terça-feira, 2 de julho de 2024

Flávio Fligenspan: Real 30 anos - a herança maldita da dívida pública

No momento em que se comemoram 30 anos da moeda Real e uma inflação controlada e baixa para o padrão histórico brasileiro, cabe dizer que tal comemoração é justa e merecida. Também vale referir que desde a segunda metade da década de 1990 a estabilidade da moeda foi absorvida pela sociedade como um valor intrínseco e inegociável, felizmente deixando de ser associada a um governante específico. Não é por acaso que Fernando Henrique se elegeu no primeiro turno em 1994 e em 1998, intitulando-se o pai do Real, mas não elegeu seu sucessor em 2002, pois, com o passar do tempo, apenas se classificar como responsável pelo controle da inflação já não mais bastava, agora o crescimento econômico era a aspiração maior. A sociedade já havia transformado a estabilidade em um valor seu e não mais personalizada em alguém especial. Contudo, há que se ter cuidado na análise. Se o controle da inflação passou a ser um valor da sociedade e mantê-lo não traz crédito, o descontrole traz a responsabilização imediata e dura, com inevitável punição nas urnas.

Pois bem, mesmo que a comemoração seja justa e merecida, ela não deve ser suficientemente forte para apagar erros e impedir uma avaliação crítica da história da política econômica do Real. Nem tudo resultou em sucesso e as consequências negativas de algumas opções cobram seu preço até hoje. É o caso, por exemplo, dos primeiros momentos do Real, especialmente seus primeiros quatro anos e meio, até a virada de 1998 para 1999, enquanto vigorou a política da “âncora cambial”. Como se sabe, naquele período o controle da inflação esteve decisivamente ligado ao controle artificial da taxa de câmbio, com valorização do Real, e, portanto, tornando as importações muito baratas e fazendo com que os preços dos produtos estrangeiros servissem de âncora para os preços dos produtos nacionais.

Isto segurava os preços, mas criava um grande déficit comercial que deveria ser financiado com a entrada de recursos externos atraídos por uma taxa de juros muito alta, que chegou a mais de 60% ao ano – na medida anualizada – nos momentos mais críticos. Como isto funcionava? O Governo emitia títulos da dívida pública que prometiam pagar estas elevadas taxas de juros, o que atraia o capital especulativo internacional. Os gestores de fundos internacionais que fizessem a opção de aplicar seus recursos no Brasil assumiam pelo menos dois riscos: o do Governo não honrar sua dívida, como já havia feito no passado recente, e o de ocorrer uma desvalorização cambial, o que traria um enorme prejuízo. Imagine se o gestor estrangeiro trouxesse recursos com uma taxa de câmbio baixa e os aplicasse a juros altos no Brasil, mas na hora de repatriar seus recursos a taxa de câmbio tivesse subido muito; ele compraria dólares para remeter ao exterior por um preço alto e perderia no câmbio tudo que ganhou com juros. Seria um mau negócio.

Para dar conta destes riscos, a taxa de juros era excepcional. Tratava-se de uma opção bem delicada para os gestores estrangeiros, principalmente em momentos de turbulência financeira internacional, como na crise do México em dezembro de 1994, na crise do sudeste asiático no meio de 1997 e na crise da moratória russa em agosto de 1998. Nestas ocasiões, em que o sistema financeiro internacional tremeu, o Brasil teve que elevar sua taxa de juros ainda mais, para assegurar o financiamento estrangeiro e sustentar o Real. Era, sem dúvida, um tempo de muita insegurança e muita instabilidade. O Governo tentava se mostrar tranquilo e firme, declarando publicamente que não havia problemas, já que o capital estrangeiro confiava na economia brasileira e no Real. Não era bem “confiança”, era na verdade uma enorme taxa de juros que fazia o capital estrangeiro correr o risco de vir ao Brasil.

E como o esquema de financiamento externo se completava internamente? Ora, quem pagava os juros altos, para atrair os dólares, financiar o déficit externo e constituir as reservas que bancavam a cotação manipulada do Real era a dívida pública. O Governo teve que emitir um volume enorme de títulos para bancar a “âncora cambial”. Obviamente, a dívida pública disparou junto com o déficit comercial.

