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“Marxismo e judaísmo”: o resgate da história
que a vitória do movimento sionista buscou ocultar
A segunda edição deste livro chega ao público
em um momento de extrema gravidade para o povo palestino, para Israel no
Oriente Médio e para o judaísmo mundial, submetido a uma crise de consciência
sem precedentes na era contemporânea. O genocídio do povo palestino, que se
estende há mais de catorze meses, é descrito como apocalíptico pelo
chefe do Escritório das Nações Unidas para a
Coordenação de Assuntos Humanitários, Tom Fletcher. Os ataques israelenses são
ininterruptos. Ocorrem com o conhecimento de todos, a cumplicidade das
principais potências mundiais, e o apoio explícito dos Estados Unidos.
Assassinatos massivos executados com o
emprego de inteligência artificial, tal qual o sistema Lavender, somam-se a
assassinatos dirigidos, executados por drones contra médicos, jornalistas,
agricultores e cozinheiros, entre outros profissionais empenhados em tratar e
alimentar a população, para não mencionar os grotescos “massacres da farinha” e
centenas de outros casos de ataques mortíferos contra pessoas em busca de
alimento. A fome é criada de maneira proposital e utilizada como arma de
guerra. Há uma escassez cruel de água potável, medicamentos e demais itens
indispensáveis à vida. Noventa por cento da infraestrutura da Faixa de Gaza foi
destruída e o Norte foi ocupado pelo Exército israelense.
A população não aguenta mais os sucessivos
deslocamentos forçados. Mais de 2 milhões de pessoas estão desalojadas e
simplesmente não há lugar seguro na Faixa de Gaza. O meio ambiente está poluído
por metais pesados, mas também pelo esgoto a céu aberto. O ar que se respira
carrega o pó dos escombros e as partículas dos explosivos. Nas palavras do
respeitado médico palestino Mustafa Barghouti, há uma guerra química
subjacente. Metade da população da Faixa de Gaza, mais de 1 milhão de pessoas,
está doente sem que haja tratamento disponível. Doenças de pele e doenças
infecciosas se alastram pelos campos.
Investigações independentes trazem pavorosas
evidências de capturas, manutenção de pessoas em situação de degradação,
violência sexual e tortura. Enquanto isso, soldados israelenses postam suas
ações militares nas redes sociais, documentando seus crimes enquanto zombam dos
palestinos em vídeos no TikTok.
Como bem disse Edgard Morin, em O
mundo moderno e a questão judaica, a relação israelo-palestina é muito
simples, há um opressor e um oprimido. Mas ela é também extremamente complexa
na medida em que o sionismo projeta no futuro o medo do passado. Através de uma
cultura do medo – que instrumentaliza as feridas do Holocausto e dos pogroms –,
todas as políticas israelenses expansionistas, de segregação e limpeza étnica,
de massacre e genocídio, são justificadas, e a oposição judaica interna é
reprimida e silenciada.
De fato, o Estado de Israel, que se
autointitula representante dos judeus de todo o mundo e símbolo de redenção
após o genocídio judaico perpetrado pela Alemanha nazista, está perpetrando,
ele mesmo, o genocídio do povo palestino em nome da segurança do povo judeu. O
assalto do Hamas foi decerto violento, quase 1,2 mil pessoas morreram em
decorrência dele, das quais cerca de oitocentas eram civis israelenses. Uma
parte expressiva foi morta pelo Hamas e demais combatentes que participaram do
assalto de 7 de outubro de 2024; outra, por fogo amigo e o emprego da Diretiva
Hannibal. Mas há um imenso exagero na comparação desse assalto ao
Holocausto. A equiparação, feita pelo governo israelense, ilustra o argumento
de Edgard Morin de que o medo é fomentado como maneira de tornar complexa uma
relação bastante simples, perpetuar a sombra do Holocausto, e, no contexto
colonial palestino, inverter os papéis, tornando os opressores históricos do
povo palestino em vítimas eternas. Como diz Enzo Traverso, “se uma guerra
genocida é lançada em nome da ‘luta contra o antissemitismo’, são os nossos
valores éticos e normas políticas que saem manchados: os pressupostos da nossa
consciência moral – a distinção entre opressor e oprimido, perpetradores e
vítimas – correm o risco de serem virados de ponta-cabeça”. Ou seja, a
cultura do medo analisada por Edgard Morin, ou a instrumentalização da memória
do Holocausto, passa a configurar o melhor meio para a sobrevivência, não do
judaísmo, mas do sionismo. A confusão, ou melhor, a conflação entre os dois –
sionismo e judaísmo – é proposital.
