Se você se preocupa com a liberdade, você
deve rejeitar a ética capitalista
ritney
Spears disse uma vez: “You gotta work, bitch”, e como sempre
acontece, a camarada Spears estava certíssima. Poucas qualidades são
tão elogiadas no capitalismo como o trabalho árduo. Conservadores como Dinesh
D’Souza nos dizem que o socialismo, mesmo que funcione, criará uma
sociedade de preguiçosos à procura de esmolas. Os defensores
da meritocracia insistem que as pessoas que estão no topo conquistaram o
seu status através de coragem e disposição, apesar das provas
contundentes sobre o papel que a sorte e os
privilégios desempenham na determinação dos resultados da vida. Outros
classificam o trabalho árduo em termos explicitamente religiosos – “um
dever para com Deus”, como disse um escritor conservador.
No entanto, apesar de
passarmos grande parte da nossa vida trabalhando, a maioria de nós
considera o nosso trabalho uma fonte de infelicidade e não de realização.
Os salários reais diminuíram nas últimas décadas e os ataques aos sindicatos
permitiram que os patrões ficassem livres para agirem como tiranos
privados, controlando o nosso comportamento mesmo depois de batermos o
ponto e irmos embora.
É fácil esquecer,
apesar do que lhe digam os autoproclamados defensores da civilização ocidental,
que o ócio já foi sinônimo de boa vida. Para os antigos gregos, era oferecido
aos cidadãos tempo para passarem com a família, exercerem atividades artísticas
e filosóficas de alto nível e participarem na governança da cidade. É claro que
isto se devia, em parte, ao fato de a Grécia antiga ser uma sociedade
escravista, onde os cidadãos gregos livres – não escravos – eram aliviados de
muitos encargos do trabalho manual. E mesmo em sociedades não escravistas,
durante muitos séculos a escassez absoluta forçou os humanos a passarem a maior
parte das suas vidas numa terrível luta contra a necessidade natural.
Isso começou a mudar
com o advento do capitalismo, que estimulou um crescimento econômico sem
precedentes. No século XIX, à medida que o desenvolvimento tecnológico dos
meios de produção avançava rapidamente, os socialistas e o movimento operário
em geral argumentavam que todos deveriam ter direito ao tempo de
lazer, seja para desenvolver as suas capacidades mais refinadas ou simplesmente
para relaxar e desfrutar a única vida que nós temos.
·
Marxismo e perfectibilidade humana
Talvez o socialista
mais famoso a defender o “direito à preguiça” tenha sido Paul Lafargue,
cujo panfleto de 1883 com esse título foi relançado numa esplêndida
nova edição pela New York Review of Books. Lafargue, um
emigrado cubano-haitiano, nasceu em 1842 e casou-se com a segunda filha de Karl
Marx, Laura, no final da década de 1860. Ele se dedicou a dar continuidade ao
legado socialista do sogro.
Ironicamente, Marx
desconfiava da política de Lafargue, chegando ao ponto de declarar que se
Lafargue era marxista, então o próprio Marx não era. Pouco antes de sua morte,
Marx criticou Lafargue por sua “falação revolucionária”.
Mas o sogro e o genro
concordaram quanto ao valor do tempo de lazer. Marx foi um fervoroso defensor
da redução da jornada de trabalho – isto numa época em que eram comuns jornadas
de doze a catorze horas, seis dias por semana – tanto porque ajudou a construir
a luta de classes, como melhorou imediatamente a vida dos trabalhadores. Marx
queria que os trabalhadores tivessem tempo para desenvolver a totalidade de
suas personalidades. Em A Ideologia Alemã (1846), ele e Engels
expressaram isso de maneira um tanto jocosa, como aprender a “caçar de manhã,
pescar à tarde, criar gado à noite, fazer análises críticas depois do jantar,
exatamente como penso, sem nunca me tornar caçador, pescador, pastor ou
crítico.”
De forma mais séria,
décadas mais tarde, Marx criticou o capitalismo por desperdiçar o potencial
humano, uma vez que milhões de pessoas não tinham tempo e recursos para se
desenvolverem. Sob o socialismo, pela primeira vez, o “desenvolvimento dos
poderes humanos” se tornaria “um fim em si mesmo”, pois “o reino da liberdade
só começa realmente onde cessa o trabalho que é determinado pela necessidade e
por considerações mundanas”.
Estes comentários
perfeccionistas levaram os intérpretes a atribuir expectativas verdadeiramente
utópicas ao socialismo. A afirmação de Leon Trotsky de que nas
sociedades comunistas “o tipo humano médio ascenderá às alturas de um Aristóteles,
de um Goethe ou de um Marx. E acima desta cordilheira surgirão novos picos” é
apenas o exemplo mais florido.