Foi assim que o Real funcionou, aos trancos, soluços e temores nos seus primeiros anos, até que chegou a vez da nossa crise, em janeiro de 1999, quando o capital estrangeiro fugiu do Brasil – o medo foi mais forte que a taxa de juros e a “confiança” –, o Real quebrou e passamos a um novo arranjo de política econômica, o das metas de inflação. A nova política, em vigor até hoje, não tem mais o câmbio como âncora e é mais estável que a anterior. Isto não afasta seus próprios defeitos e suas distorções, que não são poucos.

Ocorre que a política da “âncora cambial” gerou uma expansão muito grande da dívida pública. A dívida atual, que é discutida diariamente na imprensa e que pressiona a política econômica é, em parte, a tataraneta da dívida dos primeiros anos do Real. Em parte, porque os déficits das contas também se transformam em aumento da dívida. Dado que o Governo não gera superávit fiscal, ou pelo menos não gera o suficiente para pagar os juros da dívida – nos anos em que produz superávit –, o estoque da dívida só cresce. O indicador mais importante para acompanhar a dívida não é seu valor absoluto, mas sua relação como o PIB, a famosa relação dívida/PIB, atualmente em torno de 60% (no conceito de dívida líquida do Governo Geral).

Este indicador é usado regularmente pelos analistas do mercado financeiro para avaliar a capacidade de pagamento do Estado, e, se passa de determinados percentuais ou sobe rapidamente, o mercado financeiro considera que o risco de financiar (rolar) a dívida pública aumenta e exige taxas de juros maiores. Contraditoriamente, taxas de juros maiores aumentam o estoque da dívida e, portanto, aumentam o risco, num processo de retroalimentação.

Assim que, neste momento de celebração dos 30 anos do Real, é bom não esquecer do seu legado negativo. Nestes dias, muito tem se falado da estabilidade conquistada, da previsibilidade no planejamento dos negócios e na execução dos orçamentos públicos e privados. Tudo isto é verdade, mas também o é a discussão diária no tocante ao peso da dívida pública, inclusive sua influência sobre as decisões correntes no que respeita à taxa de juros e o quanto isto impacta o dia a dia das empresas. O próprio sistema financeiro, que se transformou radicalmente com o Real, debate diariamente o peso da dívida pública na economia brasileira. Ora, a dívida de hoje é a herdeira da dívida super ampliada do início do Real. Não é possível exaltar o Real e, simultaneamente, criticar a relação dívida/PIB, como se não houvesse relação histórica entre eles.

 

¨      Apesar de avanço do Pix, dinheiro físico resiste em 30 anos de real

Na feira do Largo do Machado, na zona sul do Rio de Janeiro, o pagamento eletrônico não é unanimidade. Com medo de taxas de maquininhas de cartão ou sem tempo para tirar o celular do bolso e abrir o aplicativo do Pix, há consumidores que ainda preferem pagar as compras com cédulas e moedas, apesar do avanço de meios eletrônicos de pagamento.

“Tenho usado muito [cartão de] débito e Pix, mas hoje terei de sacar dinheiro no banco. A mulher botou um real em cima dos limões que comprei porque o preço aumentou R$ 1 por causa da taxa de cartão”, diz a servidora pública Renata Moreira, 47 anos. “Há lugares estratégicos em que vou com dinheiro, cédula. Às vezes, o Pix dá trabalho porque tem de tirar o telefone da bolsa [em lugares de risco] e tem de ter acesso à internet”, completa.

Segundo o Banco Central (BC), a circulação de papel-moeda persiste em 30 anos de criação do real. Na última sexta-feira (28), conforme as estatísticas mais atualizadas da autoridade monetária, existiam R$ 347,331 bilhões de cédulas e de moedas em circulação na economia, o equivalente a 3,13% do Produto Interno Bruto (PIB, soma dos bens e serviços produzidos no país).

A proporção está diminuindo após a pandemia de covid-19. Em informações exclusivas repassadas à Agência Brasil, o Departamento de Meio Circulante do BC informa que o percentual de papel-moeda em circulação subiu de cerca de 2% em meados dos anos 1990 para um valor ligeiramente abaixo de 4% em 2007. A proporção manteve-se ao redor desse nível até 2019, disparando para 5% do PIB em 2020, com a criação do auxílio emergencial durante a pandemia.

Segundo o BC, após a pandemia de covid-19, o valor de cédulas e de moedas em circulação tem se mantido estável em torno de R$ 345 bilhões, com a proporção em relação ao PIB caindo. “Apesar do surgimento de novos meios de pagamento, como o Pix, para apresentar impactos sobre os hábitos de uso dos meios de pagamento anteriormente existentes será necessário algum tempo, a fim de que a evolução desses impactos possa ser claramente mapeada”, informou o Departamento de Meio Circulante em nota.