Neve Gordon, por sua vez, explica que a
instrumentalização da memória do Holocausto e a cultura do medo decorrente
disso promovem mais uma inversão de posições, desta vez entre o Estado de
Israel enquanto “o protetor” e os judeus enquanto “protegidos”. Ou seja,
não obstante o Estado ter fomentado, desde a sua origem, a ideia de que apenas
ele poderia proteger os judeus do antissemitismo, o que acontece na realidade é
o inverso. Não é o Estado de Israel que protege os judeus do antissemitismo –
que lamentavelmente ainda existe e se expressa seja em grupos neonazistas e
neofascistas, seja nas fantasiosas alusões a supostas formas de dominação
judaica mundial, ou mesmo quando ressentimentos anti-israelenses transbordam
para expressões indevidas e impróprias de raiva contra judeus –, são os judeus
individuais que protegem o Estado de Israel de críticas cada vez mais duras (em
geral devido à sua atuação cada vez pior contra os palestinos). Inseridos na
cultura do medo, esses judeus protegem o Estado de Israel de críticas, na
maioria das vezes bastante objetivas e racionais, como se protegessem seu
próprio direito à existência enquanto pessoa judia em qualquer país do mundo. A
mencionada conflação entre sionismo e judaísmo é acompanhada pela conflação
entre o judeu individual, o judeu coletivo e o Estado de Israel.
Hoje, não há dúvida de que há um genocídio
palestino sendo executado em nome da segurança de Israel, que por sua vez se
arroga a posição de representante e protetora de todos os judeus do mundo. Mas
também chama a atenção que a política de extrema violência israelense parece
ter rompido, para muitos judeus, a barreira do medo. A brutalidade do genocídio
palestino vem causando questionamentos, fissuras e o distanciamento de um considerável
número de jovens judeus ao redor do mundo em relação ao sionismo. Pode-se
dizer, como muitos têm feito, que o judaísmo vive a sua maior crise de
consciência desde a criação do Estado de Israel. Crise esta que se
manifesta “através de uma rejeição decisiva ao uso dos traumas coletivos do
povo judeu para justificar a ocupação e a violência contra os palestinos”.
Os gritos de não em meu nome! e
de nunca mais é agora! entoados nas manifestações
pró-Palestina revelam não apenas uma oposição absoluta ao genocídio, mas, de
maneira mais profunda, uma ruptura radical desses jovens judeus com a cultura
do medo cultivada pelo sionismo há décadas como forma de justificar os crimes
cometidos contra o povo palestino e manter intacta a adesão dos judeus à
ideologia sionista. O genocídio palestino, em suma, está provocando uma mudança
de paradigma em relação à ideia da inevitabilidade do sionismo e da necessidade
de todo judeu protegê-lo enquanto garantia da sua própria segurança e
sobrevivência.
Mas este livro, publicado originalmente em
1998, nunca teve por objeto o movimento sionista, que àquela altura vivia o
ápice da ilusão de paz transmitida ao mundo pelo processo de Oslo. O movimento
sionista só aparece neste volume como parte das disputas políticas e ideológicas
entre os vários movimentos judaicos de esquerda na passagem do século XIX ao
XX. Por ter sido minoritário, aparece pouco, como seria de se esperar de uma
pesquisa que não tem o sionismo como seu eixo de análise e volta ao passado sem
se pautar pelas disputas do presente. O que faz este livro, em contrapartida, é
resgatar a história que a vitória do movimento sionista buscou ocultar, quando,
em meados da década de 1950, tentou ressignificar o sionismo como a realização
da luta histórica do povo judeu, relegando outras correntes e outros
movimentos, de fato majoritários até o entreguerras, a meras notas de rodapé da
história judaica. Este livro descreve, por exemplo, como o combate ao
antissemitismo no Império tsarista foi empreendido pelo movimento revolucionário
russo, ou como a esquerda judaica e as principais alas da esquerda russa
lutaram lado a lado para proteger comunidades judaicas dos pogroms durante a
guerra civil que se sucedeu à Revolução de 1917. Resgata também a vida judaica
nos guetos da Europa oriental, onde os trabalhadores judeus formariam os
primeiros círculos operários
e intelectuais, cujo desenvolvimento daria origem ao Bund, o primeiro grande
partido operário social-democrata da Rússia, inicialmente maior que o próprio
POSDR, de onde saíram mencheviques e bolcheviques pouco tempo depois. Analisa
os debates entre as correntes judaicas de esquerda a respeito do modelo de
emancipação e dos métodos que defenderiam para chegar a ela. Enfim, aborda
como, na prática, os judeus engajados viveram seu judaísmo, viram e pensaram
sua própria emancipação, a relação dela com a emancipação geral de todos os
trabalhadores, e a luta contra o antissemitismo.
