Golpe de Estado à brasileira
O
título deste texto é uma alusão a um filme italiano de comédia de 1973,
dirigido por Mario Monicelli, chamado Vogliamo i colonnelli, isto
é, “queremos os coronéis”, mas lançado no Brasil com o título de Golpe
de Estado à italiana. O protagonista é o deputado de direita Giuseppe
Tritoni, que promove secretamente um atentado contra a Madonnina, uma imagem da
Virgem Maria situada no topo da Catedral de Milão, com o objetivo de culpar os
comunistas e manchar a imagem da esquerda. O atentado é um fracasso, por pouco
a farsa não vem à tona, mas Tritoni já tem o pretexto que queria para romper
com seu partido, por considerá-lo tolerante demais com o crescimento da
esquerda e, no limite, com a própria consolidação democrática, a pouco mais de
vinte anos da derrocada do regime fascista de Mussolini. O próximo passo do
deputado é buscar uma lista secreta de oficiais militares dispostos a aderirem
a uma operação de tomada do poder por meio de um golpe de Estado.
Não me
arrisco a continuar narrando o enredo do filme porque não quero comprometer a
experiência de quem o quiser assistir, e além disso, acabo de ler alguns
trechos da denúncia apresentada pela Procuradoria Geral da República (PGR)
contra Bolsonaro, Braga Netto, Augusto Heleno e outros, e por isso eu correria
o risco de confundir ficção italiana com realidade brasileira. Cumpre dizer, no
entanto, que o filme é livremente inspirado em um plano para um golpe de Estado
que foi realmente concebido pelo então presidente da República Italiana,
Antonio Segni, em 1964 (!), junto ao general Giovanni de Lorenzo, então
comandante dos Carabinieri, uma das quatro forças armadas da Itália. Na vida
real, portanto, ao contrário do filme, tratava-se de um “autogolpe”: a ideia
não era tomar o poder, mas ampliá-lo e consolidá-lo por meio das armas,
neutralizando opositores que, no caso, eram sobretudo comunistas e socialistas
que participavam ativamente da vida pública do país, e que, caso o golpe fosse
desencadeado, seriam enviados para um prisão na Sardenha.
Já se
vão uns quatro anos desde que assisti Golpe de Estado à italiana, mas no último
mês de dezembro, quando soubemos do plano de assassinato de autoridades
formulado por oficiais do Exército Brasileiro, cujos alvos eram Lula, Alckmin e
Alexandre de Moraes, foi impossível não lembrar – com gosto – da sátira de
Monicelli, cujos alvos, por sua vez, foram militares de alto escalão que se
ocupavam de sabotar a suscetível democracia italiana. Hoje, lendo sobre o
filme aqui, descubro, aliás,
que o personagem do deputado Tritoni foi inspirado em Sandro Saccucci,
ex-tenente de uma brigada de paraquedistas do Exército Italiano, preso por
envolvimento em uma outra tentativa de golpe, diferente daquela que já
mencionei, e que após 11 meses de prisão provisória foi eleito deputado por um
partido neofascista. Embora a Itália aparentemente também não seja para
principiantes, como é o caso do Brasil, Saccucci pelo menos teve sua carreira
política comprometida quando fugiu do país para escapar de uma condenação na
justiça referente a um incidente num comício em 1976, ocasião em que, em meio a
tumultos, um jovem comunista foi assassinado por um de seus apoiadores. No
Brasil, o nosso deputado/terrorista local jamais abandonou as suas origens
tumultuadas como figura relevante de direita. Ao contrário do seu congênere
italiano (que acabou se autoexilando na Argentina e caindo no esquecimento),
chegou ao posto mais alto da República elegendo-se presidente em 2018.
A eleição
de Bolsonaro viria a corresponder, no entanto, a uma “vitória de Pirro” para muitos
militares, ou seja, uma conquista que logo se converteria em revés. Ao ocupar o
governo com tamanha avidez, como fizeram durante o mandato de Bolsonaro, eles
se igualaram a políticos do tipo mais rasteiro e oportunista, com os quais
descobriu-se que tinham muito mais em comum do que se supunha. As forças
armadas passaram, então, a conviver com o derretimento de uma consolidada
popularidade, para o que certamente terá contribuído, ainda, o desempenho de um
general como Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde em plena pandemia. Mas o
momento mais icônico do apagamento das tão divulgadas diferenças entre
militares e políticos “tradicionais” pode ter sido protagonizado pelo general
Heleno, com sua graça habitual, ao cantar o refrão da música Reunião de Bacana
para se referir ao Centrão parlamentar (“Se gritar pega ladrão/Não fica um, meu
irmão”), e, pouco tempo depois, ao ajustar seu discurso diante de novos amigos: “Eu conhecia muito
pouca gente do Centrão, e aquela era a sensação que eu tinha. Hoje, muitos
deles são meus amigos. Praticamente todos”.
