quarta-feira, 3 de julho de 2024

Estado refém do financismo: Como superar o “bonde do mal”?

Muitos observadores, ao analisar os traços estruturais da nossa economia, já chamaram a atenção para aquilo que qualificaram como o arranjo fazendão, um modelo econômico que acompanha nossa história desde que o pau-brasil, produto que primeiro alimentou a empresa colonial, passou por cima das tradicionais homenagens religiosas e batizou as nossas terras.

Pindorama foi massacrada e herdamos o nome derivado da primeira exploração extrativista: Brasil. Nome de um empreendimento exitoso, pois atingiu os seus objetivos ao implantar e exercer a exploração que verificamos ao longo da nossa história. Como define o historiador Luiz Antonio Simas, “um projeto colonial, fundado na ideia de exploração da terra, na exploração dos corpos, no genocídio do indígena, na escravização do negro”.

Submetida ao colonialismo, nossa história foi marcada pelo assassinato em massa dos povos originários e pelos quase quatro séculos de vergonhosa e cruel utilização do trabalho escravo. Desde o início da captura do território pela empresa colonial portuguesa nossa trajetória esteve submetida a um arranjo econômico predatório, extrativista, parasitário, exportador e concentrador de renda. Uma maquinação perversa, que sempre se impôs pela extrema violência e pela promoção da intolerância, da ignorância, da mentira e do preconceito. Traços que herdamos e que nos constitui como um dos países mais desiguais do mundo. Uma mancha que conforma parte expressiva da nossa cultura e da nossa formação social.

É fato que a configuração das estruturas fundiárias e urbanas, as relações sociais, o arcabouço institucional e as interações com o ambiente são marcas de uma sociedade extremamente desigual. Uma sociedade sob o domínio de uma elite econômica sem projeto para além da exaustão dos recursos disponíveis, incluindo aí as pessoas reduzidas à categoria de peças de uma grande engrenagem que moe vidas, paisagens, sonhos e afetos.

A brutalidade está profundamente enraizada na nossa formação social. Somos forte e constantemente atravessados por injustiças históricas de longa permanência. Vivemos em um país onde envelhecer é um privilégio fortemente ancorado na posição de classe. Somos testemunhas e vítimas de uma guerra não declarada contra negros, pobres e indígenas. O machismo, o feminicídio, a intolerância, a hipocrisia e a violência são linhas de força presentes nas relações cotidianas. A exclusão da maioria de nossa população dos marcos da cidadania e do acesso a condições que permitam a fruição de uma vida saudável é incontestável. Nesse país, como dizia Darcy Ribeiro, a ignorância não é resultado do acaso, mas de um projeto. Uma condição que facilita a disseminação de mentiras para melhor exercer o domínio sobre a população.

A catástrofe que atingiu o Rio Grande do Sul, os rompimentos criminosos de barragens em Mariana e Brumadinho, as queimadas no pantanal e na Amazônia e o fato de, segundo levantamento do governo federal, pelo menos 1.942 municípios do Brasil estarem localizados em áreas de risco recorrente, revelam a existência hegemônica de uma conjugação política e econômica bastante destrutiva e distante dos interesses nacionais e do bem-estar do povo brasileiro.

Um esquema de exploração que se sofisticou e passou a atuar em outra forma de extrativismo predatório: o rentismo praticado pelo setor financeiro. Um dreno dos recursos públicos que poderiam ser aplicados em áreas de grande relevância social como saúde e educação ou em atividades produtivas como industrialização ou investimentos em infraestrutura.

Em torno da retórica utilizada para justificar a redução do déficit público, foi montada toda uma estratégia para solapar as possibilidades de construção de um Estado que sirva para algo além de balcão de negócios para segmentos econômicos privilegiados. Uma estrutura capaz de estimular a dinâmica econômica e, ao mesmo tempo, frear a voracidade suicida e totalitária do mercado. Além dos argumentos de caráter ético e humanitário, é preciso considerar que nas economias mais ricas do mundo é comum o uso do endividamento do Estado para aquecer o mercado interno e financiar o desenvolvimento. Um investimento que volta aos cofres públicos pela via do crescimento da receita decorrente dos aportes na estrutura produtiva realizados com os recursos do endividamento.

