quinta-feira, 4 de julho de 2024

O contentamento descontente da decisão do STF sobre a maconha

Com o julgamento do Recurso Extraordinário 635.659/SP, que versava sobre a possibilidade de descriminalização do porte de drogas para uso pessoal, o Brasil viveu um momento aguardado por uma grande parcela da sociedade. Trata-se da parcela irresignada com a realidade proibicionista, com o encarceramento injusto de jovens pretos, com um sistema de justiça que não respeita certas liberdades individuais, bem como com o caráter extremamente agressivo e repressor da polícia quando o assunto é o uso de drogas.

Presenciamos também uma reação a esse momento. Setores conservadores e reacionários da sociedade e da política levantaram a bandeira da defesa das políticas proibicionistas, do combate ao tráfico e ao uso de drogas, e supostamente do respeito e proteção às famílias. No campo institucional, o Senado Federal correu para aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), de autoria do presidente Rodrigo Pacheco, em resposta ao julgamento quando sequer havia se encerrado para demonstrar a força política daqueles que preferem o modelo repressivo estatal de combate às drogas, independentemente das suas consequências nefastas. Já na Câmara dos Deputados, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) aprovou com folga o texto da PEC.

Não há dúvidas de que o embate de posições está presente. Dois lados da sociedade pensam de maneira oposta quando o assunto é a descriminalização das drogas, seguindo seus valores políticos, morais, religiosos, ideológicos, suas compreensões sobre o mundo e seus desejos sobre um modelo de sociedade e civilização. O próprio Presidente da República, aliado ao menos em tese às pautas progressistas, apresentou uma declaração contrária ao movimento da Suprema Corte de julgar favoravelmente o recurso. Nas palavras dele, o STF não deveria acirrar a disputa institucional, mas deixar a pauta a cargo do Congresso Nacional.

Inicialmente, a decisão do STF restringiu a descriminalização, anteriormente destinada às drogas no geral, ao porte de maconha para consumo pessoal. No tocante ao critério objetivo a ser estabelecido, ficou fixada a quantia de 40 gramas de Cannabis sativa ou seis plantas-fêmeas até que o Congresso, cuja legislatura é majoritariamente eivada de valores morais e religiosos, dê uma decisão final sobre esse quantitativo.

Todavia, o critério da quantidade é relativo, uma vez que as autoridades policiais estão autorizadas a realizar prisão em flagrante por tráfico de drogas quando identificados outros elementos de prova que fundamentam a traficância, como a forma de acondicionamento da droga, a variedade das substâncias apreendidas e a presença de objetos como balança de precisão e registros de operações comerciais. Corretamente, ficou inadmitida para esses casos a alegação de critérios subjetivos arbitrários, ainda que tal inadmissão seja bastante duvidosa, em virtude da conhecida seletividade penal.

Ademais, tornou-se o porte para consumo pessoal um ilícito administrativo, mas cujas sanções não criminais de advertência e medidas socioeducativas serão aplicadas por um Juizado Especial pasmem Criminal, até que o Conselho Nacional de Justiça delibere acerca do rito mais adequado.

Diante de toda essa realidade política e social, a decisão sobre uma das temáticas mais caras da sociedade foi modesta para alguns e um desastre para outros (tanto para aqueles que esperavam mais de uma decisão que se alongou por tantos anos quanto para os que são contrários à descriminalização).

Pois bem, no exercício da função típica de controle de constitucionalidade de norma jurídica, o STF fez aquilo que pôde, dentro da difícil correlação de forças da atual democracia brasileira, mas não o que deveria ser feito quando analisamos o respeito às garantias individuais, à autodeterminação, ao pluralismo e a uma possível (e essencial) mudança na estrutura racista e hiperencarceradora da política criminal de drogas.

Alguns pontos quase paradoxais são incontestáveis: de um lado, a força institucional do setor político conservador nas agendas de costumes, somada à deferência dos ministros da Suprema Corte; do outro, a potente propagação da narrativa antiproibicionista de combate ao modelo regulatório falido de proibição das drogas, presente tanto nos votos de alguns dos ministros quanto na cobertura jornalística que buscou abordar a matéria sem preconceitos e narrativas morais.

O avanço foi tímido, mas pode ser visto também como a continuação de uma jornada para novas conquistas, que virão no campo da defesa de uma política de drogas voltada para a perspectiva da saúde pública e da fruição de direitos fundamentais.

 

Fonte: Por João Gabriel Souza de Carvalho, no Le Monde

 

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