<><> Comparação

Em maio, o Pix movimentou R$ 2,137 trilhões, o equivalente a 19,26% do PIB. A quantia e o percentual, no entanto, não podem ser diretamente comparados com os 3,13% do PIB em cédulas e em moedas. Isso porque o Banco Central mede o valor de todas as transações eletrônicas, enquanto o dinheiro físico é calculado com base no estoque fora dos bancos, sem considerar as movimentações.

Segundo BC, o sistema de transferências instantâneas, que funciona 24 horas por dia, tem favorecido a inclusão financeira da população. Conforme dados da Gerência de Gestão e Operação do Pix, ao considerar transações até dezembro de 2022, mais de 71,5 milhões de pessoas que não faziam transferências eletrônicas antes do Pix passaram a fazer esse tipo de operação.

Em relação às faixas de renda, o sistema é usado por pessoas de todos os estratos financeiros. Conforme a edição mais recente do Relatório de Gestão do Pix, possuem pelo menos uma chave Pix 71% das pessoas com um salário mínimo, 85% entre um e dois salários mínimos, 86% das pessoas de dois a cinco salários mínimos, 90% entre cinco e dez salários mínimos e 89% a partir de dez salários mínimos.

<><> Idade

O principal fator de resistência ao Pix e de preferência pelo papel-moeda e pelo cartão de plástico, no entanto, é a idade. Segundo o mesmo relatório, 93% das pessoas de 20 a 29 anos possuem uma chave. A proporção permanece em níveis semelhantes nas demais faixas etárias: 91% de 30 a 39 anos e 92% de 40 a 49 anos. Nas faixas seguintes, o percentual cai: 79% de 50 a 59 anos e apenas 55% na faixa acima de 60 anos.

Frequentadora da feira do Largo do Machado, a aposentada Marina de Souza, 80 anos, personifica a reticência com o Pix, preferindo cartões e dinheiro físico. “Não pago com Pix. Não gosto. Pago mais com cartão de débito, menos na feira, onde só uso dinheiro porque eles anotam uma coisa, a gente se distrai, e eles cobram outra. Então tenho sempre aquele dinheirinho sacado, que fica reservado para a feira. As outras compras, só com cartão”, justifica.

“Ainda estou na fase do dinheiro e do cartão. Não sou muito de Pix ainda não. Tenho [uma chave], mas não aderi muito. Estou sempre com o dinheirinho para pagar as contas”, diz a dona de casa Hilda Pereira, 65 anos, também consumidora da feira do Largo do Machado.

Segundo o BC, parte da decisão de criar as modalidades de Pix saque e de Pix troco, onde o consumidor transfere um valor por Pix a um comércio e saca a diferença em espécie, deve-se à predileção pelo papel-moeda por parte da população. Conforme a autoridade monetária, a preferência é maior em municípios do interior com pouca cobertura bancária.

“A possibilidade de sacar dinheiro usando o Pix teve como objetivo propiciar melhores condições de oferta do serviço à sociedade, principalmente em regiões em que a cobertura da rede bancária é insuficiente. Parte da população brasileira ainda tem hábito de uso do dinheiro em espécie e carecia de uma rede adequada”, explicou o Banco Central em nota à Agência Brasil.

<><> Endividamento

Professora de economia da Fundação Getulio Vargas (FGV), Virene Matesco diz que a preferência pelo papel-moeda é desigual conforme a região do país. “Temos um país extremamente heterogêneo. Quero saber se nesse interiorzão do país alguém fala de Pix. Porque muita gente não tem celular moderno”, constata. Segundo ela, o maior avanço de transferências eletrônicas como o Pix, e futuramente o Drex (versão digital do real), está na redução de custos de transação e no aumento da velocidade de circulação da moeda.

Virene, no entanto, admite que o avanço dos sistemas eletrônicos de pagamento tem um risco associado: a ampliação da tendência de o cidadão endividar-se. “A velocidade da circulação aumenta violentamente, assim como a capacidade de o correntista entrar no vermelho. O problema piora com as apostas virtuais de joguinhos online. A tecnologia beneficia muita gente, mas também traz perigos”, adverte.

 

Fonte: Sul 21/Agencia Brasil

 

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