Caímos em uma armadilha que congrega a imposição arbitrária e desnecessária de um teto de gasto com uma das maiores taxas de juros do mundo. A isso se soma uma estrutura tributária regressiva que onera a produção e o consumo, deixando de fora grandes fortunas, dividendos e segmentos como o agronegócio. Complementa o quadro a ação deletéria do Congresso Nacional, com suas pautas bombas e excrecências nada republicanas como orçamento secreto e um volume estratosférico de recursos para emendas impositivas a serviço de interesses de uma oligarquia que parasita os cofres públicos.

Entretanto, nossas mazelas não param por aí. Avanços tímidos são seguidos de retrocessos pesados. Isto porque, além de venais, nossas elites econômicas e parte da nossa classe média são notoriamente golpistas. Defensores de um conservadorismo cruel, corrupto e hipócrita que molda a nossa história e o caráter daqueles que tramam contra a democracia. Gente que idolatra o bandeirante Borba Gato e detesta as Marielles que insistem em brotar combativas e alegres do chão da miséria. Uma canalhice apoiada no pretenso combate à corrupção, na utilização da religião, na defesa da família e em um patriotismo vazio e patético. Um conluio que reúne a Faria Lima, corporações internacionais, a grande mídia, oportunistas, charlatães, inocentes úteis e pessoas com distúrbios afetivos.

Não obstante a vitória das forças democráticas sobre a barbárie bolsonarista e a fracassada tentativa de golpe do 8 de janeiro, os ovos da serpente vêm sendo chocados e as portas do inferno, entreabertas pelo neoliberalismo e pela extrema direita, ainda não se fecharam. Pelo contrário, podem ser repentinamente escancaradas como quase ocorreu recentemente com a Bolívia, legitima e legalmente presidida por Luís Arce.

Diante desse quadro, analistas como Bruno Paes Manso apontam para uma associação espúria e altamente perigosa que ameaça seriamente a nossa pouco enraizada e frágil democracia. Paes Manso se refere ao conluio envolvendo armas, dinheiro, religião e política para controlar territórios e coagir tentativas de organização de movimentos sociais e a circulação do ideário de esquerda, considerado o inimigo a ser combatido.

De fato, a intensificação da exploração e a necessidade de combater a insatisfação e a revolta daí derivada, acabaram por gerar arranjos criminosos. Uma contaminação corrupta envolvendo militares, milicianos, traficantes e exploradores da fé. Uma associação que alcançou representação política de vulto e domínio de parcelas relevantes dos poderes constituídos. Uma autoridade que se exerce sobre os territórios de parte significativa das cidades brasileiras e de áreas de exploração ilegal do garimpo e de extração clandestina de madeiras para citarmos as mais evidentes aos olhos da opinião pública. Um negócio bilionário que veta o exercício legítimo da cidadania e da democracia nas periferias e favelas das cidades brasileiras.

Concomitantemente, as ideias de meritocracia e empreendedorismo são instrumentalizadas para desviar o olhar das formas de exploração. Uma manobra que busca, em última análise, individualizar e responsabilizar os oprimidos pela situação de opressão que conforma as suas vidas. Concepções utilizadas para esconder as barreiras estruturais que mantêm as classes populares distantes dos benefícios gerados pela riqueza socialmente produzida.

Temerosa, parte da sociedade aderiu ao ideário rasteiro da repressão que se pratica há séculos e hoje se vê ameaçada e impotente. Desorientada passou, mais uma vez, a agir contra si e contra a democracia, reivindicando a volta da ditadura militar ou apoiando as ações das milícias. Um verdadeiro tiro no pé.

Ao contrário de enxugar gelo é preciso pensar e agir seriamente para melhorar as condições objetivas de vida da população. É sabido que a adoção de medidas como acesso a moradia, renda mínima, saúde e educação podem fazer a diferença e produzir impactos positivos com maior rapidez e efetividade do que discursos coléricos e eleitoreiros que batem na mesma tecla para satisfazer impulsos nada civilizados: pena de morte, redução da idade penal ou criminalização do consumo de drogas. Bandeiras que deixam entrever a crueldade estupida de uma sociedade doente vítima da ignorância. Medidas muitas vezes apresentadas como soluções inovadoras e eficazes que, no entanto, já são aplicadas sem o consentimento da lei, se mostrando inócuas para alcançar o objetivo alardeado. O resultado é a banalização da morte e da violência. O terror que dispara 80 tiros contra um carro que levava uma família para passear ou que, nos bairros populares, mata crianças em suas casas ou a caminho da escola.

Evidentemente é preciso garantir a segurança de todos, mas não é isso que está sendo feito. Na verdade, estamos alimentando um monstro que cotidianamente nos constrange e nos devora aos poucos. Uma besta que deixada em liberdade irá instalar definitivamente o império do crime organizado.

A conquista do país desejado não pode ficar refém do medo. A continuar nessa trajetória seremos todos prisioneiros e vítimas da arbitrariedade. Palmares ficou de pé por um século ou mais diante de um império que dava as cartas no mundo. Vale lembrar que após 21 anos de ditadura, o Brasil conquistou o direito constitucional à saúde, criando uma das maiores políticas de inclusão que se tem notícia: o maior sistema público de saúde do mundo. Diante de um governo genocida a pandemia de covid-19 mostrou a força da solidariedade de um povo que não se abandona. A eleição de Lula provou que, apesar de toda a grana e recursos colocados a serviço do embuste, a mobilização popular é capaz de derrotar inimigos poderosos e deter o avanço da barbárie.

Sabemos que a luta muda a vida. É preciso sustentar o céu como fazem os Yanomamis. É possível deter o bonde do mal. É possível conquistar uma cidadania e uma democracia de fato. É possível redistribuir renda e fortalecer o mercado interno. É possível e desejável implementar uma economia sustentável, solidária e soberana. Uma economia subordinada ao bem-estar da população e compromissada com o futuro. Uma economia que escape da armadilha da austeridade e da concentração e assim, quem sabe, nos permita resgatar Pindorama e refundá-la em outras bases, como sugerem alguns.

 

¨      Mudanças no aparato institucional. Por Flávio Tavares de Lyra

A perda de dinamismo da economia brasileira e o processo de desindustrialização a ela associado, datam do início dos anos 90 do século XX, no governo de Fernando Collor. Foi nessa época, após a “década perdida” (1980-90), que se instalou definitivamente o pensamento neoliberal, com sua concepção de que caberia entregar às forças do mercado as decisões determinantes da futura expansão econômica do país. Desde então, coube limitar de forma crescente o papel do Estado como condutor do processo de desenvolvimento e regulador das forças do mercado.

Não obstante, o fato de a Constituição de 1988, ter sido elaborada numa concepção que atribuía ao Estado e as suas instituições o papel condutor do processo de desenvolvimento econômico, sucessivamente foram introduzidas mudanças nas instituições econômicas para adequá-las à visão de mundo neoliberal, na qual o Estado tinha um papel meramente coadjuvante das forças do mercado. Ou seja, os rumos do processo de desenvolvimento passaram a ser dados pelas decisões do setor privado.

Dentro da concepção neoliberal é que o país realizou a privatização dos complexos petroquímico, siderúrgico, não-ferrosos e, mais recentemente, da Eletrobrás. A abertura do comércio exterior e do mercado de capitais foram os causadores diretos da crise cambial de 1999, que jogou o país nos braços do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial, da Organização Mundial da Propriedade Intelectual e da OMC, agentes internacionais do “Consenso de Washington”.

O relativo bom desempenho econômico que o país alcançou nos governos de Lula (2003-6 e 2007-10) e no primeiro governo de Dilma Rousseff (2011-2014), sob as instituições neoliberais, produziram a grande ilusão de que era possível retomar o dinamismo econômico da era desenvolvimentista dentro da concepção de política econômica neoliberal.

Na realidade, foi o “boom” das exportações internacionais, graças à demanda gerada pela expansão da China, fenômeno especial e transitório que determinou em boa medida a conjuntura favorável que tomou forma. Uma vez atenuado dito impacto positivo, ficou evidentemente que era inviável gerar dinamismo econômico e realizar avanços no social, sob a institucionalidade neoliberal e o predomínio das forças do mercado.

