José
Ricardo Figueiredo: ‘O terraplanismo histórico’
É
bem conhecida a reação ao heliocentrismo nas formas da condenação religiosa ao
livro de Copérnico e do julgamento de Galileu. Outra revolução científica
ocorrera dois milênios antes, com a descoberta da esfericidade da Terra, mas
pouco se sabe de uma reação terraplanista; um breve parágrafo de Francis Bacon
dará uma pista sobre isto.
A
esfericidade da Terra já era admitida pelos pitagóricos e por Platão (427-347
a.C.) e sua Academia, portanto desde o século IV a.C., ou antes. O tema é
tratado por Aristóteles (384-322 a.C.) com argumentos a
posteriori e a priori. Argumentos a posteriori seriam,
por exemplo, a forma da sombra da Terra em eclipses lunares, assim como o
aparecimento e desaparecimento de constelações para um viajante na direção
Norte-Sul. Um argumento clássico, também fundado na experiência de viagens
marítimas, seria acrescentado por Adrastus: “Frequentemente, durante uma
viagem, não se pode ver terra ou um navio que se aproxima estando no convés,
enquanto os marinheiros que sobem ao topo do mastro podem ver estas coisas
porque estão muito mais altos e assim superam a convexidade do mar que é o
obstáculo”.
O
argumento a priori de Aristóteles relaciona-se à sua visão dos
fenômenos dinâmicos. Concebia dois tipos de movimentos: natural e forçado. O
movimento forçado seria devido a causa externas, enquanto o movimento natural
corresponderia à tendência dos corpos irem para o centro da Terra, que também
seria o centro do Universo. Embora esta tendência para o centro do Universo
atuasse sobre todos os corpos, “os pesos mais poderosos estão aptos a deslocar
os menores”, de forma que o lugar natural dos corpos mais pesados seriam baixas
alturas, e o lugar natural dos corpos leves seriam as maiores alturas. O peso
não provaria rigorosamente que a Terra seria esférica, apenas introduziria uma
tendência neste sentido; entretanto, no caso das superfícies de água, a fluidez
do líquido para posições minimamente mais baixas conduziria à esfericidade .
Aristóteles
relata uma medição realizada por matemáticos a ele ligados cifrando a
circunferência da Terra em 400.000 estádios. Arquimedes (287-212 a.C.)
estimou-a em 300.000 estádios. Como é sabido, Eratóstenes (276-194 a.C.)
encontrou um método que permitiu chegar à cifra de 250.000 estádios. Esta
unidade de medida não era padronizada; o estádio grego equivalia a cerca de 185
metros, mas o estádio empregado por Eratóstenes seria 157,5 metros conforme
Porto da Silveira, ou 158,76 metros conforme Rey, de forma que os 250.000
estádios equivaleriam a 39.375 quilômetros ou a 39.690 quilômetros
respectivamente. Em ambos os casos, a medida é surpreendentemente próxima dos
40.009 quilômetros hoje reconhecidos para a circunferência polar terrestre.
Este
feito de Eratóstenes não pode ser explicado sem referência ao contexto
histórico e pessoal. Eratóstenes trabalhou no Museu de Alexandria, instituição
criada após o desmembramento do império de Alexandre (356-323 a.C.) por
Ptolomeu I (367-283 a.C.) ou Ptolomeu II (309-246 a.C.), e que foi controlada
sucessivamente pelo Reino Ptolomaico, pela República Romana e pelo Império
Romano.
Bernal
constata que o Museu foi o primeiro instituto de investigações subvencionado
por um Estado, numa tentativa consciente e deliberada de desenvolver a ciência,
e observa que no Museu de Alexandria “a ciência grega cresceu em contato direto
com os problemas tanto da técnica quanto da ciência das velhas culturas
asiáticas, e não só do Egito e da Mesopotâmica como também, em certa medida, da
Índia”. Entre os que estudaram ou trabalharam em Alexandria citam-se os
matemáticos e astrônomos Arquimedes, Aristarco de Samos (310-230 a.C.),
Euclides (300 a.C.-?), Hiparco (190-129 a.C.), Heron (5?-70 d.C.), Claudio
Ptolomeu (90-168 d.C.), Papus (?-350 d.C) e outros, além de literatos e
médicos.
