O fardo
ucraniano: Europa ajuda a defender a Ucrânia, prescindindo da sua própria
defesa
Os
EUA, na Europa, comportaram-se como verdadeiros incendiários. Como qualquer
incendiário, estudaram o terreno, identificando os principais pontos propícios
à propagação e combustão, por fim, provocaram a ignição e, como um pintor, na
perspectiva e segurança que só a distância pode proporcionar, apreciam hoje a
sua obra destrutiva. Saciados da sua sede incendiária, voltam costas e deixam
as vítimas encarregues de alimentar o incêndio que tão calculadamente criaram.
O
último processo de aprovação dos 61 mil milhões de dólares, com as suas
dificuldades, avanços e recuos, foi já resultado desta tensão interior. A
ansiedade de explorar um foco de tensão no pacífico que “contenha a China”, bem
como a necessidade de acorrer a Israel e ao seu pirómano de serviço, Netanyahu,
levou a uma luta interior que foi responsável por uma queda acentuada nos
fornecimentos a Kiev.
Se
entre abril de 2022 e Setembro de 2023, a cada trimestre, os EUA enviavam, pelo
menos, 7.8 mil milhões de dólares em “ajuda”, chegando mesmo aos 14.7 mil
milhões entre julho e setembro de 2022, já no período outubro de 2023 a março
de 2024, Kiev só recebeu 1.7 mil milhões de dólares. Dados do Kiel
Institute, Ukraine Support Tracker.
Se
bem que os montantes tenham, entretanto, voltado a subir, pelo menos até ver, a
verdade é que, ao contrário do que tanto se falou na comunicação social mainstream,
é sobre a União Europeia e os seus estados membros que impende a maior fatia de
“ajuda”. Até abril de 2024, a União Europeia, e os seus Estados membros,
comprometeu-se com 177.8 mil milhões de Euros, ao passo que os EUA, apenas
entram com 98.7 mil milhões de euros.
Mas
se este número, por si só, já nos diz muito sobre quem está realmente a pagar o
custo com o alimento do incêndio propagado pelos EUA. Enquanto os EUA e os
Estados-membros da União Europeia, bilateralmente, entram, essencialmente, com
armamento, equipamento esse que há-de ser pago, no caso das instituições da
União Europeia, o que se envia é essencialmente dinheiro. Quer a fundo perdido,
quer sob a forma de empréstimos em que a Ucrânia recebe o dinheiro e a comissão
europeia assume o pagamento dos juros e presta as garantias de que os
pagamentos futuros são realizados. O caminho que levam as coisas, bem nos diz
sobre quem vai suportar esse pagamento.
Acresce
que, nestes números, não constam as despesas com refugiados que, só entre
Alemanha e Polónia, ultrapassam os 50 mil milhões de euros com subsídios,
habitações e outro tipo de apoios. Mesmo em matéria de armamento, embora os
EUA, no que toca a algumas tipologias (howitzers e MLRS) assumam a maior fatia,
quando vamos para os tanques, defesa aérea e Veículos de infantaria, são os
europeus quem mais envia, muitos desses sistemas fornecidos apesar do
desguarnecimento das suas próprias defesas, o que não sucede, como se sabe, com
os EUA. A Europa ajuda a defender a Ucrânia, prescindindo da sua própria
defesa. Eis o nível de compromisso a que se chegou.
Se
estes dados, por si só, já nos mostram quem está a ficar com o fardo ucraniano
às costas, às inúmeras declarações de responsáveis governamentais de
Washington, que exortam a Europa (leia-se a União Europeia) a assumir uma maior
responsabilidade na questão Ucraniana, existem outros indícios que apontam para
o facto de os EUA estarem prestes a assumir, apenas, uma postura de comando,
entrando quando necessário e apenas se, estrategicamente, tal se justificar.
A Heritage
Foundation, importantíssimo think thank conservador,
responsável por 64% das medidas que Donald Trump aplicou no seu primeiro ano de
mandato, enquanto presidente, já preparou o seu Mandate for Leadership (Mandato
para a Liderança), neste caso para 2025, em que elenca toda uma vasta
estratégia governativa, a iniciar em 2025, sob Donald Trump. Se bem que, como
se sabe, em matéria de defesa e política externa, pouco difere entre democratas
e republicanos, entre Biden e Trump. Se Trump diz que acaba com a guerra da
Ucrânia, Biden, entre promessas de apoio incondicional, na prática e nos atos,
não acabando com ela, vai deixando o encargo aos europeus.
O Mandate
for Leadership 2025 aponta para as seguintes premissas, com impacto na
guerra que ocorre em solo ucraniano: (i) “De longe, o mais significativo perigo
para a segurança, liberdade e prosperidade dos Americanos, é a China”, sendo a
Rússia uma ameaça real, mas não decisiva; (ii) “Priorizar a construção do
planejamento da força convencional dos EUA para derrotar uma invasão chinesa de
Taiwan antes de alocar recursos para outras missões, como combater
simultaneamente outro conflito”.
(iii)
“Os aliados dos EUA devem assumir uma responsabilidade muito maior pela
sua defesa convencional”; (iv) “Fazer da partilha de encargos uma
parte central da estratégia de defesa dos EUA, não apenas ajudando os aliados a
avançarem, mas encorajando-os fortemente a fazê-lo”. E agora
o grand finale: (v) Transformar a OTAN para que os aliados dos EUA
sejam capazes de mobilizar a grande maioria das forças convencionais
necessárias para dissuadir a Rússia, ao mesmo tempo que dependem dos Estados
Unidos principalmente para a nossa dissuasão nuclear, e selecionar outras
capacidades, reduzindo ao mesmo tempo a postura de força dos EUA na
Europa.
Com
Donald Trump, certamente, mas tudo aponta para que também com Joe Biden, esta
será com certeza a estratégia militar dos EUA para os próximos anos. Os EUA
vêem-se sobretudo a tratar da componente dissuasora, suportada principalmente
na tríade nuclear. É também uma questão económica. À distância de um Comandante
Supremo, os EUA pretendem entregar o combate de atrito, mais caro, custoso de
vidas e desgastante, ao que designam como “aliados”, reservando para si o fillet
mignon.
Os
submarinos nucleares, porta aviões, bombardeiros e outros meios estratégicos,
de maior valor e maior retorno para o PIB americano, mas também de maior
significado estratégico, o que vale para assustar inimigos e conter aliados.
Todas essas valências ficam a cargo da sede imperial. Os aliados ficam com a
artilharia, os meios de médio e curto alcance e tudo o que for de dimensão
táctica e operacional.
Mas
não se pense que os EUA não tenham uma palavra a dizer nessas dimensões. Uma
vez mais, voltemos ao Mandate for Leadership: “Priorizar os EUA e
aliados de acordo com os requisitos de “produto final doméstico” e “componentes
domésticos” da Lei Build America, Buy America”.
A
fabricação de componentes e produtos finais internamente e com aliados estimula
o desenvolvimento fabril, aumenta os empregos americanos e cria resiliência na
base industrial de defesa da América.
Ou
seja, se a isto adicionarmos o aprofundamento da “interoperabilidade”, bem como
o “onshoring” da produção, eis que os EUA se vêem também a produzir para
vender aos “aliados”, ou a colocar os “aliados” a produzir sob licença ou em
apertada cooperação e supervisão (friendshoring). A prazo e a ter
sucesso, os europeus deixarão de ter armas próprias ou, as que tiverem, serão
produzidas sob licença norte-americana, porquanto incorporarem componentes cuja
propriedade industrial lhes pertence.
Importa
aqui dizer que, o que muitos falham em identificar, quando criticam as
dificuldades de interoperabilidade e estandardização no seio do armamento da
OTAN. É que esta realidade, constituiu, ao longo dos anos, uma linha de defesa,
por parte dos países europeus, contra a tomada, pelos EUA, dos sectores de
maior valor acrescentado da sua indústria militar.
Quando
esta última barreira for transposta, nada obstará à plena aplicação da
estratégia americana, para a Europa. A Europa compra, eles vendem, a Europa
produz, eles autorizam, a Europa combate, onde eles mandam. Os países “aliados”
serão transformados em meras forças expedicionárias que funcionam segundo os
desígnios estratégicos de Washington.
Mas
não é só destes ganhos que se fez a estratégia norte-americana para a Ucrânia.
A Ucrânia serviu de pólo dinamizador de grupos como o grupo Centuria, neonazi,
que hoje conta já com mais de 25.000 membros nos diversos países da OTAN, na
Europa ocidental. Este tipo de grupos garante que, saídos do terreno mais
operacional, os EUA conseguirão manter o forte cariz russófobo das forças
militares ocidentais, garantindo a continuidade do atrito com a Federação
Russa.
Por
outro lado, depois de garantirem os melhores ativos ucranianos, esgotado a
fonte, os EUA entregam à Europa uma luta intestina, a qual, não apenas
enfraquece ou, pelo menos, mantém a Rússia ocupada, como impede a Europa de ter
acesso ao cimento que torna as economias competitivas: a energia e matérias
primas baratas. Ao promoverem a confusão entre OTAN e União Europeia, garantem
também que se acabam os sonhos do exército europeu e da autonomia estratégica.
Garantem que toda e qualquer decisão de interesse defensivo ou ofensivo, que
importa à União Europeia, passa também a importar à OTAN e, por arrasto, fica
sob domínio dos EUA.
Por
fim, uma União Europeia que coincide com a OTAN e entrega o plano estratégico
da sua defesa aos EUA, garante aos EUA que o almejado projeto Europeu, de
Lisboa a Vladivostok, que garantiria uma Europa autossuficiente do ponto de
vista energético, alimentar, mineral e tecnológico fica adiado sine die e
capturado pelo atlantismo divisionista.
Desta
forma, os EUA ficam livres para se concentrarem na “contenção da China”. E para
aqueles que acreditam que, tradicionalmente, que a Washington não interessa a
união Sino-Russa, é fundamental apreciar esta premissa à luz da realidade
atual. O fato é que, não conseguindo separar os dois, neste momento, para os
EUA, a união sino-russa pode vir a ter as suas vantagens.
Fazendo
jus ao princípio de que numa crise existe uma oportunidade, os EUA sabem que, a
melhor forma de garantirem o afastamento da Europa em relação à China, reside
na colagem desta à Rússia. Quanto mais próximas e quanto mais envolvida no
conflito Ucraniano estiver a Europa, maior rejeição sentirá em relação à China.
Ou seja, uma Europa mais antagonizada com a Rússia, tal como interessa aos EUA,
será também uma Europa que, crescentemente, olhará com maior desconfiança para
a China e a sua União ao seu inimigo.
Desta
forma os EUA estarão seguros que podem deixar à Europa o fardo de alimentar o
conflito ucraniano, ao mesmo tempo que desacopla da China e permite aos EUA a
construção de um mundo em dois blocos, de uma nova guerra fria. Assim, podemos
dizer que, pelo menos taticamente e no curto-médio prazos, a união sino-russa
pode vir a dar jeito à Casa Branca.
E
assim vistas as coisas, será muito simples a qualquer um poder ter uma
perspectiva do orgulho norte-americano, quando olha ao longe para a sua obra e
antevê nela o pilar fundamental da manutenção da sua hegemonia mundial. E mais
ainda quanto, tudo isto, é pago e bem pago pela União Europeia, pelos estados
membros e pelos povos europeus, os quais, com maior ou menor resistência, ainda
se alegram em alimentar uma fogueira na qual todos arderemos.
Esperemos
que as nuvens que se adivinham com a vitória da CDU na Alemanha e as palavras
do seu líder Friedrich Merz, ao referir que “chegou o tempo de colocar um fim
ao conflito”, se traduzam numa inversão estratégica e sejam capazes de conter
toda a destruição desejada por Washington.
Caso
contrário, ainda pagaremos para assistir à nossa própria morte. É este o fardo
que os EUA fizeram impender sobre toda a Europa. Cabe aos Europeus afastá-lo o
quanto antes.
¨
Kremlin diz que não
pode comentar ideia de Trump para acabar com conflito na Ucrânia
A
Rússia não pode comentar a declaração de Donald Trump de acabar com o conflito
na Ucrânia porque Moscou não sabe o que isso envolve, disse o porta-voz do
Kremlin, Dmitry Peskov, nesta terça-feira (2).
Trump
afirmou na semana passada, durante o debate com o presidente Joe Biden, que se
vencesse as eleições de novembro nos Estados Unidos ele resolveria o conflito
antes de assumir o cargo em janeiro.
"Essa
não é a primeira declaração de Trump sobre isso, e ele já fez declarações nesse
sentido antes. Sem saber a essência do que se trata, não podemos comentar sobre
isso", disse Peskov a repórteres em coletiva de imprensa.
Trump
não disse como faria para acabar com a crise ucraniana. No debate da semana
passada, ele citou que a Rússia não teria feito a operação na Ucrânia em
fevereiro de 2022 se houvesse um "presidente de verdade" nos EUA que
fosse respeitado pelo presidente Vladimir Putin.
Biden
respondeu que o republicano "não tinha ideia do que diabos estava
falando".
O
Kremlin afirmou que qualquer plano de paz para a Ucrânia proposto por uma
possível futura administração Trump teria que refletir a realidade no terreno,
mas que Putin estava aberto a negociações.
Fonte:
Por Hugo Dionísio, em A Terra é Redonda/Sputnik Brasil
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