Qual o
significado desta transformação radical no juízo do general Heleno sobre o
Centrão? Ora, fica a suspeita de que ele tenha se dado conta de que a política
pode ser um bom negócio, assim como o é para muitos parlamentares desta
genérica maioria que convencionamos chamar de Centrão, e este interesse comum
fez florescer as novas amizades. A busca do general Heleno por bons negócios a
partir de 2019, aliás, faz ainda mais sentido se considerarmos que até cerca de
um ano antes de integrar o governo Bolsonaro, ele recebia um salário de quase R$
60.000,00 como Diretor de Comunicação e Educação Corporativa do Comitê Olímpico
Brasileiro. É de se supor, portanto, que após deixar o cargo ele buscasse
outras formas de complementar sua renda, para preservar o estilo de vida
reconhecidamente austero dos altos oficiais militares brasileiros. E, para
isso, nada como contar com algumas – ou, muitas – amizades no Centrão, que no
governo Bolsonaro se especializou em arrebatar parcelas graúdas do
orçamento.
A esta
altura, já não surpreende a ninguém que o general Heleno e os seus comparsas do
alto oficialato estivessem envolvidos em conspirações por um autogolpe
preventivo contra a posse do presidente Lula: eles tinham muito a perder. Se o
resultado da eleição presidencial de 2022 colocou parte das nossas direitas
exaltadas em modo de redução de danos, o núcleo ativo do golpe, ao contrário,
estava decidido a não recuar. A atual denúncia da PGR dá destaque a outra frase
famosa do nosso engajado general Heleno, ao incitar seus companheiros à ação
durante uma das últimas reuniões dos bacanas realizada em prédio público: “o
que tiver que ser feito tem que ser feito antes das eleições. Se tiver que dar
soco na mesa, é antes das eleições. Se tiver que virar a mesa, é antes das
eleições”. Para a frustração de Augusto Heleno, no entanto, o soco na mesa não
foi desferido, e pra piorar, os seus desejos mais íntimos estão sendo revelados
publicamente, contribuindo, assim, para o agravamento da crise moral das forças
armadas. A propósito, a PGR fala em “ato de insurreição em curso” para se
referir ao complô da primavera de 2022, e em uma matéria melancólica do veículo
de extrema-direita Gazeta do Povo se lê que “O que as
fontes ouvidas pela reportagem também concordam é que as denúncias contra
militares da reserva de alto escalão têm um potencial muito elevado para piorar
a imagem pública do Exército. A instituição acaba sendo criticada tanto por
parcela da população que era favorável a uma a uma intervenção militar na
política quanto pelas pessoas que eram contrárias a essa possibilidade”.
O que
começou, portanto, no governo Bolsonaro, como uma oportunidade para muitos
militares voltarem a fazer o que se habituaram durante a ditadura, ou seja,
ocuparem cargos públicos sem qualquer tipo de responsabilização em padrões
republicanos, está terminando como uma comédia italiana dos anos 70. Cabe
lembrar, ainda, que outro dos personagens principais desta trama, o general
Braga Netto, embora tenha sido preso preventivamente em dezembro passado, está
saindo ileso com relação ao período em que comandou a intervenção federal no
estado do Rio de Janeiro, durante o governo Michel Temer. Ora, se hoje sabemos
que Braga Netto foi escalado para a Casa Civil da Presidência para conter a
crise de governança provocada por Bolsonaro durante a pandemia, e se ele é um
dos denunciados pela PGR pelo crime, dentre outros, de “organização criminosa
armada”, não há por que deixar de esperar uma justa investigação sobre o
período em que o general comandou a Operação de Garantia da Lei e da Ordem e a
Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, em 2018.
Será
lícito supor que a intervenção federal no Rio despertou em muitos oficiais o
gosto pelos gabinetes, pelo trânsito livre e desimpedido em meio à
administração “pública”, pouco depois desfrutado, de fato, durante o governo
Bolsonaro. A CPI da Covid nos deu uma chance de imaginar, por exemplo, como
terá sido o ambiente de trabalho nas repartições do Ministério da Saúde sob o
comando de Pazuello, que até então “nem sabia o que era o SUS”. Há tempos que faz
parte da mística militar brasileira uma diferenciação crucial entre o éthos militar
e o civil: eles reuniriam, como que instintivamente, um conjunto de virtudes,
enfeixadas pela disciplina, enquanto os civis estariam sempre propensos aos
vícios e à devassidão. É o que se buscou representar, por exemplo, no
deprimente vídeo institucional da Marinha que
acabou sendo excluído algumas
horas depois de publicado. O fato do vídeo ter gerado constrangimento
generalizado, e não a exaltação que se esperava, demonstra o estado de
esfacelamento em que se encontra esta crença que provém dos quarteis, e que é
também um legado da ditadura. O brio dos nossos militares e sua arrogância com
relação aos seus concidadãos não é outra coisa senão um disfarce, uma distração
para o fato de que, durante a ditadura, eles se afastaram e distorceram a sua
razão de ser, que é a preparação para a guerra.
O
Brasil é um país pacífico, pelo menos das nossas fronteiras pra fora. À exceção
das experiências pontuais, mas significativas, nas duas guerras mundiais, e da
participação um tanto vergonhosa na invasão da República Dominicana pelos
Estados Unidos em 1965, já faz bastante tempo que não nos envolvemos em
conflitos armados, sobretudo no que se poderia considerar o nosso entorno
estratégico imediato – a última ocorrência deste tipo foi a Revolução Acreana,
na virada do século XIX para o XX, entre o Brasil e a Bolívia, e pouco antes
disso, na Revolução Federalista do Rio Grande do Sul, quando houve envolvimento
argentino e uruguaio. A extensão territorial brasileira foi sabiamente levada
em consideração por gerações de diplomatas, cientes da importância de se evitar
conflitos relacionados às nossas fronteiras, considerando o quão difícil seria
empreender o necessário esforço defensivo. Estas diligências diplomáticas foram
bem sucedidas, ao ponto de terem contribuído decisivamente para a atribuição
que não raro se faz ao brasileiro como sendo um povo cordial. O horizonte das
nossas forças armadas, portanto, deveria se entrever no duplo propósito de
manutenção da paz externa e de dissuasão de potenciais agressores, mas,
historicamente, elas se desvirtuaram e foram desvirtuadas deste ideal, como
agentes ativos e passivos concomitantemente.
Não é
objetivo deste texto rastrear as possíveis origens desta desvirtuação – que,
aliás, não é um processo contínuo, tampouco coerente, mas, cabe a consideração
sobre alguns momentos particularmente importantes da nossa evolução política,
de modo a colocarmos em perspectiva problemas contemporâneos como este, cuja
expressão mais recente é o papel controverso (se me permitem o eufemismo)
exercido por militares no governo Bolsonaro. Refiro-me, de início, à conjuntura
política que se seguiu à Guerra do Paraguai, nas décadas de 1870 e 1880, quando
ocorreu uma série de embates públicos entre militares veteranos da guerra e
políticos procedentes do regime imperial, que resultou na proibição aos
integrantes do Exército de se manifestarem politicamente por meio da imprensa
sem autorização prévia. A indignação provocada nos quartéis deu grande ensejo à
solidariedade e ao corporativismo militar, e, no limite, jogou o Exército
contra a própria monarquia. A formação intelectual de muitos oficiais mais
jovens, que também os incitava à participação política, foi outro fator que
contribuiu para posicionar a corporação junto às fileiras do republicanismo –
daí, o 15 de novembro de 1889, protagonizado pelo marechal Deodoro da Fonseca,
veterano do Paraguai e figura simbólica mais expressiva do Exército.
Contudo,
a Proclamação da República não deve ser entendida como um ato de rebeldia dos
militares. Para que tenha sido bem sucedida, a manobra precisou do envolvimento
decisivo de grandes fazendeiros paulistas, oligarcas do café, que já não tinham
por que se fazer de lastro do regime monárquico que tanto os havia beneficiado
enquanto sustentou a escravidão. Como nos explica Rodrigo Goyena Soares, “A força paulista é
a materialidade sobretudo econômica” na formação da República. Como era grande
a diferença entre os interesses e visões de mundo destes dois grupos políticos
organizados, eles entraram em conflito depois da derrubada da monarquia, mas o
novo regime eventualmente foi hegemonizado pelos fazendeiros, e constituiu-se o
que Joaquim Nabuco então já havia prefigurado como o “reinado do café”. A
partir daí, parte importante do Exército não apenas se opôs como pegou em armas
contra este “reinado”, sobretudo ao longo da década de 1920, e a corporação
chegou a separar-se em lados opostos e conflitantes em tantos momentos a partir
do tenentismo e, depois, na Coluna Prestes, na Revolução de 1930, na Revolução
Constitucionalista de 1932, no levante comunista de 1935 e no levante
integralista de 1938. O que quero salientar é que o Exército nunca agiu
sozinho, como um bloco unificado e dotado de plena coerência e autossuficiência
política, e que quase sempre esteve prioritariamente envolvido em problemas
domésticos, em detrimento de questões de segurança externa.
