesse famigerado episódio da passeata", afirma Araújo,
apontando que depois, já no final dos anos 1960, Elis cantou músicas de rock de
Roberto Carlos e dos Beatles.
"Quando algum jornalista vinha cobrar
uma certa coerência, ela costumava responder simplificando: 'Mudei, dá
licença'", conta o historiador.
Para ele, a abertura para mudanças resultou
em uma "Elis completamente livre, leve e solta" para gravar os
grandes discos na década de 1970, "dentro da diversidade de estilos e de
músicas que caracteriza a carreira dela".
Sobre a ditadura militar, Elis se posicionou
contra o regime não somente nas letras das músicas que escolhia para seu
repertório.
Em uma entrevista concedida durante turnê na
Europa em 1969, ela afirmou que o Brasil "era governado por gorilas"
— e logo desculpou-se dizendo que não queria "ofender os gorilas".
Apesar de malvista pelo regime, nunca chegou
a ser presa.
Anos mais tarde, tornou-se um hino pela
anistia a interpretação de Elis de O Bêbado e A Equilibrista, célebre canção de
João Bosco e Aldir Blanc (1946-2020) que integrou o álbum Essa Mulher, de 1979.
Ela também engajou-se na luta pelos direitos
autorais, participando de reuniões da classe artística em Brasília.
Em 1981, filiou-se ao Partido dos
Trabalhadores (PT), que tinha sido fundado um ano antes.
Para Araújo, Elis ajudou a definir a MPB como
"moderna e comprometida com a realidade social do Brasil".
"Ela foi protagonista desse processo,
firmando-se como a grande voz feminina da MPB", salienta.
"Elis gravava compositores comprometidos
com essa luta. Por isso, ficou no imaginário coletivo como a cantora da
resistência, uma espécie de heroína da cultura brasileira."
• Talento
em escolher parceiros musicais e repertório
Na vida pessoal, Elis cercou-se de amigos do
meio musical.
Vinícius de Moraes deu a ela o apelido de
"pimentinha", que se tornou uma de suas marcas.
Cauby Peixoto (1931-2016), de quem era fã
desde a infância, certa vez chamou-a para morar com ele, tamanha a alegria que
tinha por conviver com ela. Segundo conta Julio Maria em seu livro, ela ficou
de pensar.
De Clara Nunes (1942-1983), ela acabou se
aproximando por conta da amizade profissional que tinha com o compositor Paulo
César Pinheiro, que era casado com a cantora.
Ficaram amigas de fazerem compras juntas e
frequentarem os mesmos centros espíritas.
A lista de nomes que ascenderam graças a suas
interpretações é enorme e passa por Aldir Blanc (1946-2020), Belchior
(1946-2017), Egberto Gismonti, Guarabyra, Ivan Lins, João Bosco, Lô Borges,
Milton Nascimento, Raimundo Fagner e Zé Rodrix (1947-2009).
"Quando ela grava novos compositores,
então desconhecidos, ela revela faro para o novo e também uma aguçada percepção
do futuro, do que está por vir", pontua Medeiros.
Aliás, sua capacidade de selecionar o
repertório, pinçando pérolas, era acima da média, dizem os entrevistados.
"Receber 50, 60 músicas para ouvir e
pinçar uma a uma e dali montar um disco. Esse talento que ela tinha… Vários
cantores se perdem por falta disso", comenta Araújo.
Segundo Julio Maria, a cantora só gravou
"o que quis, sem aceitar interferência em seu repertório".
Danilo Casaletti endossa que ela era
"muito criteriosa" nisso, "tanto no apuro estético, quanto na
intenção do que ela queria imprimir, na mensagem propriamente dita."
"Elis segue relevante pela mensagem que
ela passa", diz Casaletti.
Na vida amorosa, a música também lhe deu
companheiros — e filhos músicos.
A cantora foi casada duas vezes. Primeiro com
o músico Ronaldo Bôscoli (1928-1994), com quem teve um filho, o produtor
musical e empresário João Marcello Bôscoli.
Do relacionamento seguinte, com o pianista
César Camargo Mariano, nasceram os músicos Pedro Camargo Mariano e Maria Rita.
Ela morreu aos 36 anos, em 19 de janeiro de
1982, em seu apartamento em São Paulo.
De acordo com o laudo médico, foi vítima de
overdose — tecnicamente, morreu por "intoxicação exógena causada por
agente químico". Ela havia misturado cocaína com bebida alcoólica.
• Intensidade
e drama na voz
Como legado, Elis nada menos do que
transformou a forma de cantar no Brasil e a própria MPB, dizem os entrevistados.
"Chegou em um momento em que todo mundo
cantava para dentro", comenta Julio Maria, referindo-se ao estilo da bossa
nova em comparação ao da era do rádio.
"Algumas pessoas entenderam errado e
começaram a cantar mal mesmo. Só que a Elis, ela chegou e cantou para fora de
novo. Fez de cara uma transformação na ideia do canto brasileiro."
O biógrafo também destaca que ela contribuiu
para elevar o patamar das composições.
"Para ser gravado pela Elis, era preciso
ter uma qualidade harmônica, melódica e poética muito grande. E as pessoas
passaram a investir nisso para serem gravados pela Elis. Ela se tornou um
filtro", complementa.
Para Julio Maria, o "para fora" da
Elis tinha uma diferença: a interpretação.
"Havia entrega de pensamento,
intensidade, drama no canto dela. Ela pensava a palavra que cantava, sentia o
que cantava", analisa.
Casaletti reforça esta qualidade: Elis sabia
como colocar "emoção em suas interpretações", diz.
"Nada em Elis era em vão ou fora de
lugar", acrescenta o jornalista. "Ela sabia o que queria a cada vez
em que cantava uma música, fosse a primeira ou a centésima vez em que estava
com aquela canção. Ela era tão verdadeira nesse sentido que a única coisa que
eu acho que Elis não fazia direito era dublar. Para ela, tinha que ser ao vivo.
Sempre."
O crítico Medeiros salienta que o
reconhecimento de Elis ultrapassa o Brasil.
"Grande parte das cantoras estrangeiras
que eu pude entrevistar, algumas delas divas do jazz, apontaram Elis como uma
joia rara. De Madeleine Peyroux a Stacey Kent, de Esperanza Spalding a
Cassandra Wilson: todas ouviram Elis e reconheceram nela a maestria de uma voz
planetária, maior do que as fronteiras, maior do que os rótulos", afirma.
Fonte: BBC News Brasil

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