Flávio
Fligenspan: Real 30 anos - a herança maldita da dívida pública
No
momento em que se comemoram 30 anos da moeda Real e uma inflação controlada e
baixa para o padrão histórico brasileiro, cabe dizer que tal comemoração é
justa e merecida. Também vale referir que desde a segunda metade da década de
1990 a estabilidade da moeda foi absorvida pela sociedade como um valor
intrínseco e inegociável, felizmente deixando de ser associada a um governante
específico. Não é por acaso que Fernando Henrique se elegeu no primeiro turno
em 1994 e em 1998, intitulando-se o pai do Real, mas não elegeu seu sucessor em
2002, pois, com o passar do tempo, apenas se classificar como responsável pelo
controle da inflação já não mais bastava, agora o crescimento econômico era a
aspiração maior. A sociedade já havia transformado a estabilidade em um valor
seu e não mais personalizada em alguém especial. Contudo, há que se ter cuidado
na análise. Se o controle da inflação passou a ser um valor da sociedade e
mantê-lo não traz crédito, o descontrole traz a responsabilização imediata e
dura, com inevitável punição nas urnas.
Pois
bem, mesmo que a comemoração seja justa e merecida, ela não deve ser
suficientemente forte para apagar erros e impedir uma avaliação crítica da
história da política econômica do Real. Nem tudo resultou em sucesso e as
consequências negativas de algumas opções cobram seu preço até hoje. É o caso,
por exemplo, dos primeiros momentos do Real, especialmente seus primeiros
quatro anos e meio, até a virada de 1998 para 1999, enquanto vigorou a política
da “âncora cambial”. Como se sabe, naquele período o controle da inflação
esteve decisivamente ligado ao controle artificial da taxa de câmbio, com
valorização do Real, e, portanto, tornando as importações muito baratas e
fazendo com que os preços dos produtos estrangeiros servissem de âncora para os
preços dos produtos nacionais.
Isto
segurava os preços, mas criava um grande déficit comercial que deveria ser
financiado com a entrada de recursos externos atraídos por uma taxa de juros
muito alta, que chegou a mais de 60% ao ano – na medida anualizada – nos
momentos mais críticos. Como isto funcionava? O Governo emitia títulos da
dívida pública que prometiam pagar estas elevadas taxas de juros, o que atraia
o capital especulativo internacional. Os gestores de fundos internacionais que
fizessem a opção de aplicar seus recursos no Brasil assumiam pelo menos dois
riscos: o do Governo não honrar sua dívida, como já havia feito no passado
recente, e o de ocorrer uma desvalorização cambial, o que traria um enorme
prejuízo. Imagine se o gestor estrangeiro trouxesse recursos com uma taxa de câmbio
baixa e os aplicasse a juros altos no Brasil, mas na hora de repatriar seus
recursos a taxa de câmbio tivesse subido muito; ele compraria dólares para
remeter ao exterior por um preço alto e perderia no câmbio tudo que ganhou com
juros. Seria um mau negócio.
Para
dar conta destes riscos, a taxa de juros era excepcional. Tratava-se de uma
opção bem delicada para os gestores estrangeiros, principalmente em momentos de
turbulência financeira internacional, como na crise do México em dezembro de
1994, na crise do sudeste asiático no meio de 1997 e na crise da moratória
russa em agosto de 1998. Nestas ocasiões, em que o sistema financeiro
internacional tremeu, o Brasil teve que elevar sua taxa de juros ainda mais,
para assegurar o financiamento estrangeiro e sustentar o Real. Era, sem dúvida,
um tempo de muita insegurança e muita instabilidade. O Governo tentava se
mostrar tranquilo e firme, declarando publicamente que não havia problemas, já
que o capital estrangeiro confiava na economia brasileira e no Real. Não era
bem “confiança”, era na verdade uma enorme taxa de juros que fazia o capital
estrangeiro correr o risco de vir ao Brasil.
E
como o esquema de financiamento externo se completava internamente? Ora, quem
pagava os juros altos, para atrair os dólares, financiar o déficit externo e
constituir as reservas que bancavam a cotação manipulada do Real era a dívida
pública. O Governo teve que emitir um volume enorme de títulos para bancar a
“âncora cambial”. Obviamente, a dívida pública disparou junto com o déficit
comercial.