Eratóstenes
era matemático e geógrafo, autor de um tratado denominado Geografia. Foi o
primeiro a dar a esta ciência uma base matemática, referindo-se à Terra como um
globo e registrando distâncias medidas ao longo do que hoje se denominam
paralelos de latitude e meridianos de longitude. Como linha base para seu
mapeamento, empregou um paralelo que se estendia de Gibraltar, pelo meio do
Mediterrâneo, ao Himalaia.
A
descrição conhecida da medição da circunferência terrestre segue relato do
astrônomo Cleomedes, que viveu 200 anos depois. Eratóstenes partiu da
informação de que em Siena, hoje Assuã (localizada no Trópico de Câncer), o Sol
estava absolutamente a pino ao meio dia do solstício de verão, podendo-se vê-lo
refletido no fundo de um poço. Mediu a inclinação do Sol na mesma data e
horário solar em Alexandria, obtendo 7o12’, equivalentes
a 1/50 dos 360o da circunferência. A distância relevante
entre ambas localidades fora determinada em 5.000 estádios, que multiplicados
por 50 levam aos 250.000 estádios para a circunferência da Terra. O método de
medição de longas distâncias baseava-se nos bimetatistes,
agrimensores treinados a caminhar com passos regulares, método instituído por
Alexandre e Ptolomeu I, imitando aos babilônios.
Rey considera que o relato de Cleomedes seria
simplista por não fazer referência à diferença de longitude de 3o entre
Assuã e Alexandria. Porém, pelo método geométrico de Eratóstenes, o problema
não depende propriamente da distância entre as cidades, mas da distância,
medida ao longo de um meridiano, entre os paralelos que passam por Assuã e
Alexandria, e que seria de 5.000 estádios. Os 3o de diferença
de longitude não interferem: correspondem a uma diferença em torno de 12
minutos entre os meio-dias solares daquelas cidades, de forma que o experimento
em Alexandria repetia o que se passara, cerca de 12 minutos antes, no
cruzamento do paralelo de Alexandria com o meridiano de Assuã.
Posteriormente,
Hiparco corrigiria o valor da circunferência da Terra para 252.000 estádios, o
que é antes uma confirmação que uma correção.
Diante
de tamanha conquista científica, difícil conceber um retrocesso. Mas uma breve
menção a uma reação terraplanista aparece em Francis Bacon [6], para quem a
Filosofia Natural enfrentou em todas as épocas, como duros adversários, “a
superstição e o zelo cego e imoderado da religião”. Lembra a acusação de
impiedade contra os primeiros pensadores gregos que propuseram causas naturais
para trovões e tempestades, e em seguida comenta: “alguns dos antigos padres
(ou pais, fathers no original) da Igreja Cristã não mostraram
maior tolerância com aqueles que, sob as mais convincentes bases (tais que
ninguém em seus sentidos pensaria contradizer) mantinham que a Terra era
redonda, e por conseqüência afirmavam a existência de antípodas.”
A
expressão “antigos padres da igreja Cristã” remete ao início da afirmação da
Igreja Católica, após ter sido legalizada e institucionalizada no império de
Constantino (306-337 d.C.). Deste período são conhecidos dois episódios,
relativos ao museu de Alexandria e à Academia platônica.
Embora
tenha perdido dinamismo com o expurgo de intelectuais por Ptolomeu VIII em 145
a.C., bem como durante a dominação romana, o Museu de Alexandria e sua
Biblioteca sobreviveram por alguns séculos. Um dos últimos diretores foi Theon
(335-405 d.C.), cuja filha Hipátia (355?-415 d.C.) seguiu seus passos
acadêmicos. Filósofa neoplatônica, matemática e astrônoma, Hipátia era também
respeitada voz pública. Tinha o apoio de Orestes, Prefeito Romano de
Alexandria, que enfrentava uma disputa pelo poder com Cirilo, Bispo de
Alexandria, que via o Museu e a Biblioteca como instituições pagãs a serem
derrotadas. Num momento de agravamento da tensão política, Hipátia foi
seqüestrada e assassinada após horríveis suplícios por uma turba de seguidores
de Cirilo. Orestes abandonaria o cargo depois disso. Cirilo viria a ser
canonizado como São Cirilo de Alexandria.
Na
mesma linha, em 529 d.C., o imperador bizantino Justiniano fechou a quase
milenar Academia de Platão como política de abolição da cultura helenista pagã.
Haveria
incompatibilidade de fundo do Cristianismo com a filosofia grega? Isso é negado
pela história. Aurélio Agostinho de Hipona (354-430 d.C.), após converter-se ao
cristianismo em 386, introduziu no meio cristão a filosofia de Platão, e foi
canonizado como Santo Agostinho. Aristóteles tornar-se-ia referência
fundamental da Igreja Católica após Tomás de Aquino (1225-1275).
Como
se vê hoje em dia, o senso comum e os preconceitos mais difundidos podem ser
poderosas armas políticas. No assassinato de Hipátia, a misoginia salta aos
olhos. Já o terraplanismo intolerante citado por Bacon deve ter sido muito
funcional no combate de “alguns dos antigos padres (ou pais) da Igreja Cristã”
contra os intelectuais do Museu de Alexandria e da Academia de Platão.
¨
Terraplanista vê que
planeta é redondo após viajar para provar o contrário: 'Foi um baque'
Durante
mais de seis anos, o youtuber Leandro Batista, de 37 anos, divulgou vídeos
sobre a teoria da Terra plana na internet, angariando nada menos que 150 mil
assinaturas para o seu canal, o Inteligência Natural, e ajudando a divulgar a
ideia de que o planeta não seria esférico. O testemunho de um fenômeno natural
- o chamado sol da meia-noite - em meados do ano passado, no entanto, o fez
mudar de ideia. A Terra é redonda mesmo, constatou.
"Senti
um pouquinho de frustração porque queria estar certo. Em tudo o que a gente
faz, quer estar certo.... Foi um baque sim", contou o ex-terraplanista.
"Mas
estou mais feliz do que decepcionado. Viver negando tudo, achando que você está
certo e o mundo inteiro errado, é uma prisão mental, um grande fardo. Foi
libertador poder tirar a prova pessoalmente e ver que a Terra é esférica",
acrescenta ele.
Pelo
menos dois mil anos de conhecimento científico acumulado, sem falar das
inúmeras fotos tiradas do espaço, não foram suficientes para convencer Leandro
Batista sobre o formato do planeta. O youtuber decidiu, então, coletar
evidências pessoalmente.
Depois
de angariar fundos com seus seguidores, partiu para a Noruega, onde é possível
testemunhar o sol da meia-noite - um dos fenômenos naturais que comprovam a
esfericidade da Terra.
O
eixo de rotação da Terra tem inclinação de 23,5 graus em relação ao eixo de
rotação do Sol. Por conta dessa discrepância, em determinados períodos do ano,
o Sol fica acima da linha do horizonte durante as 24 horas do dia. Ou seja, não
anoitece.
Ao
longo de um ano, por conta do movimento de translação (da Terra ao redor do
Sol) isso ocorre duas vezes, em regiões opostas do planeta: no Círculo Polar
Ártico e no Círculo Polar Antártico. Se, de um lado, a luz se mantém por 24
horas, do outro ocorre o fenômeno oposto, da noite polar, quando o sol está
abaixo da linha do horizonte e a noite se prolonga por 24 horas.
