quinta-feira, 4 de julho de 2024

Enchente deixa marcas na saúde mental de moradores do RS

O tarólogo Ricardo Mello, 41 anos, teve a casa invadida pela enchente que atingiu o Rio Grande do Sul no mês de maio. Ele mora em São Jerônimo, a 70 km de Porto Alegre, e mantinha orgulhosamente uma coleção de 200 livros. Perder a maior parte deles na água suja doeu mais do que ficar sem os móveis. Ao pedir doações de livros em uma rede social, Ricardo escreveu: “Enfrento uma depressão severa e a leitura me faz me sentir melhor”.

O desastre climático que vitimou milhares de famílias no Estado teve impactos para além da falta de moradia. É uma tragédia que, por si só, tem efeitos negativos na saúde mental. As diferentes perdas – de pessoas queridas, de segurança, da convivência com pessoas e espaços – podem desencadear processos de luto, assim como a perda de objetos pessoais.

“Algumas perdas materiais podem impactar na autoidentificação das pessoas”, destaca a psicóloga Miriam Alves, presidente do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRPRS). “A realidade, tal qual era conhecida, passa por uma disrupção, sendo preciso retomar as referências sobre si mesmo e sobre seu entorno”.

O luto é único e particular, portanto não é possível comparar o processo de uma pessoa com o de outra. “Em desastres, são comuns narrativas que deslegitimam as perdas materiais, ao compará-las às perdas de vidas humanas. Essas narrativas podem causar ainda mais sofrimento, porque desqualificam o processo de luto em curso, que é parte da elaboração psíquica sobre essa perda”, afirma Miriam.

Ricardo já sofria de depressão grave desde os quinze anos, além de conviver com o transtorno obsessivo compulsivo e transtorno bipolar, e viu os sintomas se aprofundarem após a catástrofe. “Não consigo trabalhar fora devido aos meus problemas. Por isso, cada livro que compro é uma vitória, é uma conquista. Parece que a enchente resolveu destruir os melhores e mais caros livros. Não sinto vontade de fazer mais nada”, desabafa. Ele passou a ingerir doses mais fortes dos medicamentos que já usava antes.

Moradora do bairro Mathias Velho, um dos mais afetados de Canoas, Francine Trindade também sentiu uma piora na ansiedade. A família da jovem de 25 anos perdeu a casa, palco das memórias da infância até a vida adulta. “Nossa casa não era só nossa, sempre acolheu todo mundo. Foi esse lugar de convívio que se perdeu”, lamenta.

“A casa é simbolicamente a extensão das pessoas. É templo da história, um lugar onde a gente se deposita de uma forma mais integral”, afirma a psicóloga Joana Narvaez, professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde (UFCSPA) . “O deslocamento do espaço e das rotinas – de tudo que confere uma identidade – gerou, em paralelo a essa inundação concreta, uma inundação psíquica”, compara.

Francine está morando na casa do namorado, em Porto Alegre. Apesar da saudade do imóvel em Canoas, a vontade é de não retornar. A família quer recomeçar do zero em outra região. “Uma semana antes da enchente, eu tinha comprado uma cama nova. Acabamos perdendo não só isso, como fotos de formatura, de familiares que já se foram. São coisas que não tem como ter novamente. Acredito que não vamos ser mais os mesmos”, diz.

 A impressão de Francine, de uma mudança permanente na vida dela e da família, não é à toa. Afinal de contas, o lugar onde ela cresceu não existe mais como era. Todo o bairro Mathias Velho foi profundamente atingido e muitos moradores pensam em deixá-lo para trás.

A professora Joana ressalta a importância de não patologizar o luto. O processo é natural e necessário de ser vivenciado. “Num processo de luto, é como se, em algum grau, a pessoa perdesse pedaços dela mesma por um momento. A casa, por exemplo, tem vários outros simbolismos”, afirma a especialista, referindo-se ao senso de identidade que a moradia ajuda a construir.  “É natural que as pessoas sintam isso. É natural estar triste, sentir raiva, sentir culpa. Mas é preciso ter cuidado quando isso começa a se estabelecer de uma forma crônica, gerando muito sofrimento e disfuncionalidade”.

•           O impacto em números

Francine relata outra sensação frequente: a de que nada disso realmente aconteceu. “Minha ficha não caiu ainda. Acho que eu senti mais no dia em que minha mãe foi limpar a nossa casa, quando ela me ligou e disse: ‘no teu quarto, a gente não conseguiu salvar nada’. Acho que ali caiu um pouco a ficha. Automaticamente, as lágrimas começaram a escorrer pelo rosto”, diz a jovem.

