O intelectual “despertencido”
Se o título fosse “a intelectual
despertencida”, poucos homens leriam este texto, pois, no feminino, sugeriria “coisa
de mulher”, algo específico, da esfera do particular. No masculino, porém, é
universal, à imagem de homens e mulheres. Esta provocação veio-me ao acompanhar
as discussões públicas (as críticas) ao “identitarismo”, sobretudo por
intelectuais brancos e brancas.
Alguém se lembra do médico e professor da
Unicamp, Paulo Palma, que, a propósito da implementação das quotas
étnicos-raciais na sua instituição, disse: “A universidade trocou cérebro por
nádegas”? Ora, Ora, Ora! No seu mundo pequeno burguês e “brancocêntrico”, ele é
o cérebro e, negros e negras, as nádegas. Pois é, o intelectual “puro cérebro”,
sem as demais partes do corpo, está em crise. E, pasmem! Uma crise sem
precedentes.
O professor ainda completa o raciocínio
racista: “A universidade é para uma elite intelectual e não para vagabundo”. A
entrada de pessoas negras nas salas de aula provocou um rebuliço nesta gente
que se considera parte da “elite intelectual”, e que viveu, por séculos,
legitimada com tamanha aberração.
Intelectuais brancos, homens e mulheres, da
esquerda à direita, estão em crise e isso deriva da construção da imagem de si,
alimentada pela ciência eurocêntrica, de que este intelectual é “universal”,
“despertencido” de qualquer identidade (não tem raça, sexo, sexualidade, valores
arraigados numa classe social, etc.). O que os “movimentos identitários”
fizeram foi colocar um espelho diante destes homens e mulheres mostrando-lhes:
“Olha aqui, vocês pertencem a…”.
A imagem tradicional do intelectual, ou seja,
branco, de óculos, com o corpo travado, (pois intelectual não se movimenta, não
dança, não samba, não vai a terreiro, não transa, etc.), cartesiano, separando
o espírito do corpo, foi abalada. Ao aparecer no cenário brasileiro corpos com
ginga, com ritmo, sensuais, vibrantes e, “com nádegas”, a sensação de
professores universitários brancos é que perderam o lugar. Mas, como questiona
a psicanalista Maria Homem, “quem disse que o lugar era seu?”.
Donna Haraway no artigo Saberes localizados:
a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial,
diz que a Ciência feita por sujeitos que se pensam universais e acreditam ser
um olho que tudo vê, sem ser visto, que, de longe, observa melhor, se impôs
como “não marcada”, em detrimento dos “corpos marcados” (identitários).
Por longos séculos, os saberes produzidos por
homens brancos foram tidos como “neutros” e “descorporificados”, por isso,
completos, racionais e científicos, ao passo que os saberes produzidos por
mulheres eram considerados passionais, subjetivos, pseudocientíficos,
formulados a partir de um corpo sexuado, diz Donna Haraway. A neutralidade do
discurso e da “objetividade” masculina, perpassa também a neutralidade sexual
(hétero), enquanto a corporeidade (desde os clássicos gregos) era atribuída às
mulheres como um estágio pré-lógico e “não científico”.
A Metodology Feminist questionou esta
tradição, levando em conta o fazer ciência de quem pesquisa, apontando como
postulado a subjetividade do (a) pesquisador (a) e o pressuposto de que não é
possível estabelecer uma linha rígida entre sujeito e objeto de estudo, além de
considerar algumas implicações éticas, como o cuidado para não subordinar as
mulheres ao construir a interpretação teόrica do conhecimento.
Donna Haraway foi assertiva ao dizer que não
existe um “de fora” da pesquisa e do fazer ciência, que olha o mundo (o objeto
estudado) como um “Deus” que tudo vê, distante e neutro. Nesse mesmo sentido,
Sandra Harding, em Objectivity and Diversity: Another Logic of scientific
research diz que o foco da objetividade que ela denomina “objetividade forte” é
o reconhecimento que a Ciência é praticada no mundo real e não parte de um
ideal abstrato, respondendo às questões da vida dos sujeitos e as suas relações
sociais. Apesar de muitas críticas à metologia feminista e as suas
epistemologias, intelectuais brancos até suportaram-nas dentro das suas
cátedras. O rebuliço veio mesmo com as epistemologias negras, africanas e das
diásporas, trazidas por esta gente “com nádegas”.
Marilena Chauí, durante uma entrevista ao
canal de Leandro Demori, disse que o grande sujeito político da atualidade são
os movimentos sociais, e, completa: “Há um problema, um problema que me afeta.
Você só faz política revolucionária, de mudança, quando você tem alguns
universais como referência, um grupo imenso de pessoas (…) eu não estou vendo
estes referenciais, mas os movimentos se tornando “identitários”. Ao invés de
os movimentos serem unificadores, eles vão se tornando fragmentados e não
produzem esta referência comum, necessária para a mudança política social”.
O entrevistador intervém: “Antes este
universal era a categoria trabalho”. Existe um uso equivocado dos termos
universalismo e “referenciais universais”. Estes referenciais estão ligados,
quase sempre, a uma raça e a uma classe social, que os elegeram “para todos” e
insistem em chamá-los assim. Vejam bem, o trabalho jamais foi um universal, ele
foi eleito universal por intelectuais da esquerda ocidental e ocidentalizada.
Para o intelectual peruano, Anibal Quijano, por exemplo, o universal é a raça.
Inclusive é ela que estrutura a divisão do trabalho no mundo inteiro. Esta
categoria também não é um universal para os povos indígenas.
“Identitarismo” é uma acusação pesada. E
estamos aqui concordando com a fragmentação das lutas sociais, mas não somos
saudosos dos tempos em que esta luta e as suas prioridades eram definidas por
um sujeito dominante, que dizia aos outros qual a prioridade. O professor de
sociologia, da Universidade de Paris 8, Eric Fassin, considerado “identitário”
no mundo acadêmico francês, diz: “Desde finais dos anos 1980, assistimos, no
espaço público francês, ao forte retorno de um discurso que invoca a cultura
política nacional para celebrar um universalismo cego às diferenças, sejam de
gênero, sexualidade ou de raça. A República (Francesa) só reconhece cidadãos
abstratos e assim relega suas propriedades singulares ou particulares à esfera
privada. Questões minoritárias seriam, portanto, incompatíveis com a tradição
francesa. Sob a máscara de filosofia política, tal retórica culturalista visa a
despolitizar as questões minoritárias tratando-as como dependentes dos
contextos nacionais. Brande-se de bom grado o que chamei de “espantalho
americano” (Fassin, 1997): o gênero, a sexualidade e a raça teriam sentido
apenas para “eles” (os Estados Unidos) e, de todo modo, não para “nós” (a
França).
De qualquer forma, o censo demográfico não
coleta qualquer dado relativo à raça e tudo se passa como se, a exemplo do
gênero, a raça fosse uma noção completamente estranha à história nacional. Em
resumo, na França, falar de raça, como de gênero, implica expor-se à acusação
de não ser republicano e, portanto, de não ser francês de verdade.
Eric Fassin aponta, ainda, que o grande
problema dos intelectuais é admitir “pertencimento” a uma das categorias
identitárias das quais acusam. Para o canal TV 5 Monde, o professor fala da
ideia predominante de que, uma vez neutralizado o Capital, todas as outras
reivindicações serão atendidas. É só esperar. No seu livro De la Question Sociale
à la question raciale?, ele sublinha que não se trata de substituir uma luta
por outra, uma lógica única por outra, mas de considerar uma pluralidade de
lógicas de dominação.
Afirmar-se negra, feminista, LGBTQIA+,
favelada, periférica, quilombola, é afirmar-se contra uma sociedade
homogeneizadora. Isto é identidade. O que estão entendendo é uma reivindicação
política excludente e separatista. No segundo caso, as conclusões baseiam-se
nas leituras dos excessos que circulam por aí. Mas, os excessos dos identitários
brancos, como ficam? Intelectuais “anti-identitários” não se ocupam das falas
de pessoas brancas, sem fundamento e altamente ideológicas, e as transformam em
“identitarismo”. Por exemplo, em 2024,
Airton Ortiz, presidente da Academia-Rio-Grandense de Letras disse, durante um
evento, que o Rio Grande do Sul era pioneiro na literatura devido à Imigração
europeia. Quer assédio identitário maior que este?
O professor de sociologia da Unicamp, Renato
Ortiz, no artigo “Nota sobre o lugar de fala”, postado no site A Terra é
Redonda, diz: “Com a emergência dos movimentos feministas, estudos de gênero,
reivindicações identitárias as mais diversas, a expressão (Lugar de Fala)
rapidamente conquistou legitimidade (…)”. Nota-se a distância do sociólogo ao
falar de gênero e demais identidades, ele está fora de todas elas, olhando,
ainda, “de cima”, como se não fosse “contaminado”.
E, continua: “Entretanto, isso não significa
que o conhecimento se funda na experiência, significa que a intervenção do
sujeito deve ser considerada e explicitada no ato de constituição do próprio
conhecimento”. Ora, mas é justamente isto que os “identitários” reivindicam, ou
seja, a explicitação do sujeito que fala. E vou ainda mais longe, o incômodo
dos intelectuais “despertencidos” está no fato de que esta gente “com
identidade” está apontando o pertencimento deles: “Você é branco, você é rico,
você é homem”. E, não se trata de essencialismos, mas de condicionamentos.
E, para terminar, trago a contribuição da
filósofa italiana Adriana Cavarero, na grandiosa obra Olha-me e narra-me, onde
aponta que a filosofia ocidental, masculina, tem como forma um saber definidor
que diz respeito à universalidade do homem. É esta forma definidora, este homem
universal, que os movimentos identitários questionam, introduzindo a forma de
conhecimento do mundo e dos sujeitos que diz respeito à identidade de homens e
mulheres concretos: “A primeira forma pergunta “o que é o homem”, a segunda
“quem ele é””. E, através da segunda também se produz conhecimento e luta. São
os intelectuais “despertencidos” que ainda não se deram conta disso.
O homem, de fato: um universal que é todo
mundo precisamente porque não é ninguém; que se desincorpora da singularidade
viva de cada um, afirmando que é ao mesmo tempo masculino e neutro, uma
criatura híbrida gerada pelo pensamento, uma unidade fantástica produzida pela
mente; que é invisível e intangível, embora se declare como a única que pode
ser dita pelo discurso verdadeiro; que vive por seu absoluto noético, embora
não deixe rastros de nenhuma história de vida; que tem entulhado a linguagem
por milênios com toda a progênie filosófica de sua concepção abstrata.
Fonte: Por Fabiane Albuquerque, em A Terra é
Redonda

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