No momento da sua primeira edição, em 1998,
posso dizer com certa segurança que este livro despertou o interesse de alguns
setores minoritários da comunidade judaica. Pode ser exagero meu falar em setores,
talvez tenham sido apenas alguns indivíduos, velhos militantes comunistas,
intelectuais, integrantes da esquerda local que conheciam muito bem a história
do engajamento dos judeus nos movimentos revolucionários da esquerda mundial.
Nomes tão saudosos como Jacob Gorender, Max Altman, Jacob Guinsburg e Maurício
Tragtenberg, entre outros, guardavam na própria pele e em suas trajetórias a
história do engajamento judaico nos movimentos de emancipação ao redor do
mundo. Este livro, mesmo sem tratar do Brasil, falava diretamente ao legado
desses grandes combatentes.
Hoje, quem sabe, é possível que esta nova
edição de um livro há muito esgotado desperte algum interesse entre os jovens
judeus que desde o início do genocídio em Gaza criticam a política sionista e
se engajam em movimentos contrários a ele. Talvez possam encontrar aqui alguma
coisa do passado que explica quem eles são e o que os move atualmente. Afinal,
observamos hoje o “ressurgimento de uma esquerda judaica que foi
deliberadamente destruída pelo judaísmo oficial entre as décadas de 1950 e
1980”. São jovens que retornam às correntes não sionistas do pensamento crítico
que prevaleceu entre os judeus antes da Segunda Guerra Mundial, o Holocausto, e
a criação do Estado de Israel.
Mais que isso, ao afastar-se do sionismo,
essa juventude é isolada e segregada da comunidade pelas elites judaicas
tradicionais, que temem o seu ativismo e os seus questionamentos. Como nota
Edgar Azevedo, “a ofensiva das organizações oficiais acusa os dissidentes de
não serem ‘judeus de verdade’, e a resposta militante, por sua vez, questiona
não apenas a legitimidade, mas também a autoridade dessas entidades para
determinar a essência da identidade judaica na arena contemporânea”.
A juventude dissidente está, assim, passando
por um processo de busca por novos espaços para viver a sua cultura,
ressignificando o seu judaísmo e rejeitando o controle que o establishment sionista
exerce sobre a comunidade. É uma crise que abala as relações familiares,
reconectando-se, em muitos casos,
ao passado reprimido de um judaísmo redentor de esquerda que lutou pela
emancipação e contra o antissemitismo, sem deixar de denunciar as armadilhas e
os crimes do projeto colonizador na Palestina.
Percebe-se, assim, que não havia como deixar
de falar do contexto em que surge esta segunda edição, revisada e ampliada para
incluir dois novos capítulos. Um sobre os judeus nas Brigadas Internacionais da
Guerra Civil Espanhola, representando, ao mesmo tempo, o ápice da esperança em
derrotar o fascismo e o seu fracasso às portas da Segunda Guerra Mundial; e
outro acerca das ideias de Leon Trótski, o único teórico e líder político da
esquerda mundial a prever a eliminação dos judeus da Europa. Hoje, pode-se
dizer que o dilacerante genocídio do povo palestino perpetrado em nome da
segurança do Estado sionista é mais um capítulo da mesma tragédia que teve o
Holocausto como um de seus pontos mais críticos e tristes. Esperamos, assim,
que o contexto lance sua luz sobre a história que buscamos resgatar de maneira
abrangente, e o mais fielmente possível, nestas páginas. Certamente, um começo.
Fonte: Por Arlene Clemesha, no Blog da
Boitempo

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