Foi
assim que o Real funcionou, aos trancos, soluços e temores nos seus primeiros
anos, até que chegou a vez da nossa crise, em janeiro de 1999, quando o capital
estrangeiro fugiu do Brasil – o medo foi mais forte que a taxa de juros e a
“confiança” –, o Real quebrou e passamos a um novo arranjo de política
econômica, o das metas de inflação. A nova política, em vigor até hoje, não tem
mais o câmbio como âncora e é mais estável que a anterior. Isto não afasta seus
próprios defeitos e suas distorções, que não são poucos.
Ocorre
que a política da “âncora cambial” gerou uma expansão muito grande da dívida
pública. A dívida atual, que é discutida diariamente na imprensa e que
pressiona a política econômica é, em parte, a tataraneta da dívida dos
primeiros anos do Real. Em parte, porque os déficits das contas também se
transformam em aumento da dívida. Dado que o Governo não gera superávit fiscal,
ou pelo menos não gera o suficiente para pagar os juros da dívida – nos anos em
que produz superávit –, o estoque da dívida só cresce. O indicador mais
importante para acompanhar a dívida não é seu valor absoluto, mas sua relação
como o PIB, a famosa relação dívida/PIB, atualmente em torno de 60% (no
conceito de dívida líquida do Governo Geral).
Este
indicador é usado regularmente pelos analistas do mercado financeiro para
avaliar a capacidade de pagamento do Estado, e, se passa de determinados
percentuais ou sobe rapidamente, o mercado financeiro considera que o risco de
financiar (rolar) a dívida pública aumenta e exige taxas de juros maiores.
Contraditoriamente, taxas de juros maiores aumentam o estoque da dívida e,
portanto, aumentam o risco, num processo de retroalimentação.
Assim
que, neste momento de celebração dos 30 anos do Real, é bom não esquecer do seu
legado negativo. Nestes dias, muito tem se falado da estabilidade conquistada,
da previsibilidade no planejamento dos negócios e na execução dos orçamentos
públicos e privados. Tudo isto é verdade, mas também o é a discussão diária no
tocante ao peso da dívida pública, inclusive sua influência sobre as decisões
correntes no que respeita à taxa de juros e o quanto isto impacta o dia a dia
das empresas. O próprio sistema financeiro, que se transformou radicalmente com
o Real, debate diariamente o peso da dívida pública na economia brasileira.
Ora, a dívida de hoje é a herdeira da dívida super ampliada do início do Real.
Não é possível exaltar o Real e, simultaneamente, criticar a relação
dívida/PIB, como se não houvesse relação histórica entre eles.
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Apesar de avanço do
Pix, dinheiro físico resiste em 30 anos de real
Na
feira do Largo do Machado, na zona sul do Rio de Janeiro, o pagamento
eletrônico não é unanimidade. Com medo de taxas de maquininhas de cartão ou sem
tempo para tirar o celular do bolso e abrir o aplicativo do Pix, há
consumidores que ainda preferem pagar as compras com cédulas e moedas, apesar
do avanço de meios eletrônicos de pagamento.
“Tenho
usado muito [cartão de] débito e Pix, mas hoje terei de sacar dinheiro no
banco. A mulher botou um real em cima dos limões que comprei porque o preço
aumentou R$ 1 por causa da taxa de cartão”, diz a servidora pública Renata
Moreira, 47 anos. “Há lugares estratégicos em que vou com dinheiro, cédula. Às
vezes, o Pix dá trabalho porque tem de tirar o telefone da bolsa [em lugares de
risco] e tem de ter acesso à internet”, completa.
Segundo
o Banco Central (BC), a circulação de papel-moeda persiste em 30 anos de
criação do real. Na última sexta-feira (28), conforme as estatísticas mais
atualizadas da autoridade monetária, existiam R$ 347,331 bilhões de cédulas e
de moedas em circulação na economia, o equivalente a 3,13% do Produto Interno
Bruto (PIB, soma dos bens e serviços produzidos no país).
A
proporção está diminuindo após a pandemia de covid-19. Em informações
exclusivas repassadas à Agência Brasil, o Departamento de Meio Circulante
do BC informa que o percentual de papel-moeda em circulação subiu de cerca de
2% em meados dos anos 1990 para um valor ligeiramente abaixo de 4% em 2007. A
proporção manteve-se ao redor desse nível até 2019, disparando para 5% do PIB
em 2020, com a criação do auxílio emergencial durante a pandemia.
Segundo
o BC, após a pandemia de covid-19, o valor de cédulas e de moedas em circulação
tem se mantido estável em torno de R$ 345 bilhões, com a proporção em relação
ao PIB caindo. “Apesar do surgimento de novos meios de pagamento, como o Pix,
para apresentar impactos sobre os hábitos de uso dos meios de pagamento
anteriormente existentes será necessário algum tempo, a fim de que a
evolução desses impactos possa ser claramente mapeada”, informou o Departamento
de Meio Circulante em nota.