Ela não é a única, como mostram os resultados preliminares de uma pesquisa conduzida pelo Hospital de Clínicas de Porto Alegre e pela Fundação Universitária Mário Martins. O formulário virtual já conta com a participação de mais de 4 mil pessoas, das quais 33% relatam a chamada desrealização. “É a sensação de dizer ‘para, isso não está acontecendo’, que a gente costuma ter quando se lida com emoções muito fortes”, explica a psiquiatra Alice Cacilhas, uma das coordenadoras do estudo.

Conforme a médica, a desrealização acontece quando a mente não consegue elaborar a dimensão de um impacto ou de um evento. “O índice de 33% é muito alto, porque cotidianamente só temos essa sensação quando acontece algo extremo. O número indica que a enchente teve um impacto difícil da mente digerir”, afirma Alice.

O fenômeno acende um sinal de alerta, já que pode ser um fator de risco para doenças mentais. “Não podemos dizer que essas pessoas estão doentes. Elas estão com sintomas de uma resposta aguda a um evento. Com mais tempo, vamos começar a ver quem é que perpetua isso e quem consegue ir amenizando”, destaca a psiquiatra.

As pessoas que já responderam o questionário da pesquisa relatam sintomas que os médicos associam com depressão, ansiedade e síndrome de burnout. Esses problemas são mais intensos na população com menor poder aquisitivo: a ansiedade parece afetar 100% das pessoas com renda familiar abaixo de R$ 1,5 mil e, a depressão, 71% desse grupo.

Atuando em abrigos para pessoas que ficaram desalojadas com a enchente, a psicóloga Joana escutou diversos relatos das vítimas – a maioria ligados à imprevisibilidade da tragédia. “Por mais que seja ilusória, nós humanos temos uma sensação de controle sobre as nossas rotinas. Diante de um evento dessa magnitude, a imprevisibilidade afeta o senso de perspectiva das pessoas. Todo esse contexto acaba denunciando as vulnerabilidades e desigualdades que já existiam”, pontua.

Os sintomas observados na população afetada ainda são recentes, e a perpetuação deles depende de uma série de fatores. Além de aspectos individuais, a realidade social e política em que a pessoa está inserida podem ajudar ou dificultar a melhora, conforme a psicóloga Miriam. “Havendo tanto rede socioafetiva quanto rede de serviços intersetoriais que promovam atenção psicossocial e garantia de direitos, a tendência, para cerca de três quartos da população, é de restabelecimento da saúde”, afirma. “A maior preocupação é com populações já vulnerabilizadas antes da enchente, por questões como raça, gênero, classe, idade, dentre outras”.

A pesquisa conduzida pelas organizações de saúde ainda está em execução. Os médicos envolvidos se organizaram para começar o estudo no momento do que chamam de “stress agudo”, quando as pessoas ainda viviam as primeiras consequências da catástrofe. “Sabemos que uma situação intensa como essa é fator de risco para doenças mentais na sequência – estresse pós-traumático, depressão, ansiedade”, diz Alice. “A ideia é acompanhar a população por um ano, aplicando questionários de tempos em tempos”.

Os resultados preliminares do estudo também mostram que, até agora, a ansiedade vem afetando 87% das pessoas com renda familiar acima de R$ 10 mil. A porcentagem dos mais abastados que relatam sintomas de depressão é menor, chegando a 36%.

“Ninguém está isento de sintomas de uma doença mental. Talvez a pessoa com menos recursos econômicos não passe somente pelo impacto da perda, mas também a preocupação em como reconstruir, como comprar as coisas de novo”, destaca a psiquiatra Alice. “Em geral, menor grau de instrução e menos recursos econômicos dão menor acesso ao atendimento [em saúde mental]. E, muitas vezes, menor entendimento da necessidade de buscar ajuda”.

Por isso, tão importante quanto coletar dados o quanto antes, a abordagem de especialistas para ajudar a população também precisa ser precoce. É o que explica a professora Joana: “isso tem efeitos protetivos para que os quadros psicopatológicos – como o luto patológico e o stress pós traumático – fiquem mais estáveis”.

•           O trauma da enchente e o medo de novas tragédias

Desde maio, poucos escapam de confundir os termos “enchente” e “pandemia” na hora de se referir a um dos dois eventos. A suspensão da rotina e a mudança no mundo como se conhecia são fatores em comum em ambas as tragédias. Essa confusão entre os eventos extremos, segundo a psiquiatra Alice, indica um trauma coletivo. A médica explica que o fenômeno se manifesta em dois níveis: a comunidade como um todo presenciou uma situação traumática e, ao mesmo tempo, cada pessoa experienciou a enchente de forma distinta. A configuração de um trauma pessoal depende da forma que cada um tem de lidar com o que aconteceu.

Mas, se no surto de Covid-19 a casa representava uma espécie de porto seguro contra o vírus, após a enchente esse local de segurança não existe mais – pelo menos para quem perdeu tudo com a subida da água. “Na pandemia, eu não perdi nenhum ente próximo. Agora, minha família foi atingida e não teve ninguém que perdeu só um pouco. Foi perda total”, relata Francine. “Não tenho palavras para dizer como vai ser daqui para frente”.

No dia em que a jovem conversou com o Sul21, a previsão do tempo indicava mais chuva para Canoas e região. “A Prefeitura já passou com os caminhões no bairro pedindo para evacuar. É um pavor. Meu irmão ficou desesperado. Não sei expressar esse sentimento, a gente se sente perdido. Nossa casa não é segura”, acrescenta.

O trauma, na Psicologia, é caracterizado pela desorganização da mente após a pessoa vivenciar algo excessivo, que não consegue assimilar ou representar. “Tem menos relação com o evento em si, e mais com a forma como ele é processado pelo aparelho psíquico. Portanto, varia muito em diferentes pessoas, de acordo com seus recursos internos e externos”, detalha a psicóloga Miriam.

Já um trauma coletivo ocorre quando um evento impacta, ao mesmo tempo, um grande número de pessoas.

Ricardo, o morador de São Jerônimo, tem um relato parecido com o de Francine. “O risco de uma nova enchente é muito difícil para mim”, afirma ao compartilhar uma forte preocupação: “preciso sair dessa casa antes que ocorra mais uma cheia. Preciso alugar uma casa em lugar seguro, mas não estou conseguindo, porque houve uma demanda muito grande”.

A professora Joana destaca que é natural, num primeiro momento, que as pessoas se vejam “como um recipiente que recebeu água demais”. “A vazão para isso é mais lenta, vai precisar de tempo para processar a intensidade emocional do evento. É natural que, por um período, as pessoas estejam com menos espaço interno para apreender novas informações e com menos capacidade de atenção”, explica.

Segundo a psicóloga Miriam, para quem viveu múltiplas perdas em eventos envolvendo tempestades, os sinais de uma nova chuva tendem a funcionar como gatilhos para as chamadas memórias ansiogênicas – aquelas que despertam sintomas de ansiedade. A boa notícia é que manifestações como essa tendem a abrandar com o passar do tempo.

Já que tragédias como a do Rio Grande do Sul tendem a acontecer com mais frequência, a professora Joana considera essencial reduzir os estigmas sobre saúde mental para que os próximos eventos desse tipo sejam menos traumáticos.

“Por falta de literacia em saúde, temos um estigma muito grande em relação à depressão, como se a pessoa estivesse disfuncional porque quer, como se a produtividade estivesse acima do bem estar”, destaca Joana. “É muito importante falar sobre saúde mental, dar acesso e assistência. Nos abrigos, muita gente disse que nunca tinha tido uma conversa sobre questões emocionais”.

•           Quando a empatia faz adoecer

Não à toa, cuidar dos trabalhadores que estão atuando para ajudar vítimas da enchente é um dos três eixos do plano elaborado pelo Ministério da Saúde para atendimento de saúde mental no Rio Grande do Sul. Diante da tragédia vivenciada pelos gaúchos, uma consequência se manifesta em quem não foi atingido diretamente: a chamada fadiga por compaixão. Trata-se da condição em que a pessoa fica exausta, física e emocionalmente, após um envolvimento empático com o sofrimento dos outros.

Os sintomas da fadiga por compaixão podem ser físicos – alterações no sono, sudorese, estado de alerta –  ou emocionais: medo, ansiedade, pensamentos catastróficos e irritabilidade são comuns.

“Um fator que torna o evento impactante é o fato de estar acontecendo onde a gente vive”, explica Alice. “Todo mundo conhece alguém que perdeu coisas, que teve que ser resgatado. A gente conhece as cidades, consegue ter uma ideia da dimensão [da tragédia]”.

E um grande número de pessoas decidiu agir diante disso, tornando-se voluntárias em abrigos ou ajudando em resgates.

A fadiga por compaixão é bastante observada em trabalhadores da saúde. No caso desses profissionais, os sintomas podem ter efeito cumulativo a longo prazo. “Eles são continuamente expostos a situações de dor e sofrimento que decorrem do cuidado ao outro”, explica Miriam.

Durante a enchente, cidadãos de todas as áreas profissionais viraram cuidadores e resgatistas. Segundo a psicóloga, a tendência é que situações pontuais, como trabalho voluntário diante de eventos extremos, ocasionem fadiga por compaixão a curto prazo.

“A tragédia gera um mito do herói – o herói não sucumbe, não falha. Mas nós somos humanos: inundamos com a dor do outro”, afirma Joana.

Ela mesma sentiu, principalmente quando presenciou resgates no auge da enchente, que era difícil vivenciar tudo aquilo. “É importante que, nessa hora, a pessoa possa conseguir se restabelecer com outras coisas. Há um sentimento de culpa ao voltar para a própria realidade, mas é preciso estar atento a si mesmo”, enfatiza.

 

Fonte: Sul 21

 

Nenhum comentário: