quarta-feira, 3 de julho de 2024

Apoio do Brasil à causa palestina reflete liderança do país como voz do Sul Global, dizem analistas

Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam a decisão de Lula de aumentar os repasses à UNRWA e destacam que posições brasileiras contrárias aos interesses de Israel não são novidade na diplomacia brasileira nem uma prerrogativa do governo atual.

O Brasil deseja quadruplicar os repasses feitos à Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA, na sigla em inglês), subindo o valor da contribuição de US$ 75 mil (R$ 413 mil) em 2023 para US$ 400 mil (R$ 2,2 milhões) este ano.

A medida foi anunciada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em fevereiro deste ano, em duas ocasiões: em discurso na Liga dos Estados Árabes, no Cairo (Egito) e durante uma visita à Embaixada da Palestina, em Brasília.

"No momento em que o povo palestino mais precisa de apoio, os países ricos decidem cortar a ajuda humanitária à UNRWA. Refugiados palestinos na Jordânia, na Síria e no Líbano também ficarão desamparados. É preciso pôr fim a essa desumanidade e covardia. Basta de punição coletiva. Meu governo fará um novo aporte de recursos para a UNRWA. Exortamos todos os países a manter e reforçar suas contribuições", disse o presidente em discurso no Cairo.

Além de elevar os repasses à UNRWA, atacada por Israel, o Brasil vai assumir a presidência do conselho consultivo da agência em 2025.

O anúncio vem em um momento de acirramento das relações entre Brasil e Israel. Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam o que move a decisão do governo de ampliar os repasses à agência.

Natalia Reis, professora de história contemporânea do Instituto de Estudos Estratégicos (INEST) da Universidade Federal Fluminense (UFF), enfatiza que "posições brasileiras contrárias aos interesses israelenses não são novidade na história da diplomacia e dos governos brasileiros", nem "uma prerrogativa do governo Lula".

"A partir da década de 1970, algumas ações dos governos brasileiros foram interpretadas como anti-israelenses. Como exemplos, temos o voto favorável do Brasil à Resolução 3379 da AGNU [Assembleia Geral das Nações Unidas] em 1975, que condenou o sionismo como uma forma de racismo e discriminação racial; o reconhecimento brasileiro da OLP [Organização para a Libertação da Palestina] como único e legítimo representante do voto palestino; além do estabelecimento de parcerias econômicas e políticas com países inimigos de Israel, como a Arábia Saudita e o Iraque, ao longo do governo de Saddam Hussein."

Porém, ela ressalta que esse posicionamento se tornou mais evidente "especificamente nos períodos em que Lula esteve no poder".

"Podemos citar que, em seus dois primeiros mandatos (2003–2010), Lula sempre demonstrou simpatia à causa palestina, além de ter tentado mediar o impasse provocado pelo Irã e sua política de enriquecimento de urânio e construção de usinas nucleares no período Mahmoud Ahmadinejad. E, no mandato atual, vem confirmando enfaticamente sua condenação às ações israelenses em Gaza."

Ela sublinha que "a política externa brasileira é tradicionalmente multilateral", e que "o Brasil tem parcerias comerciais e políticas com variados Estados que possuem interesses geopolíticos e comerciais antagônicos".

"O Brasil, com exceção do período [Jair] Bolsonaro e talvez outros períodos em que o governo então no poder era alinhado incondicional dos EUA, como o governo Dutra, por exemplo, sempre procurou atuar de acordo com os seus interesses autônomos, ainda que tenha mantido um alinhamento — não condicional, importante dizer — com os interesses americanos. Sem contar a política externa independente no governo [João] Goulart", explica a especialista.

·        Ascensão do BRICS fortalece decisões soberanas do Brasil

Reis afirma que, nos dias atuais, com a importância cada vez maior do Brasil no contexto da ascensão do BRICS, "a autonomia em relação aos EUA aumentou e as decisões na política externa tendem a ser cada vez mais soberanas, tratando-se principalmente de um governo progressista".

Ademais, ela aponta que "a questão dos compromissos brasileiros com os direitos humanos também deve ser considerada".

"Dado o genocídio israelense em Gaza, a postura brasileira — no que diz respeito aos recursos para os refugiados palestinos [UNRWA] — é coerente com a crítica que o atual governo brasileiro tem feito às ações de Israel contra os palestinos em Gaza. Por isso, mais do que querer estar presente nos debates globais, o que efetivamente não podemos desconsiderar, pois o governo Lula quer fazer do Brasil um ator de peso no cenário internacional. Acho que não podemos negligenciar a postura humanitária do atual governo na condenação do genocídio contra os palestinos."

Para Reis, a defesa da causa palestina pode ser uma forma de o Brasil fortalecer a voz do Sul Global contra a ofensiva israelense.

"Não podemos esquecer que, no atual contexto de surgimento de uma ordem global mais multipolar, sendo o Brasil parte desse processo com o BRICS, nos governos Lula é possível perceber a demonstração de simpatia aos Estados árabes, visto que alguns desses países possuem relevância na estratégia anti-hegemônica brasileira. No entanto, até mesmo governos militares, na década de 1970, desenvolveram intensos fluxos comerciais com países árabes, principalmente devido às necessidades brasileiras de importação de petróleo, na esteira do choque do petróleo."

A opinião de Reis é compartilhada por Issam Rabih Menem, doutorando em estudos estratégicos internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador do Núcleo de Pesquisa sobre as Relações Internacionais do Mundo Árabe (Nuprima).

"O Brasil tem um longo histórico de apoio à Palestina, seja financeiro ou por meio da cooperação Sul-Sul, tal qual: treinamento de técnicos palestinos na área de desenvolvimento urbano [2009]; capacitação em técnicas de fisioterapia para profissionais da saúde palestinos [2010]; missão de cooperação técnica em saúde, saneamento e gestão de fundos públicos na Palestina [2010]; e capacitação técnica em gestão de resíduos sólidos e gestão de fundos de financiamento público na Palestina [2011]."

Ele acrescenta que, por meio da Coordenação-Geral de Cooperação Humanitária (CGCH), "o Brasil contribuiu com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura [FAO, na sigla em inglês], destinando US$ 200 mil [cerca de R$ 1,1 milhão] para ações emergenciais em apoio à produção agrícola familiar na Faixa de Gaza".

"Mais recentemente, em 2023, o Brasil doou 150 purificadores de água com painéis solares para os refugiados palestinos."

·        Anúncio de Lula pode aumentar o atrito na relação entre Brasil e Israel?

Reis diz não considerar que os recentes atritos possam levar a um rompimento diplomático com Israel, apesar de existirem "pressões de movimentos da sociedade civil para que o Brasil vá nessa direção ou que pare de comercializar com Israel, principalmente armamentos".

"Mas não vejo nenhuma tendência do atual governo para isso. Há os interesses econômicos e estratégicos de setores militares brasileiros de manter a atual relação, e não vejo o governo Lula com predisposição para enfrentar tais interesses. Por isso, acredito que não haverá grande impacto nas atuais relações com Israel. A não ser sinalizar para o atual governo israelense que o governo Lula tem seus próprios interesses geopolíticos e estratégicos, e não está amarrado aos interesses EUA-Israel. Sem dúvida, será uma relação cheia de ruídos e conflitos, mas continuará existindo."

Questionado sobre o motivo de o Brasil parecer ser o alvo dos ataques mais duros de Israel, quando outros países também se posicionam contra a ofensiva de Tel Aviv em Gaza, Menem diz que "apesar de o Brasil ser um dos primeiros países a reconhecer Israel após sua criação em 1948, a relação de ambos pode ser caracterizada como complexa e marcada por altos e baixos".

"Os 'ataques mais duros' direcionados ao Brasil apenas reafirmam sua liderança regional e seu protagonismo nos grandes fóruns internacionais, influenciando o posicionamento de outros países que reconhecem sua diplomacia multilateral, sua política de promoção da paz e de solidariedade ao Sul Global", conclui o especialista.

 

¨      Vitória de Trump nos EUA pode estimular bolsonarismo no Brasil e gerar reação do BRICS, diz analista

Em entrevista à Sputnik Brasil, analistas apontam que vitória de Javier Milei na Argentina, somada a uma possível volta de Donald Trump à Casa Branca, levou Lula a se posicionar a favor de Biden, e que um eventual retorno do republicano ameaça uma nova rodada de atritos entre EUA e China, impondo necessidade de mais aproximação entre o BRICS.

O desempenho desastroso do presidente dos EUA, Joe Biden, no primeiro debate contra Donald Trump na corrida pela Casa Branca acendeu o alerta na equipe do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Assessores do Palácio do Planalto temem que a fragilidade de Biden exposta no debate possa fortalecer Trump na disputa, e que uma eventual vitória do candidato republicano sirva como combustível para o recrudescimento do bolsonarismo no Brasil. Somada a isso está uma possível saia justa em caso de vitória de Trump, uma vez que Lula, em fevereiro, declarou preferência por Joe Biden ao ser questionado sobre as eleições americanas.

A Sputnik Brasil consultou especialistas para saber como uma eventual vitória de Trump no pleito americano poderia impactar no governo Lula e se há possibilidade de o Brasil ser prejudicado por conta do posicionamento do presidente.

João Victor Motta, doutorando e mestre em relações internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP), afirma que a preferência de Lula pela vitória de Biden, ou qualquer outro democrata, "se insere em uma lógica mais ampla das aproximações políticas entre os campos políticos que ambos representam".

"Neste momento histórico específico, os democratas, como liberais, possuem um alinhamento maior com o governo brasileiro em temas sensíveis como direitos humanos, direitos trabalhistas e o tema da defesa das democracias. A preferência declarada de Lula não impactará as relações entre Brasil e EUA, em um eventual novo governo Trump, para além do que já se espera naturalmente da postura do ex-presidente republicano."

Ele acrescenta que posicionamentos por parte de chefes de Estado não possuem um impacto específico, tendo apenas como objetivo "delinear os alinhamentos posteriores e prévios". Segundo Motta, o crescimento do radicalismo político e do fascismo no mundo levou lideranças a se posicionarem a favor de personalidades vistas como antagônicas a essas vertentes ideológicas extremistas, e cita como exemplo o ocorrido nas últimas eleições presidenciais do Brasil.

"Não foram poucos líderes globais que se declararam abertamente ou mais discretamente favoráveis a vitória de Lula em 2022."

Tradicionalmente a política externa brasileira sempre cultivou a neutralidade, evitando posicionamentos a favor ou contra candidatos em disputas eleitorais. Contudo, essa tendência mudou nos últimos anos. O ex-presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, se posicionou a favor de Trump nas eleições de 2020 e chegou a ecoar as acusações de fraude eleitoral após a vitória de Biden. Lula, por sua vez, além de se posicionar a favor de Biden, afirmou preferência por Sergio Massa quando este disputou a presidência da Argentina contra Javier Milei.

Questionado sobre essa mudança de paradigma na política externa brasileira, Motta aponta que o posicionamento de líderes é um fenômeno global, iniciado com a ascensão de vertentes políticas radicais não comprometidas com a democracia e os direitos humanos.

Ele acrescenta que "esse fenômeno recente de declarações de preferências eleitorais é mais notável nos países centrais do Norte Global e na América Latina, não sendo uma exclusividade brasileira".

"No entanto, há declarações de preferências que mesmo que não feitas, são óbvias em quaisquer eleições desde o início do século XX, em virtude os posicionamentos partidários e ideológicos das lideranças nacionais."

Por sua vez, Hugo Albuquerque, jurista e editor da Autonomia Literária, afirma que a tomada de posição do Brasil a favor de Biden "expressa, no plano internacional, a polarização atual da sociedade brasileira em termos políticos".

"Uma polarização que foi construída há muito tempo, mas não encontrou um sujeito para enfrentar o lulismo, até a promoção de Bolsonaro como um político de primeiro nível, convergindo em torno de si as pautas da direita mais conservadora. A partir daí a luta política se tornou muito intensa e as duas cabeças dos dois polos buscam alianças no plano internacional. Por outro lado, o Itamaraty perdeu protagonismo como instituição burocrática que dirige o cotidiano da política externa brasileira, enquanto passa por um certo sucateamento."

Thiago Rodrigues, professor de relações internacionais do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (INEST/UFF), diz que o Brasil, de fato, não tem tradição de se posicionar a respeito de pleitos de outros países, mas explica a situação política contemporânea está bem diferente.

"Existe uma radicalização muito importante no mundo todo, e essa radicalização atinge o continente americano de uma forma muito direta, e me parece que na atual conjuntura, e até por conta da vitória de [Javier] Milei [na Argentina], Lula se posicionou, dessa vez, a respeito das eleições nos EUA. Até porque isso tem um impacto nas eleições, no ambiente político brasileiro."

Ele argumenta que Jair Bolsonaro segue como o "garoto propaganda" do radicalismo no Brasil, e que, embora abalada, essa vertente política está em busca de uma figura conservadora "mais apresentável do ponto de vista internacional e menos radicalizada do ponto de vista ideológico do que é o próprio Jair Bolsonaro e o seu círculo mais imediato".

"Então eu acho que essa situação peculiar de influência grande do que acontece fora nos EUA e na Argentina, principalmente, com relação ao Brasil, que são os dois países mais importantes tradicionalmente do ponto de vista político, diplomático e econômico que o Brasil tem, motivam esse posicionamento do Lula."

·        Como uma eventual vitória de Trump pode afetar o Brasil?

Para Motta, caso Trump seja eleito, o distanciamento das políticas externas de Brasil e EUA será natural e esperado, mas não alteraria "a longa trajetória de aproximações e afastamentos entre os dois países".

"Espera-se de Trump um maior protecionismo econômico e comercial, mas que não deve alterar profundamente as relações entre os dois países, seja no âmbito comercial ou em eventuais aproximações temáticas."

Entretanto, ele sublinha que, em um cenário de vitória de Trump, "um eventual acirramento das disputas comerciais dos EUA e China, podem impor uma necessidade de maior aproximação entre os países do BRICS".

"Outro ponto que deve ser acompanhado de perto no Brasil são as relações de Trump com o FED [Federal Reserve], que nunca foram amistosas e as oscilações de taxa de juros nos EUA impactam diretamente na postura do Banco Central brasileiro."

Rodrigues avalia que "qualquer posicionamento explícito é um risco político, que pode trazer vantagens, caso a aposta vença, e muitas desvantagens, caso a aposta não vença". Porém, enfatiza que uma vitória de Trump nas eleições americanas "já traria, com Lula falando ou não, uma posição de afastamento dos EUA com relação ao Brasil".

"Então é uma aposta que, no fundo, parece muito arriscada, mas não é. Porque a polarização é tão grande que se Trump vencer isso já vai animar a ultradireita brasileira e já vai colocar Trump em uma posição de apoio à ultradireita brasileira contra o governo Lula de todo jeito. Então é uma declaração que me parece falsamente radical, porque os dados já foram lançados e as posições políticas já são bem colocadas."

No entanto, ele afirma que, do ponto de vista pragmático, não deve haver grandes problemas nas relações econômico-comerciais com os EUA, "porque Trump não tem uma agenda econômica protecionista com relação diretamente ao Brasil".

"O problema ideológico de Trump sempre foi principalmente o México e a China, com relação ao discurso nacionalista dele com relação à perda de empregos, à fuga de capitais, à imigração ilegal. Então pode haver alguma tensão nesse campo da imigração, expulsão de brasileiros, alguma perseguição que seja mais indireta do ponto de vista ideológico, mas acredito que, do ponto de vista dos grandes interesses comerciais e econômicos, não haveria grandes problemas. Seria uma disputa no campo retórico e ideológico."

¨      Lula diz estar pronto para contribuir com as negociações entre Rússia e Ucrânia

O presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, disse nesta segunda-feira (1º) que espera uma mudança na dinâmica Rússia-Ucrânia que permita o início de negociações de paz e que o Brasil desempenhe um papel nelas.

"Eu enviei meu assessor, Celso Amorim, para a Ucrânia para conversar com [Vladimir] Zelensky e para a Rússia para conversar com [o presidente Vladimir] Putin, para ver se havia algum avanço que permitisse o início das negociações de paz", disse Lula à rádio Princesa.

O presidente brasileiro disse que o país jamais fará parte do conflito ucraniano e reiterou que ele pode terminar na mesa de negociações.

Vladimir Putin disse em junho que a Rússia cessaria fogo imediatamente e iniciaria negociações com a Ucrânia depois que Kiev retirasse suas tropas dos territórios controlados por Moscou e abandonasse oficialmente seus planos de ingressar na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

Putin descreveu a ambição da Ucrânia em relação à OTAN como uma ameaça direta à segurança nacional e insistiu que o status não alinhado de Kiev era extremamente importante para futuros esforços de paz.

Vladimir Zelensky rejeitou a proposta de Moscou, tratando-a como um ultimato. Seu mandato presidencial expirou em 20 de maio, mas ele adiou a eleição, citando lei marcial.

 

Fonte: Sputnik Brasil

 

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