Assim
como em Golpe de Estado à italiana, onde o deputado Giuseppe
Tritoni poder ser visto como representando o poder civil que instiga o poder
militar ao envolvimento ativo na vida política nacional, há muitas ocorrências
na história do Brasil de políticos que buscaram a mão militar, tanto para lhes
amparar, como para fustigar seus adversários. Seria, por óbvio, de uma
ingenuidade desmedida imaginar que com a mão não viesse o corpo inteiro. Não é
estranho, portanto, que eles se vejam como agentes ora da ordem, ora do
progresso. Podemos não concordar, e procurar fazer com que haja uma mudança nos
costumes e nas instituições para que deixe de ser assim, mas não é estranho. Quem
se dedica ao estudo da história política do Brasil tende a concluir que, se do
ponto de vista democrático não há fundamento para que os militares se vejam
como protagonistas da nossa vida pública, do ponto de vista histórico, essa
noção tem respaldo. Se eles nunca se ocuparam exclusivamente de questões de
defesa e segurança externa, é porque as relações civis-militares têm sido
promíscuas, e este é um traço que deve ser atribuído reciprocamente.
Ao
contrário do que se pode observar em países como Estados Unidos e China, a
comunidade política brasileira demonstra enorme dificuldade em formar consenso
sobre temas de interesse nacional. O Exército Brasileiro (mais do que as outras
duas forças) já foi explicitamente dividido, por exemplo, com relação à questão
do desenvolvimento e da industrialização do país. Foi, em parte, contra este
estado de coisas que um grupo de generais bem articulado arquitetou o regime
ditatorial de 1964, e decidiu arbitrar autonomamente sobre o que consistiria
interesse nacional prioritário, dirigindo, então, o país conforme as suas
intuições. A experiência foi trágica para o Brasil como um todo, inclusive para
as forças armadas, em meio às quais passou a ser cultivado o mais sórdido
ressentimento. Este reconhecimento é tão importante para encararmos
propriamente o imperativo de inovação nas nossas relações civis-militares
quanto as punições aos generais que há décadas têm ficado tão à vontade para
planejar novos golpes de Estado à brasileira. O “ato de insurreição” sobre o
qual fala a denúncia da PGR está em curso há décadas, mas nunca esteve tão
explícito. Agora, cabe aos militares demonstrarem concretamente a disposição
para despoluir o ambiente político brasileiro, assim como cabe a nós, civis,
demonstrarmos disposição para o entendimento, sem ingenuidade.
Enquanto
se comportarem como viúvos da ditadura, e acreditarem cegamente que
“ideológicos” são sempre os outros, os oficiais das forças armadas estarão
condenando as corporações militares do país à obsolescência. Assuntos relativos
à guerra e à paz, em um mundo cada vez mais abertamente conturbado, demandam
ser tratados com a devida importância, e é sobretudo por isso que tem sido
profundamente lamentável saber como é generalizado entre os próprios generais
brasileiros o tratamento das nossas forças armadas como uma milícia política
reacionária. Mas esta é também uma oportunidade para o enquadramento das
instituições de Estado às nossas melhores aspirações democráticas e
desenvolvimentistas, cientes de que para a profissionalização do aparato
militar brasileiro, o envolvimento ativo e aberto do elemento civil é crucial.
Não há por que, por exemplo, manter a formação do oficialato como uma
atribuição quase exclusiva dos próprios militares, sendo que temos uma
comunidade acadêmica de alto nível dedicada aos estudos de defesa e segurança
global.
No
filme de Monicelli, certa altura o protagonista, Tritoni, conclama os seus
comparsas para o golpe com as seguintes palavras: “Chegou a hora de agir: um
punhado de homens determinados e todos nos seguirão. Alguns por fé, alguns por
interesse, alguns por medo”. É uma frase que poderia perfeitamente ter sido
dita por um dos nossos personagens fardados do governo Bolsonaro que
conspiravam ativamente em 2022. Agora, temos a ocasião para afirmar, enquanto
cidadãos brasileiros, que com relação aos militares, nossos concidadãos, não
nos cabe ter fé – porque não se trata disso, nem interesses privados, e muito
menos medo. Temos um destino comum pela frente, que convém ser levado mais a
sério.
Fonte: Por Bernardo Rocha de Carvalho, em Outras Palavras

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