"É
impossível sustentar a ideia de uma Terra plana se um fenômeno como o sol da
meia-noite existe nos dois polos", afirma o youtuber, que agora arrecada
dinheiro para ir à Antártida. "Se o sol da meia-noite ocorre nos dois
extremos, isso demonstra que a Terra é um globo."
De
acordo com a teoria terraplanista, o planeta teria o formato de um disco
achatado, coberto por um domo invisível. O Ártico ficaria no centro do disco,
enquanto a Antártida estaria ao redor das bordas, onde o gelo funcionaria como
uma espécie de contenção para as águas dos oceanos. Ainda segundo a teoria, é o
sol que gira ao redor da Terra.
Os
terraplanistas rejeitam todas as evidências científicas disponíveis sobre o
formato da Terra, bem como as imagens de satélite e os depoimentos de
astronautas. Para eles, agências espaciais como a Nasa, dos Estados Unidos,
enganam a população deliberadamente. Para justificar tamanha mentira, eles
lançam mão de teorias da conspiração.
"Não
é que um terraplanista não seja inteligente, não tenha conhecimento",
justificou Batista. "Mas ele se apaixona pela teoria e a estabelece como
verdade absoluta. Tudo o que não confirme a sua ideia é considerado mentira ou
fraude: os cientistas mentem, as agências espaciais mentem. É ai que entra no
negacionismo."
Nos
vídeos antigos, Batista é bem enfático na defesa da terra plana e para lançar
suspeitas. "A terra é um grande plano e será que a Nasa sabe a real forma
da terra, mas continua vendendo essa ilusão para a gente", disse em uma
dessas transmissões, em que questiona também a ida do homem à Lua.
Há
cerca de dois mil anos Aristóteles apresentou as primeiras evidências sobre o
formato esférico da Terra. Antes disso, muitas sociedades antigas achavam que o
planeta era plano - provavelmente na falta de qualquer outra explicação
disponível.
Na
era moderna, a teoria pseudocientífica da Terra plana surgiu no Reino Unido,
com o escritor Samuel Rowbotham, em meados do século 19. Já em meados do século
XX, um outro inglês, Samuel Shenton, recuperou suas ideias e criou a Sociedade
da Terra Plana. O movimento tinha caído no esquecimento, mas voltou a ganhar
força na chamada era da pós-verdade, a partir de 2016, impulsionado pelas redes
sociais.
Para
Batista, a teoria da Terra plana é um "negacionismo inocente" porque
não coloca a vida de ninguém em risco. O problema é que o mesmo tipo de
raciocínio (de que autoridades, cientistas, instituições e mídia mentem) se
aplica a outras teorias conspiratórias, como a da ineficácia das vacinas e a da
inexistência do aquecimento global.
"Sempre
defendi com força aquilo em que eu acreditava", afirmou o youtuber.
"Mas estava enganado, então tenho de aceitar e comunicar isso. Minha
consciência está tranquila."
Desde
que anunciou em seu canal as imagens do sol da meia-noite, Batista perdeu cerca
de 12 mil assinaturas. No entanto, garante, muitos dos que ficaram dizem ter
sido, afinal, convencidos da esfericidade da Terra.
"Recebo
mensagens do tipo: 'você traiu o movimento', 'você nunca foi terraplanista de
verdade', 'a Nasa te pagou para você mudar de lado'", contou Batista.
"Mas nada que eu me sinta realmente ameaçado."
"Tenho
certeza de que converti muitos", disse. "A maioria não vem a público
para falar que estava errado, que defendeu uma teoria contrária à ciência
porque isso é constrangedor, socialmente indigesto. Mas não para mim. Reconheço
que influenciei muitas pessoas a uma prática negacionista. Tenho obrigação de
fazer o caminho reverso."
Fonte:
A Terra é Redonda/Agencia Estado
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