O bem-sucedido combate à hiperinflação sob a ação do Plano Real (1994) deixou como herança as mudanças institucionais que tornaram a busca da austeridade fiscal e a política monetária restritiva do Banco Central dominantes no cenário econômico, fragilizando, a partir daí, a ação do Estado como instrumento condutor da política de investimento do país.

O fracasso do segundo governo de Dilma Rousseff para retomar o processo de desenvolvimento com o aparato institucional neoliberal, abriu espaço para mais um avanço das instituições neoliberais na condução da vida econômica do país, com as políticas concebidas sob o guarda-chuva de “A ponte para o futuro” do governo de Michel Temer (2016-17) e o desastrado governo de Jair Bolsonaro (2018-21), que mergulharam o país na estagnação econômica e numa crise social sem precedentes.

A volta de Lula à presidência em 2022, fez ressurgirem as esperanças de uma retomada do processo de desenvolvimento dentro de uma concepção orientada para transformações estruturais na economia que conduzam à aceleração do crescimento com a reindustrialização, à transição para uma economia que avance na melhoria da distribuição da renda e que proteja o meio ambiente, aproveitando amplo e diversificado potencial existente para melhorar a competitividade internacional da produção.

Em seus dois anos iniciais de governança, a nova administração tem buscado romper os grilhões institucionais que a impedem de governar com vistas às mudanças de longo-prazo que a reindustrialização requer.

Nesse sentido o governo lançou a “Nova Indústria do Brasil”, uma proposta de política industrial ambiciosa voltada para reindustrialização do país numa concepção que a enfatiza a promoção da inovação tecnológica, o adensamento das cadeias produtivas, o aproveitamento do potencial energético para geração de energias “limpas” e a sustentabilidade ambiental. Tudo isto, visando dinamizar a atividade econômica e a capacidade competitiva do país no cenário internacional.

As instituições vigentes, porém, não foram concebidas para promover mudanças estruturais na economia e se movem dentro de uma visão neoliberal que descarta o papel fundamental do Estado na condução do processo de desenvolvimento.

A questão central do financiamento do processo econômico não poderá ser resolvida sem uma reforma do sistema fiscal de modo a dotar o Estado de recursos para financiar os gastos sociais e de investimento.

O arcabouço fiscal recém-aprovado não resolve o problema pois se trata apenas de mais um instrumento de contenção do gasto fiscal de corte neoliberal, do que de uma ferramenta de um estado promotor do desenvolvimento.

O instrumento da dívida pública, na arquitetura atual, não pode ser utilizado para fortalecer a capacidade de financiamento do Estado. Muito embora o índice de endividamento público, seja muito inferior ao observado nas economias desenvolvidas.

O Banco Central, transformou-se quase que exclusivamente num instrumento de combate à inflação e de favorecimento da acumulação de capital fictício em detrimento da acumulação produtiva. Há fortes indícios de que as agências reguladoras atuantes na infraestrutura e o Banco Central estão capturados pelo setor privado e não respondem adequadamente aos propósitos do novo governo.

O Estado não dispõe de mecanismos de planejamento adequados para orientar as decisões de investimento de longo-prazo. O Ministério do Planejamento transformou-se numa agência de elaboração e controle do orçamento anual e uma ferramenta exclusiva das políticas de austeridade.

O Estado acha-se praticamente proibido de investir em atividades básicas para o desenvolvimento do país. As parcerias público-privadas, consideradas uma saída para expandir o investimento produtivo, não passam de um disfarce para que recursos públicos sejam direcionados para fortalecer a expansão e a lucratividade de capitais privados.

Ficaram evidentes recentemente as dificuldades enfrentadas pelo governo para orientar a principal empresa estatal do país, a Petrobras, para aplicar maior percentual de seus lucros em investimento produtivo. O mercado de capitais dá preferência à distribuição de dividendos aos acionistas, numa visão de curto-prazo e desligada do papel da empresa no desenvolvimento energético do país.

Em resumo, o aparato institucional atual foi concebido e é funcional à valorização do capital financeiro. Sem alterações profundas em sua constituição, dificilmente o país terá condições de avançar na direção de um sistema produtivo mais dinâmico, mais respeitador do meio ambiente e mais comprometido com o desenvolvimento social.

 

Fonte: Por Carlos Fidelis Ponte, em Outras Palavras/A Terra é Redonda

 

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