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Comparação
Em
maio, o Pix movimentou R$ 2,137 trilhões, o equivalente a 19,26% do PIB. A
quantia e o percentual, no entanto, não podem ser diretamente comparados com os
3,13% do PIB em cédulas e em moedas. Isso porque o Banco Central mede o valor
de todas as transações eletrônicas, enquanto o dinheiro físico é calculado com
base no estoque fora dos bancos, sem considerar as movimentações.
Segundo
BC, o sistema de transferências instantâneas, que funciona 24 horas por dia,
tem favorecido a inclusão financeira da população. Conforme dados da Gerência
de Gestão e Operação do Pix, ao considerar transações até dezembro de 2022,
mais de 71,5 milhões de pessoas que não faziam transferências eletrônicas antes
do Pix passaram a fazer esse tipo de operação.
Em
relação às faixas de renda, o sistema é usado por pessoas de todos os estratos
financeiros. Conforme a edição mais recente do Relatório de Gestão do Pix,
possuem pelo menos uma chave Pix 71% das pessoas com um salário mínimo, 85%
entre um e dois salários mínimos, 86% das pessoas de dois a cinco salários
mínimos, 90% entre cinco e dez salários mínimos e 89% a partir de dez salários
mínimos.
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Idade
O
principal fator de resistência ao Pix e de preferência pelo papel-moeda e pelo
cartão de plástico, no entanto, é a idade. Segundo o mesmo relatório, 93% das
pessoas de 20 a 29 anos possuem uma chave. A proporção permanece em níveis
semelhantes nas demais faixas etárias: 91% de 30 a 39 anos e 92% de 40 a 49
anos. Nas faixas seguintes, o percentual cai: 79% de 50 a 59 anos e apenas 55%
na faixa acima de 60 anos.
Frequentadora
da feira do Largo do Machado, a aposentada Marina de Souza, 80 anos,
personifica a reticência com o Pix, preferindo cartões e dinheiro físico. “Não
pago com Pix. Não gosto. Pago mais com cartão de débito, menos na feira, onde
só uso dinheiro porque eles anotam uma coisa, a gente se distrai, e eles cobram
outra. Então tenho sempre aquele dinheirinho sacado, que fica reservado para a
feira. As outras compras, só com cartão”, justifica.
“Ainda
estou na fase do dinheiro e do cartão. Não sou muito de Pix ainda não.
Tenho [uma chave], mas não aderi muito. Estou sempre com o dinheirinho para
pagar as contas”, diz a dona de casa Hilda Pereira, 65 anos, também consumidora
da feira do Largo do Machado.
Segundo
o BC, parte da decisão de criar as modalidades de Pix saque e de Pix troco,
onde o consumidor transfere um valor por Pix a um comércio e saca a
diferença em espécie, deve-se à predileção pelo papel-moeda por parte da
população. Conforme a autoridade monetária, a preferência é maior em municípios
do interior com pouca cobertura bancária.
“A
possibilidade de sacar dinheiro usando o Pix teve como objetivo propiciar
melhores condições de oferta do serviço à sociedade, principalmente em regiões
em que a cobertura da rede bancária é insuficiente. Parte da população
brasileira ainda tem hábito de uso do dinheiro em espécie e carecia de uma rede
adequada”, explicou o Banco Central em nota à Agência Brasil.
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Endividamento
Professora
de economia da Fundação Getulio Vargas (FGV), Virene Matesco diz que a
preferência pelo papel-moeda é desigual conforme a região do país. “Temos um
país extremamente heterogêneo. Quero saber se nesse interiorzão do país alguém
fala de Pix. Porque muita gente não tem celular moderno”, constata. Segundo
ela, o maior avanço de transferências eletrônicas como o Pix, e futuramente o
Drex (versão digital do real), está na redução de custos de transação e no
aumento da velocidade de circulação da moeda.
Virene,
no entanto, admite que o avanço dos sistemas eletrônicos de pagamento tem um
risco associado: a ampliação da tendência de o cidadão endividar-se. “A
velocidade da circulação aumenta violentamente, assim como a capacidade de o
correntista entrar no vermelho. O problema piora com as apostas virtuais de
joguinhos online. A tecnologia beneficia muita gente, mas também
traz perigos”, adverte.
Fonte:
Sul 21/Agencia Brasil
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