·
O direito de ser preguiçoso
Lafargue não atribui
expectativas tão rarefeitas aos seres humanos numa sociedade socialista. Ele
simplesmente salienta que gerações de pensadores, incluindo Aristóteles,
sonharam com um mundo onde a automação libertaria os seres humanos do trabalho
penoso. No final do século XIX, ele escreve:
O sonho de Aristóteles
é a nossa realidade. Nossas máquinas cospem fogo, têm membros de aço, nunca se
cansam, nunca precisam dormir. Elas são maravilhosamente produtivas e se
comportam com docilidade – mesmo quando realizam seu trabalho sagrado. E, no entanto,
as mentes dos grandes filósofos capitalistas continuam a ser dominadas pelo
preconceito do trabalho assalariado, o pior tipo de escravatura.
Lafargue chama a “era
do trabalho” de “era da dor, a era da miséria e da corrupção”. Ele repreende
homens “bem alimentados e satisfeitos consigo mesmos” que apregoam o trabalho
árduo como uma cura para o “vício” e a base do “progresso”. O verdadeiro progresso,
argumenta Lafargue, não é apenas um aumento na produção. Significa ter tempo
livre para “saborear as alegrias da terra, fazer amor e rir, festejar e pisar
em honra da alegre ociosidade de Deus”. Para passar tempo com amigos, família e
até consigo mesmo.
O que torna distintivo
o argumento de Lafargue em favor do lazer é que ele endossa sem remorso a
ociosidade hedonista. Aos seus olhos, muitos socialistas internalizaram normas
burguesas românticas sobre a importância inerente do aperfeiçoamento dos seres
humanos. Quando Marx defende o tempo livre, é em parte porque pensa que ele
promoverá formas mais grandiosas de individualidade.
Agora, acredito que
Marx está no caminho certo: sob o socialismo, a muitos indivíduos talentosos já
não seriam negadas oportunidades de florescer devido a fatores fora do seu
controle. Mas Lafargue parece mais realista ao admitir que, se tivéssemos tempo
livre, muitos de nós escolheríamos gastá-lo aproveitando a vida por si só.
E o que, pergunta
Lafargue ousadamente, há de tão errado nisso? Por que tantos de nós sentimos
uma pontada de culpa quando buscamos alegria e prazer absolutos? Por que um
mundo onde a maioria das pessoas seja capaz de aproveitar a vida trabalhando
menos não seria uma melhoria em relação a um mundo onde muitos de nós
trabalhamos muito e ganha-se pouco por isso?
Todas estas são
questões importantes num momento de debates crescentes sobre a viabilidade de
semanas de trabalho de quatro dias e a conveniência de trabalhar de casa. Não
concordo com tudo o que Lafargue diz, principalmente com a distinção rígida
entre trabalho e lazer hedonista. Suspeito que numa sociedade socialista, se
tivessem a oportunidade, a maioria das pessoas gostaria de trabalhar num
emprego que considerasse significativo e útil. A diferença é que este trabalho
seria mais livre do que sob o status quo capitalista
punitivista porque, além de terem locais de trabalho mais democráticos, as
pessoas comuns não seriam obrigadas a trabalhar simplesmente para sobreviver.
·
Marx e uma vida de lazer
Aparte mais comovente
desta nova edição de O Direito à Preguiça não é o ensaio
título. É uma pequena coleção de “Memórias de Karl Marx” de Lafargue, que
proporciona uma rara visão pessoal da vida pessoal do grande pensador.
Marx era, sem dúvida,
um homem imperfeito, com um temperamento aguçado e uma disposição severa não
apenas para com os inimigos, mas também para com os aliados. No entanto, o
retrato de Marx que Lafargue pinta é muito diferente. Ele descreve um homem de
família agradável, “terno e gentil”, querido por amigos e parentes, que diz “os
filhos devem educar os pais” e tem um verdadeiro senso de humor sobre si mesmo.
A certa altura, Lafargue pega Marx fumando. Marx oferece uma réplica
autodepreciativa: O capital, diz ele, nunca pagará por todos os
charutos que fumou enquanto o escrevia.
Estes instantâneos
humanizadores desmentem a caricatura conservadora de Marx como um
revolucionário violento, e até suavizam o brilho socialista sério sobre ele
como um intelecto histórico mundial cujas obras devem ser consultadas como se
fossem textos proféticos. O que transparece na narrativa de Lafargue é um homem
que trabalhou e pensou muito, mas nunca perdeu de vista as pessoas ao seu redor
e a alegria que sentia em sua companhia. Que todos possamos aprender essa
sabedoria em nossos momentos de lazer.
Fonte: Por Matt
McManus, com Tradução de Pedro Silva para Jacobin Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário