O
contentamento descontente da decisão do STF sobre a maconha
Com
o julgamento do Recurso Extraordinário 635.659/SP, que versava sobre a
possibilidade de descriminalização do
porte de drogas para uso pessoal, o Brasil viveu um momento aguardado por uma
grande parcela da sociedade. Trata-se da parcela irresignada com a realidade
proibicionista, com o encarceramento injusto de jovens pretos, com um sistema
de justiça que não respeita certas liberdades individuais, bem como com
o caráter extremamente agressivo e repressor da polícia quando o assunto é o
uso de drogas.
Presenciamos
também uma reação a esse momento. Setores conservadores e reacionários da
sociedade e da política levantaram a bandeira da defesa das políticas
proibicionistas, do combate ao tráfico e ao uso de drogas, e supostamente do
respeito e proteção às famílias. No campo institucional, o Senado Federal
correu para aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), de autoria do presidente Rodrigo Pacheco, em resposta
ao julgamento – quando sequer havia
se encerrado – para demonstrar a força política daqueles que preferem o modelo repressivo estatal de
combate às drogas, independentemente das suas consequências nefastas. Já na Câmara dos Deputados, a Comissão de
Constituição e Justiça (CCJ) aprovou com folga o texto da PEC.
Não
há dúvidas de que o embate de posições está
presente. Dois lados da sociedade pensam de maneira oposta quando o assunto é
a descriminalização das drogas, seguindo seus valores políticos, morais,
religiosos, ideológicos, suas compreensões sobre o mundo e seus desejos sobre
um modelo de sociedade e civilização. O
próprio Presidente da República, aliado – ao menos em tese – às pautas progressistas, apresentou uma declaração contrária ao movimento da Suprema Corte de julgar
favoravelmente o recurso. Nas palavras dele, o STF não deveria acirrar a
disputa institucional, mas deixar a pauta a cargo do Congresso Nacional.
Inicialmente,
a decisão do STF restringiu a descriminalização,
anteriormente destinada às drogas no geral, ao porte de maconha para consumo
pessoal. No tocante ao critério objetivo a ser estabelecido, ficou fixada a
quantia de 40 gramas de Cannabis sativa ou seis plantas-fêmeas até que o Congresso, cuja legislatura
é majoritariamente eivada de valores morais e religiosos, dê uma decisão final sobre esse
quantitativo.
Todavia,
o critério da quantidade é relativo, uma vez que as autoridades policiais
estão autorizadas a realizar prisão em flagrante por tráfico de drogas
quando identificados outros elementos de prova que fundamentam a traficância,
como a forma de acondicionamento da droga, a variedade das substâncias
apreendidas e a presença de objetos como balança de precisão e registros de
operações comerciais. Corretamente, ficou inadmitida para esses casos a
alegação de critérios subjetivos arbitrários, ainda que tal inadmissão
seja bastante duvidosa, em virtude da conhecida seletividade penal.
Ademais,
tornou-se o porte para consumo pessoal um ilícito administrativo, mas cujas
sanções não criminais de advertência e medidas socioeducativas serão aplicadas por um Juizado
Especial – pasmem – Criminal, até que o Conselho Nacional de
Justiça delibere acerca do rito mais adequado.
Diante
de toda essa realidade política e social, a decisão sobre uma das temáticas
mais caras da sociedade foi modesta para alguns e um desastre para outros
(tanto para aqueles que esperavam mais de uma decisão que se alongou por
tantos anos quanto para os que são contrários à descriminalização).
Pois
bem, no exercício da função típica de controle de
constitucionalidade de norma jurídica, o STF fez aquilo que pôde, dentro da difícil correlação de forças da atual democracia brasileira, mas não
o que deveria ser feito quando analisamos o respeito às garantias individuais,
à autodeterminação, ao pluralismo e a uma possível (e essencial) mudança na estrutura racista e hiperencarceradora da política
criminal de drogas.
Alguns
pontos quase paradoxais são incontestáveis: de um lado, a força institucional do setor político conservador nas agendas de
costumes, somada à deferência dos ministros da Suprema Corte; do outro, a potente
propagação da narrativa antiproibicionista de combate ao modelo
regulatório falido de proibição das drogas, presente tanto nos votos de
alguns dos ministros quanto na cobertura jornalística que buscou abordar a
matéria sem preconceitos e narrativas morais.
O
avanço foi tímido, mas pode ser visto também como a continuação de uma jornada para novas conquistas, que virão no campo da
defesa de uma política de drogas voltada para a perspectiva da saúde pública
e da fruição de direitos fundamentais.
Fonte:
Por João Gabriel Souza de Carvalho, no Le Monde
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