DNA
comprova origem amazônica do cacau e revela forte rede de comércio
pré-colombiana
Quem
encontra um cacaueiro vicejando numa agrofloresta amazônica não imagina quanta
história carrega o fruto. Por muito tempo se creditou a origem do cacau ao
endereço errado. Evidências arqueológicas apontavam o sul do México e a América
Central, a chamada Mesoamérica, como local onde se iniciou a domesticação do
fruto há cerca de 4 mil anos. Acreditava-se que, apenas depois, o cacau teria
sido levado à América do Sul.
“Ao
percorrermos a selva do Alto Amazonas [no Equador], sempre encontrávamos
cacaueiros, que lembravam os povos que viveram nesta região há milhares de
anos, mas, na época, não sabíamos que o cacau era uma planta nativa da região”,
conta Francisco Valdez, arqueólogo do Instituto de Pesquisas para o
Desenvolvimento (IRD) na França.
Foi
no início dos anos 2000, junto com uma equipe de arqueólogos e antropólogos
franceses e equatorianos, que Valdez começou a estudar evidências que pudessem
trazer novos conhecimentos sobre os povos antigos que prosperaram no Alto
Amazonas, parte andina da Bacia Amazônica localizada no Equador, Peru, Colômbia
e Venezuela.
Entre
diversas descobertas, os pesquisadores se surpreenderam ao encontrar o DNA do
cacau em cerâmicas milenares de uso doméstico e para tradições funerárias. Isso
levou a uma reavaliação da origem do fruto: com raízes sul-americanas, as
evidências apontam que há cerca de 5.500 anos o cacau já circulava por 19
culturas pré-colombianas.
“A
característica mais importante de nossa pesquisa é o fato de colocar as
culturas do Alto Amazonas em seu devido lugar, como um povo inovador e
fundamental no surgimento dos fenômenos civilizatórios”, diz Valdez. “Agora a
sua importância é duplamente reconhecida. Os amazônicos foram capazes de
grandes conquistas civilizacionais e a interação regional foi um fator
importante”.
• Cacau para além da vida
O
trabalho dos pesquisadores revelou 400 sítios arqueológicos na região e
evidenciou a interação que existia entre os habitantes da Amazônia, das terras
altas dos Andes e das planícies e margens da costa do Pacífico.
Ao
descobrir as partículas de cacau nas cerâmicas de civilizações de mais de 5 mil
anos, a pesquisa revelou que o cacau já era um alimento básico entre os povos
daquele tempo. “Estas evidências apareceram no interior de vasos funerários que
acompanharam vários indivíduos para a vida após a morte. As mesmas evidências
foram também encontradas nas escavações domésticas”, conta Valdez.
Na
época, o cacau era degustado em forma de polpa, como bebida, e em receitas
elaboradas com o pó da semente torrada, além de ser usado como antisséptico
para fins medicinais.
A
descoberta foi publicada num artigo em 2018, mostrando que na Alta Amazônia o
cacau já existia 1.500 anos antes do que na Mesoamérica.
A
partir desta descoberta, os estudos sobre o cacau se intensificaram na região.
A análise de DNA de mais de 350 peças arqueológicas de museus e de novas
escavações, abrangendo um período de quase 6 mil anos, revelou que cerca de 30%
delas guardam rastros do fruto.
“A
genética é provavelmente a ferramenta mais valiosa que está revolucionando a
ciência nos últimos 30 ou 40 anos, e a sequenciação do DNA tem mudado todas as
ideias pré-concebidas sobre as espécies humanas e outras espécies biológicas”,
aponta Valdez, um dos autores do artigo publicado em março de 2024.
O
novo artigo relata que as partículas de cacau encontradas em cerâmicas de 19
culturas pré-colombianas revelam a mistura genética entre espécies de cacau
distantes geograficamente entre si, apontando para as trocas e interações que
devem ter ocorrido entre povos da Amazônia e costa do Pacífico e para a
adaptação da planta em ambientes diversos.
“Esses
dados mostram para nós que o cacau é uma planta sul-americana que foi levada há
muito tempo, milhares de anos atrás, em redes de troca desde o centro de sua
origem, que está ali na fronteira atual entre o Peru e Equador, no oeste da
Amazônia, no sopé dos Andes, e foi levado dali para outras regiões da América
do Sul e também para outras regiões das Américas”, avalia Eduardo Góes Neves,
arqueólogo e diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São
Paulo (MAE-USP).
“Isso
é muito interessante por duas razões: além de reforçar a ideia de que a
Amazônia é um
centro
de produção de agrobiodiversidade, também mostra que havia redes de troca de
comércio muito antigas conectando a América Central, a América do Norte e a
América do Sul”, observa Neves.
Os
pesquisadores sugerem que a história complexa da domesticação do cacau é a base
das populações atuais de cacaueiros e este conhecimento pode contribuir para o
gerenciamento dos recursos genéticos da planta em tempos de mudanças
climáticas.
• Entre rios e montanhas
Os
primeiros registros históricos do cultivo do cacau na Amazônia brasileira estão
ligados à colonização portuguesa e datam da segunda metade do século 17.
Fernando
Mendes, engenheiro agrônomo que trabalha com cacau há 44 anos, conta que o
fruto teria sido combustível de discórdias entre o Marquês de Pombal e os
jesuítas, que na época viam na sua comercialização uma fonte substancial de
renda.
Sempre
se soube, no entanto, que a domesticação do cacau em terras ameríndias é muito
mais antiga do que a invasão dos europeus. “Em sua segunda viagem à América em
1502, Cristóvão Colombo estava em Honduras quando encontrou uma canoa indígena
e lá dentro tinha frutos de cacau. Ele ficou muito impressionado com aquele
fruto que não conhecia”, conta Mendes, autor de diversos livros sobre o cacau e
coordenador regional de pesquisa e inovação da Comissão Executiva do Plano da
Lavoura Cacaueira (Ceplac).
Segundo
o pesquisador, é difícil precisar quando o cacau entrou em terras brasileiras e
igualmente complexo avaliar o início de sua domesticação, que deve ser mais
antiga do que os 5 mil anos comprovados pelas partículas detectadas nas peças
de cerâmica. “Ele vem sendo trazido de mão em mão pelos rios ou pelas montanhas
a partir das sementes, que eram trocadas e que os índios foram plantando.
Então, a partir desse momento, começa a domesticação”, diz Mendes. “Essa data a
gente não tem”.
Mendes
aponta que a milenar domesticação do cacau por terras amazônicas tornou a
espécie mais resistente às mudanças climáticas porque a planta se adaptou ao
cultivo em sub-bosque, protegida da luz direta do sol.
Por
ser uma planta perene e dispensar o uso do fogo, em sistemas agroflorestais o
cacau contribui, inclusive, com a mitigação das mudanças climáticas e ajuda na
regeneração da floresta.
“Desde
1996, a Ceplac, na Amazônia, tem como diretriz só oferecer assistência para os
produtores que fazem um plantio em áreas antropizadas, nunca utilizando áreas
de mata virgem”, diz Mendes. “A nossa contabilidade informa que, de 1996 a
2023, o programa de cacau no estado do Pará já recuperou cerca de 160 mil
hectares de áreas.”
Fonte:
Mongabay
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